Paulo Kliass
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Brasil: ainda o paraíso do financismo

Manter austeridade fiscal e arrocho monetário em meio à desigualdade social é um péssimo cartão de visitas e compromete sua imagem de mudança

Publicado em 03/09/2024
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O nosso país segue batendo recordes atrás de recordes, em inúmeras variáveis e modalidades, para assegurar o título de campeão mundial de juros. Para a elite do financismo local, pouco importa que tal pódio seja considerado uma vergonha internacional e um escândalo no que se refere a definições de prioridades de política econômica. Aliás, para um governo que se pretende reformador da ordem da profunda desigualdade que marca também a cena global, a insistência em continuar com esse misto de política fiscal da austeridade e política monetária do arrocho em suas próprias praias se apresenta como um péssimo cartão de visitas.

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Lula tem passado boa parte dos dias de seu terceiro mandato batendo fortemente na condução de Roberto Campos Neto à frente do Banco Central (BC). Trata-se de uma estratégia importante e correta, uma vez que o herdeiro bolsonarista no coração do órgão regulador e fiscalizador dos sistemas bancário e financeiro logo apresentou-se, desde o início, como um verdadeiro sabotador do novo governo, que havia derrotado o defensor da ditadura e da tortura nas urnas. Mas o fato é que os quatro membros da diretoria do BC indicados pelo atual Chefe do Executivo - e, portanto, integrantes o Comitê de Política Monetária (COPOM) - têm acompanhando de forma sistemática as posições de Campos Neto no interior do órgão que estabelece o patamar da taxa oficial de juros.

As dúvidas a respeito de Galípolo.

O problema é que a indicação de Gabriel Galípolo para substituir o presidente bolsonarista a partir de janeiro de 2025 corre o risco de “naturalizar” a política monetária vigente. Na tentativa de buscar um nome que fosse de agrado dos representantes do sistema financeiro, o Presidente da República perde mais uma oportunidade de acertar a trilha da mudança, rumo a um projeto nacional de desenvolvimento econômico, social e ambiental. O nomeado ainda vai cumprir com o ritual da sabatina no Senado Federal para ter sua indicação confirmada. Mas já tem dado declarações públicas a favor da manutenção da taxa SELIC nas alturas. Até mesmo Lula já começa a flexibilizar sua cruzada contra os juros elevados, dizendo que se Galípolo o convencer a aumentar SELIC, ele ficará de acordo. Em entrevista a uma emissora de rádio, ele se saiu com a seguinte declaração:

(...) "Se um dia Galípolo chegar para mim e disser que tem que aumentar a taxa de juros, ótimo." (...) [sic]

Assim tudo leva a crer que a substituição ficará com toda a cara de trocar seis por meia dúzia, como diz a expressão popular. Lula sabe que não mais poderá criticar a nova alta da taxa, uma vez que teria indicado o Presidente do BC e a maioria dos integrantes da diretoria do órgão e do COPOM. Afinal, a partir do início do ano que vem, não haverá mais a desculpa da “herança maldita”. Como Galípolo contará com um mandato de 4 anos à frente do BC, resta saber como ele se comportará na função: preparando o terreno para seu promissor futuro profissional no interior do financismo ou mantendo uma coerência com o projeto desenvolvimentista para o qual Lula foi eleito em outubro de 2022? O BC publicou na semana passada sua mais recente nota sobre as estatísticas fiscais. A julgar pelas informações divulgadas, o desastre continua. O Brasil bateu novo pico nas despesas com juros da dívida pública. Em julho deste ano, o total repassado aos operadores do sistema financeiro atingiu o valor de R$ 80 bilhões. Trata-se de um montante superior em fantásticos 74% mais elevado aos R$ 46 bi registrados no mesmo mês do ano passado. Uma loucura! Não existe uma única rubrica orçamentária que tenha sido aquinhoada com tamanho salto ao longo do período. Como se vê, a verdadeira “gastança irresponsável dos recursos públicos”, tão amplamente denunciada pelas elites endinheiradas e reverberada pelos grandes meios de comunicação, reside em um outro endereço.

E segue a farra do financismo

Para lançar um olhar um pouco mais dilatado e não ficarmos restritos apenas a uma comparação envolvendo 30 dias do comportamento de tal variável, vale a pena lançar mão de uma consulta quanto à evolução verificada durante os primeiros sete meses do ano. Neste caso, os dados apresentados pelo BC nos informam que o total de gastos com juros da dívida pública chegaram a R$ 535 bi. Esse valor, superior a meio trilhão de reais, representa um crescimento de 40% em relação aos R$ 383 bi dispendidos entre janeiro e julho de 2023. Ou seja, trata-se realmente de uma tendência de elevação em relação a períodos anteriores. E o pior é que, caso a trajetória da SELIC não seja mudada, é bem capaz que o exercício de 2024 seja manchado pela tragédia de superação da marca de um trilhão de reais a esse título. Como o próprio Lula gostava de citar, “nunca antes na História deste País”

Caso os dados envolvam a avaliação do verificado ao longo dos últimos 12 meses, a tendência altista também é mantida. Entre agosto de 2023 e julho de 2024, por exemplo, o total das despesas com juros da dívida pública também atingiu outra marca recorde. Foi retirada do orçamento público uma quantia equivalente a R$ 870 bi para alimentar a voracidade do parasitismo rentista. O valor inédito significa um crescimento de 21% em relação aos R$ 718 bi encontrados nos registros do BC para os 12 meses de 2023. Se considerarmos uma série histórica com esse valor dos últimos 12 meses para acompanharmos a evolução a cada mês, o resultado também é preocupante. O gráfico abaixo ilustra bem essa tendência altista.

