Valério Arcary
Valério Arcary

Neoliberalismo com “43 graus de febre”

A corrente neofascista tem heterogeneidades internas, ênfases programáticas diferentes, país por país, mas tem um núcleo ideológico comum

Publicado em 12/09/2024
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“Quem não sabe contra quem luta não pode vencer”
(Sabedoria popular chinesa).
“Se você está em uma mesa de poker e não sabe quem é o otário, é porque você é o otário”
(Sabedoria popular brasileira).

A manifestação liderada por Jair Bolsonaro na Avenida Paulista neste 7 de setembro foi mais uma demonstração de força. Não foi um fiasco. Tampouco um tropeço. Algo próximo a cinquenta mil pessoas confirmaram presença ao longo de três horas, debaixo de um sol escaldante, aplaudindo aos gritos a exigência de anistia para os golpistas e o impeachment de Alexandre de Moraes. Além de ovacionarem Pablo Marçal, carregado pela multidão.

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Marxismo é realismo revolucionário. Diminuir a força de impacto da radicalização da extrema direita, o erro mais constante e fatal da maioria da esquerda brasileira, tanto entre os mais moderados como entre os mais radicais, desde 2016, seria obtuso. O argumento de que não se deve subestimar, nem superestimar é uma fórmula “elegante”, mas escapista. O “escapismo” é uma solução negacionista. O estado de negação é uma atitude defensiva para evitar encarar de frente um perigo imenso.

Só serve para perder tempo, alimentando o autoengano de que se estaria “ganhando” tempo. Um exemplo: a única capital realmente decisiva em que a esquerda pode vencer as eleições municipais dentro de pouco menos de um mês é São Paulo. E entre as três candidaturas que estão, tecnicamente, empatadas, segundo todas as pesquisas, duas são variantes do bolsonarismo.

Existe uma audiência de massas para o “contra tudo que está aí”. A radicalização antissistema é de extrema direita. Mas este extremismo não é neutro, é reacionário. A atração pela histeria antissistêmica da extrema direita não pode ser disputada pela esquerda no Brasil. Não há um espaço disponível simétrico para um discurso de esquerda antissistêmico. Um discurso antissistêmico seria ir para a oposição ao governo Lula.

A prova “dos nove” é que as organizações que radicalizaram sua agitação contra Lula são invisíveis. Não existe este espaço, porque a relação social de forças social inverteu. Estamos em uma situação ultradefensiva em que a confiança dos trabalhadores em suas organizações, e em sua própria capacidade de luta, é muito baixa. As expectativas desmoronaram. Nos setores mais conscientes e combativos da classe trabalhadora prevalece a apreensão. Estamos em uma relação de forças desfavorável.

A esquerda moderada entrou em crise entre 2013 e 2022: Labour, PS francês, PSoe, Pasok e até Syrisa, PT e peronismo, mas foi um processo parcial e transitório de experiência, e se recuperou. As massas se protegem com as ferramentas de que dispõem. A esquerda da esquerda, pode ocupar um lugar. Mas não precisa retroceder ao propagandismo. Pode demonstrar que é um instrumento de luta útil no interior de espaços de Frente Única, se acompanhar, com paciência revolucionária, o movimento real de resistência ao neofascismo.

Não estamos diante de uma polarização social e política. Uma polarização existe somente quando os dois campos principais – capital e trabalho – têm forças, mais ou menos, parecidas. O Brasil está fragmentado, mas a ilusão de que a vitória eleitoral de Lula, por dois milhões de votos sobre 120 milhões de votos válidos, seria um retrato de uma equivalência de posições sociais de força é uma fantasia do desejo. Estamos na defensiva e, portanto, a unidade de esquerda nas lutas e, inclusive, eleitoral, é indispensável.

A unidade de esquerda não deve ser esgrimida para silenciar as críticas justas às vacilações desnecessárias, maus acordos, decisões erradas, ou capitulações indesculpáveis, mas o inimigo central é o neofascismo. Uma estratégia de oposição de esquerda ao governo Lula é, perigosamente, errada e estéril. Alguma lição se devia ter tirado da linha “Fora Todos”, ao mesmo tempo que a extrema direita agitava Fora Dilma. Até porque desde 2016 a situação piorou.

A vitória de Lula foi gigante, justamente porque a realidade é muito pior do que se poderia concluir pelo resultado das urnas. Um desfecho que, aliás, só foi possível porque uma dissidência burguesa o apoiou. São muitos os fatores que explicam por que a situação é reacionária. Entre eles, a derrota histórica da restauração capitalista entre 1989/91 define a etapa porque não há mais uma referência de alternativa utópica como foi o socialismo para três gerações.

