Quando a esquerda não ousa governar
Por que não se contingenciam os juros?
Por que não se contingenciam os juros?, poderia ter perguntado ao ministro Fernando Haddad um dos jornalistas presentes ao anúncio, nesta quinta-feira (18/7), do corte de R$ 15 bilhões no Orçamento de 2024. Aplicados sobre um gasto público já comprimido, o bloqueio de R$ 11,2 bi e o contingenciamento de R$ 3,8 bi significam que o SUS continuará muito distante de seu projeto original; que o governo manterá o flerte com com o “novo ensino médio” e a educação segregada; que nas cidades o próprio Minha Casa, Minha Vida patinará; que quase nada se fará em relação à reforma agrária (como constatou há semanas João Pedro Stédile); que, enfim, Lula 3 permanecerá, por enquanto, apequenado.
Os 15 bilhões de reais correspondem, no entanto, a apenas 2,02% dos R$ 740 bi que o Estado brasileiro pagará, em 2024, aos rentistas. Para “equilibrar o orçamento”, bastaria desligar, em uma das 52 semanas no ano, a emissão frenética de dinheiro que favorece essencialmente o 0,1% mais rico e ajudou os bilionários brasileiros a engordar sua riqueza em 30,3% apenas nos doze meses de 2023.
Mas há um efeito politicamente ainda mais perverso, apontou a socióloga Marilane Teixeira, entrevistada por Outras Palavras na última terça-feira. O “ajuste fiscal” impede Lula 3 de se libertar das forças que o cercam. O presidente assumiu em condições muito mais ásperas que em seus mandatos anteriores. A “turma da bufunfa” exige, a mídia grita, o Legislativo abocanha. A ultradireita espreita.
A brecha para inverter esta correlação de forças hostil é a mobilização popular. Há semanas, quando as mulheres foram às ruas contra o PL do Estupro, a coalizão do atraso tremeu e recuou. Mas como despertar as maiorias se o governo assumiu a agenda de quem o sitia? O arcabouço de Haddad e o déficit zero, lembrou Marilane, não tornam as periferias mais seguras ou aprazíveis, não oferecem empregos com salários dignos e direitos, não livram as mães do imenso déficit de creches, não freiam o declínio da classe média, não reconstituem a indústria brasileira. Apenas produzem a “estabilidade” necessária para que… os agentes do “mercado” não percam o sono (e muito menos os ganhos) em nenhuma das semanas do ano.
Lula debate-se com frequência contra o poder dos mercados e reconheceu mais de uma vez que seu governo está “muito aquém do prometido”. Mas sustenta Haddad porque não tem – ele próprio – outro horizonte político. There is no alternative, sentenciou Margareth Thatcher em 1980. Mais de quatro décadas depois, a frase continua a pesar, no Ocidente, como uma sentença de morte contra a ideia de superar as leis de ferro do neoliberalismo.
* * *
É raro. Mas às vezes, quando os líderes falham, os liderados tentam ocupar seu lugar. Uma multidão de milhares, formada principalmente por jovens, voltou a se reunir, neste mesmo 18/7, na Praça da República, em Paris. Agora, ao invés de protestar contra a ultradireita, dirigiam-se à Nova Frente Popular (NFP). A mensagem era clara, mostra uma reportagem do jornal Médiapart: Não vacilem. Formem logo um governo. Executem o programa que os elegeu.
Há quem pense que o problema de Lula 3 é ter sido eleito por uma frente amplíssima. O caso da França mostra que a realidade é mais complexa. Formada por quatro partidos – de esquerda (Insubmissos e Comunistas) e centro-esquerda (Socialistas e Ecologistas), a NFP tornou-se, surpreendentemente, a maior vitoriosa das eleições parlamentares encerradas em 7/7. Os eleitores premiaram seu programa e, no segundo turno, sua determinação em derrotar os (neo)fascistas liderados por Marine Le Pen. Os movimentos sociais organizados jogaram um papel decisivo e continuam dispostos a agir.