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Outra tendência que reforça a interpretação do poder do financismo na subtração de recursos do orçamento federal para o cumprimento das despesas financeiras refere-se à evolução do total de gastos de tal natureza em relação ao estoque total da dívida líquida do governo geral. A observação do gráfico abaixo nos revela que o aumento expressivo com o montante de juros dispendidos não implicou em uma redução correspondente do valor total da dívida. Pelo contrário, pagou-se um volume crescente de despesas financeiras e ao mesmo tempo o total da dívida pública também aumentou de patamar.

O total de pagamento de juros saiu de R$ 448 bi em 2021 e atingiu os atuais R$ 870 bi em 2024, considerando os últimos 12 meses. Ora, apesar de tal enorme esforço de austeridade nas contas públicas, o fato é que o estoque total da dívida pública seguiu crescendo. Esse indicador saiu de R$ 5,4 trilhões em 2021 para os atuais R$ 7,1 tri em julho de 2024. Como a taxa SELIC é o piso de referência para a remuneração dos serviços do endividamento público, a tendência é de que o quadro continue a se agravar caso não ocorra uma mudança significativa na condução da política monetária.

Evolução do Total de Dívida Pública e de Despesas com Juros. (R$ trilhões - 2021-2024)

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Finalmente, vale observar o que ocorre com a evolução da relação entre a despesa com juros e o estoque da dívida pública. Levando-se em conta o mesmo período analisado anteriormente, o gráfico abaixo evidencia a piora contínua no comportamento do indicador que apresenta a comparação entre o volume total de juros e o estoque total da dívida líquida do governo.

Indicador da relação entre Despesas com Juros e Estoque da Dívida Pública

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As informações acima demonstram a ineficácia da política de austeridade fiscal para solucionar as questões no âmbito da própria política fiscal. Trata-se da chamada estratégia de “enxugar gelo”. Por meio de dispositivos de ordem jurídica como a Lei de Responsabilidade Fiscal, o extinto Teto de Gastos e o atual Novo Arcabouço Fiscal, o que se estabelece como prioridade para a política econômica do governo é a redução das despesas orçamentárias ditas “primárias”. Assim, por meio da armadilha perversa do simples adjetivo aparentemente ingênuo, o que se promove é a introdução da maldade de concentrar todo o tipo de teto, limite, contingenciamento ou corte apenas e exclusivamente nas rubricas não-financeiras.

Já as despesas com pagamento de juros são consideradas imexíveis. Para elas, o céu é o limite. A busca obsessiva de resultados considerados “positivos” nas contas públicas é considerada pelo pessoal das finanças como sinônimo de sucesso no quesito “responsabilidade fiscal”. No entanto, ao deixar intocável o volume crescente de pagamento de juros, o governo concentra seus esforços na manipulação criminosa de artifícios para redução de direitos sociais e constitucionais, a exemplo de previdência social, saúde, educação, assistência social, segurança pública, salário de servidores, saneamento e toda sorte de investimentos necessários para manutenção e ampliação do rol de políticas públicas. Não é por acaso que surgem pela grande imprensa as tentativas de desconstitucionalizar os pisos constitucionais de saúde e de educação, além da obscena proposta de desvincular os benefícios da previdência social do valor do salário mínimo. A “moda” do momento, assumida pelos próprios responsáveis pela área econômica, é responsabilizar as “fraudes” em políticas públicas essenciais para minorar os efeitos da profunda desigualdade que nos caracteriza como Nação, a exemplo do Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou o próprio Bolsa Família. Uma loucura! Medidas para garantir a integridade e a correção na aplicação dos recursos públicos deveria fazer parte do cotidiano de um governo preocupado em promover justiça social. Ocorre que escolher programas como os acima mencionados para criminalizá-los e apontá-los como responsáveis pelo desequilíbrio fiscal é assumir de forma maldosa o discurso mentiroso das elites.

“Pente fino” deve ser feito no topo da pirâmide da desigualdade.

Se o governo deseja fazer um verdadeiro “pente fino” nas despesas públicas, deveria começar pelo escandaloso nível da sonegação tributária que impera há séculos por estas terras. Se o governo pretende promover justiça fiscal, deveria encaminhar imediatamente ao Congresso Nacional uma Medida Provisória eliminando a inexplicável permanência da isenção de lucros e dividendos, excrescência que se mantém inalterada desde 1996. Se o governo está efetivamente preocupado com o equilíbrio das contas públicas, ele deveria colocar na mesa os valores das despesas com juros e não apenas alardear, fazendo coro com a nata do financismo, suas soluções que focam apenas na redução de gastos com políticas sociais e investimentos. Lula precisa acordar de uma vez por todas e intervir neste debate. Não basta apenas nomear um novo Presidente do BC que seja do agrado do universo paralelo da Faria Lima. É fundamental reorientar a política monetária e a política fiscal. Não faz sentido fechar os olhos, os ouvidos e a boca para os R$ 870 bi de despesa orçamentária com juros e comandar uma verdadeira caça às bruxas em supostos vazamentos pouco expressivos nas políticas de natureza social.

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