A lenda do Estado sem dinheiro
Toda a nossa capacidade criativa, tecnológica e laboral é sequestrada para atender aos interesses do lucro de poucos.
O Brasil não tem dinheiro, o Estado está quebrado, não se pode gastar mais do que se arrecada, etc., etc. Quantas vezes você já não leu essas frases que parecem tão racionais e sensatas? Muitas, não? Pois então, elas estão erradas e servem apenas para gerar escassez artificial e aumentar os lucros dos super-ricos.
Antes da tragédia no Rio Grande do Sul, agentes do mercado financeiro e até membros do governo afirmavam categoricamente que seria inviável recompor os salários de professores e técnicos administrativos de Universidades e Institutos Federais, pois o dinheiro definitivamente havia acabado. A proposta oferecida pelo governo para esses profissionais não é suficiente para restabelecer o poder de compra verificado em 2021. Valores próximos a R$ 1 bilhão por ano até 2026 para a recomposição dos salários, que colocaria fim à greve da educação, e mais R$ 2,5 bilhões para completar o orçamento de quase cem instituições, eram considerados impossíveis de serem alocados. Qualquer tentativa de um gasto desse tipo faria o Brasil entrar em rota de hiperinflação, calote da dívida e Apocalipse econômico.
O mesmo argumento era utilizado contra aqueles que solicitavam há menos de um ano R$ 2 ou 3 bilhões para prevenção e preparação de tragédias: negavam e afirmavam que um valor desses era uma loucura que levaria o Brasil à falência. Entretanto, após tantas mortes e destruições evitáveis, resultantes em grande parte da austeridade fiscal das últimas décadas, o governo federal terá que gastar bem mais. Embora não se saiba ainda o montante, a conta da reconstrução do Rio Grande do Sul passará de várias centenas de bilhões de reais. Aproximadamente R$ 30 bilhões já foram aprovados pelo Congresso, o que é positivo, apesar de ainda insuficiente.
Conforme a pandemia demonstrou, o governo não precisa pedir dinheiro emprestado ou aumentar tributos antes de gastar. A operação de gastos simplesmente cria dinheiro novo, independente do resultado contábil ao final de um ano ser superavitário ou deficitário. Não se trata de nenhum absurdo, mas de uma operação monetária normal. Todo gasto do emissor soberano de moeda se dá pela criação de dinheiro. Não há outra forma. Tributos e emissão de títulos, necessariamente, só podem acontecer após o governo ter criado dinheiro ao realizar pagamentos. O dinheiro não acaba para quem é seu emissor monopolista, cujas dívidas também terão de ser pagas na moeda emitida pelo Estado. O que acaba são os recursos reais que o dinheiro pode mobilizar.
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Portanto, enquanto houver recursos produtivos reais ociosos e à disposição para a venda em moeda doméstica, o governo federal tem a possibilidade e a obrigação de mobilizá-los para o atendimento das urgências sociais.
No entanto, no capitalismo, isso não ocorre. A questão não é a falta de dinheiro do Estado, mas sim a necessidade de haver desemprego para disciplinar os trabalhadores, achatar salários e criar escassez em meio à abundância para manter a estrutura de preços e lucros do capitalismo. A lógica é transformar tudo que é fundamental para a vida humana em mercadoria, acessível apenas a quem possa pagar. Paradoxalmente, em meio a tanta escassez autoimposta para o povo, não falta dinheiro e não há limites ou risco de atrasos no pagamento dos juros dos títulos da dívida pública aos mais ricos.
Toda a nossa capacidade criativa, tecnológica e laboral é sequestrada para atender aos interesses do lucro de poucos, e não à satisfação das necessidades sociais e ambientais de todos. Há dinheiro no capitalismo; o que não há é dinheiro para proporcionar à humanidade e à natureza o bem-estar que somos capazes de oferecer. Todo o nosso potencial intelectual, tecnológico e ambiental é destinado ao lucro privado. Isso inclui direcioná-lo para a destruição da nossa própria capacidade produtiva e de sobrevivência como espécie humana, se isso for necessário (e no capitalismo sempre é) para ampliar o movimento de valorização do capital e a ampliação da massa de lucros de alguns em detrimento de tudo e todos.
Há dinheiro para o Rio Grande e há dinheiro para a educação. Não há dinheiro se for aplicada uma regra fiscal rígida formulada pelo mercado financeiro, produzida em benefício próprio. O problema não é econômico ou “técnico”. É de opção política e de disputa na sociedade. Leva quem tiver mais força.
Gilberto Maringoni – Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
David Deccache – Doutor em economia (UnB), é assessor parlamentar na Câmara dos Deputados
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