A NFP tinha condições para indicar rapidamente uma candidatura a primeiro-ministro e, apoiada pelas ruas, exigir do presidente Emmanuel Macron sua nomeação. Mas hesitou. Tornou-se uma casa em que não falta pão – mas todos brigam e ninguém tem razão. Os Insubmissos propuseram quatro candidatos a primeiro-ministro. Os Socialistas os rejeitaram. Em seguida, Socialistas, Comunistas e Ecologistas contrapropuseram, juntos, a ambientalista moderada Laurance Tibana. Foi a vez de os Insubmissos negarem-se a apoiá-la. Macron, um perdedor ardiloso, ganha tempo. Atrasa a nomeação, aguardando que a NFP, em suas disputas internas, termine por inviabilizar a si própria. Talvez espere que os Jogos Olímpicos esfriem o entusiasmo popular. Esta estratégia alcançou uma primeira vitória. Contando com a indefinição e perda de impulso da NFP, Macron somou as forças de dois partidos derrotados e elegeu sua candidata, a deputada Yaël Braun-Pivet presidente da Assembleia Nacional. Tentará repetir o mesmo na escolha do primeiro ministro.
Assim como Lula, a NFP parece ter perdido o horizonte político. Após as eleições, tinha força para exigir a aplicação de seu programa – em especial, a volta da aposentadoria aos 60 anos e o aumento do salário mínimo. Preferiu entregar-se à disputa interna pelo nome do chefe de governo. Os manifestantes presentes à Praça da República estão frustrados, mostra o Médiapart.. Alguns deles, antes descrentes da democracia, votaram pela primeira vez nestas eleições, para se somar à luta contra a extrema direita. Seus representantes não parecem capazes de fazer jus a este voto.
* * *
Trabalhadores de todos os países, uni-vos. Nos séculos XIX e XX, as lutas relacionadas ao trabalho foram vistas como a chave para vencer o capitalismo. Décadas depois de Karl Marx e Friedrich Engels inscreverem a célebre frase no final do Manifesto do Partido Comunista, o movimento operário dividiu-se em duas correntes, que até hoje são vistas como a “reformista” e a “revolucionária”. Tinham estratégias divergentes para superar o capitalismo. Mas nenhuma delas foi capaz de construir um projeto para o século XXI – em que a produção imaterial migrou para o centro do sistema e o rentismo captura a riqueza social sem nada produzir, servindo-se de mecanismos como os juros pagos pelo Estado.
Enquanto Marx e Engels viveram, os Estados precisavam oferecer reservas em metal para o papel-moeda que emitiam. Na Primeira Guerra Mundial, os governos beligerantes subverteram esta ordem, ao emitirem sem lastro para financiar seus exércitos. O mesmo foi feito mais tarde pelas políticas keynesianas, para financiar o Estado de bem-estar social. Mas ninguém criou tanto dinheiro quanto os Estados neoliberais. Primeiro, para salvar os bancos, na crise pós-2008. Depois, para manter as economias artificialmente aquecidas, por meio do quantitative easing. Significava emitir moeda para os mais ricos, esperando que esta, ao escorrer (trickle down) para o conjunto das sociedades, evitasse as recessões. O efeito foi alcançado, a custo da maior desigualdade da História.
Receba os destaques do dia por e-mail
Foi em 2015 que Jeremy Corbyn, então líder do Partido Trabalhista britânico, propôs o quantitative easing for the people. Se o Estado pode criar dinheiro para resgatar os rentistas, provocou ele, por que não fazê-lo em favor dos hospitais e escolas públicas? A proposta de Corbyn deu sentido e força política à Teoria Monetária Moderna, formulada um século antes.
Ela seria de extrema valia tanto para o lulismo quanto para Nova Frente Popular. Sugere, do ponto de vista teórico, desmercantilizar a vida – ou seja, caminhar no sentido oposto ao do capital contemporâneo. Mas pode ter também enorme apelo popular. Abre caminho para propor, por exemplo, a Educação integral, a urbanização das periferias, a universalização do saneamento com despoluição dos rios urbanos, a construção de redes de metrôs nas metrópoles — e a geração de milhões de postos de trabalho digno, para realizar estas tarefas.
O atrevimento custou caro a Corbyn. Uma campanha articulada pelos neoliberais e pela mídia inglesa defenestrou-o da liderança do Labour. Acusaram-no de antissemitismo (um clássico). Voltou ao Parlamento do Reino Unido nas eleições deste mês, apesar da sabotagem do partido.
Tanto Lula quanto a Nova Frente Popular francesa poderiam inspirar-se em suas ideias e sua coragem.
Fonte(s) / Referência(s):
Gostou do conteúdo?
Clique aqui para receber matérias e artigos da AEPET em primeira mão pelo Telegram.