A restruturação produtiva foi impondo, gradualmente, acumulação de derrotas e, também, divisões na classe trabalhadora. Os governos liderados pelo PT, entre 2003 e 2016, não são inocentes, em função de uma estratégia de colaboração de classes que limitou as mudanças a reformas tão minimalistas, que a mobilização de massas não foi possível para defender Dilma Rousseff quando a hora do impeachment chegou. As derrotas acumuladas contam.

Nossos inimigos estão na ofensiva. Não é sensato uma polêmica de que sem Lula não teria sido possível a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro. Lembremos que a chapa era Lula “paz e amor” contra o gabinete do ódio e abraçado com Geraldo Alckmin. Só foi possível vencer com uma tática ultra moderada. Esta evidência não autoriza a conclusão de que Lula estava certo em escolher Geraldo Alckmin como vice. Mas deve nos orientar quando se avalia de forma realista a relação política de forças.

O centrão será a corrente política que, provavelmente, sairá mais fortalecida das eleições. Até mesmo em Porto Alegre, mesmo depois da tragédia que foi o fracasso da prefeitura diante da inundação mais catastrófica em meio século, Sebastião Melo, o atual prefeito bolsonarista que usa a legenda de aluguel do MDB é favorito. As candidaturas do PT em Aracaju, Natal, Fortaleza e até em Teresina não devem, infelizmente, nos surpreender. A situação em Belém é de uma luta heroica para garantir, pelo menos, que Edmílson do PSol avance para o segundo turno. O que pode nos salvar no balanço das eleições de 2024 é uma vitória de Guilherme Boulos. A relação política de forças pós-outubro depende, essencialmente, do desenlace em São Paulo, onde podemos vencer, mas está difícil.

Um movimento neofascista se construiu através de denúncias implacáveis, mas não qualquer denúncia. Denunciam que há direitos demais para os trabalhadores. Jair Bolsonaro cunhou a ameaça: empregos ou direitos? O que está ameaçado pela extrema direita são todas as pequenas, mas valiosas conquistas sociais desde o fim da ditadura. As conquistas de todos os movimentos sociais: populares por moradia ou de mulheres, negros ou culturais, estudantis ou sindicais, camponeses ou LGBT’s, ambientalistas ou indígenas.

O bolsonarismo não é uma reação ao perigo de uma revolução, como foi o nazifascismo na Europa, nos anos vinte do século passado, depois da vitória da revolução de outubro. Não há perigo de uma revolução. Os neofascistas ganharam uma base de massas, porque uma fração burguesa radicalizou e lidera uma ofensiva contra os trabalhadores apoiada em uma maioria da classe média, arrastando setores populares e defendendo que é necessário um choque de capitalismo “selvagem”.

A extrema direita cresce como uma reação à crise aberta em 2008/09 que condenou o capitalismo ocidental, também no Brasil, a uma década de estagnação, enquanto a China crescia. Seu programa é o neoliberalismo com “43 graus de febre”.

Entre 2013 e 2023 tivemos a primeira década regressiva depois do final da Segunda Guerra Mundial: (a) durante os trinta “anos dourados a Europa e o Japão reconstruíram suas infraestruturas e realizaram as reformas que garantiram o pleno emprego e as concessões à classe operária; (b) nos anos oitenta veio o mini boom com Reagan; (c) nos anos noventa o mini boom com Clinton; (d) na primeira década do século XXI um mini boom com Bush filho. Brexit e Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei são a expressão eleitoral de uma estratégia para salvar a liderança dos EUA no mundo.

Uma fração da burguesia, em escala mundial, insatisfeita com o gradualismo neoliberal girou para uma estratégia de choque hiperliberal de destruição de direitos: defende a latino-americanização nos países centrais e asiatização na América Latina para nivelar os custos produtivos por baixo com a China. Quer impor uma derrota histórica que garanta regimes estáveis pelo intervalo de uma geração.

Mas a extrema direita não abraça somente uma estratégia econômica de manutenção da liderança no mercado mundial. Não é somente um alinhamento político com os EUA no sistema internacional de Estados. A corrente neofascista tem heterogeneidades internas, ênfases programáticas diferentes, país por país, mas tem um núcleo ideológico comum. Abraçam uma visão de mundo: o nacionalismo exaltado, a misoginia machista, o racismo de supremacia branca, a homofobia patológica, o negacionismo climático, a militarização da segurança, o anti-intelectualismo, o desprezo pela cultura e a arte, a desconfiança da ciência.

Este choque não é possível sem restrição das liberdades democráticas e até destruição das liberdades políticas. A extrema-direita tem apetite pelo poder e ambiciona a subversão do regime democrático-liberal. Não persegue uma “cópia” do totalitarismo nazifascista dos anos trinta. Mas ambiciona regimes autoritários. Admira Erdogan na Turquia, Bukele em El Salvador e Duterte nas Filipinas. Só podem detidos com muita luta.

Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil

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