
Contestando a ordem: postura comercial recente dos EUA, UE e China
Movimento que vem escalando desde a crise global de 2008-2009
Em 2025, quando o governo Trump aumenta as tarifas de importação americanas, de modo mais amplo e intenso do que havia feito em seu primeiro mandato (2017-2021), mais do que uma guinada protecionista, acelera o processo de transformação da governança global, contestando a ordem que os próprios EUA tinham promovido.
A Carta IEDI de hoje trata deste tema em maiores detalhes, mostrando tratar-se de um movimento que vem escalando desde a crise global de 2008-2009 e que envolve não apenas os EUA, mas também outras potências, como a China e a Europa. Diversos instrumentos vêm sendo utilizados como “armas” geoeconômicas, a exemplo das tarifas americanas (trade weaponization).
Esta Carta foi realizada a partir do estudo “Geoeconomia – impactos para o Brasil e suas empresas” elaborado, a pedido do IEDI, pela professora da FGV Vera Thorstensen e pelos pesquisadores Vera Kanas, Magali Favaretto e Alexandre Coelho, que têm participado ativamente de fóruns internacionais de acompanhamento das transformações recentes (Helsinki, Berlin, Washington, Miami, Seoul e Genebra etc.).
Este trabalho se insere no acompanhamento que o Instituto tem feito das mudanças em curso, sob diferentes prismas, a exemplo das Cartas n. 1295 “O comércio mundial e os subsídios chineses”, n. 1254 “Padrões das Atuais Políticas Industriais no Mundo”, n. 1154 “Indústria e Disputas Geopolíticas”, n. 1104 “Riscos e resiliência das cadeias globais de valor” e n. 1088 “Indústria 4.0 e a Guerra Tecnológica China-EUA”, para citar alguns exemplos.
Os autores abordam igualmente as implicações deste quadro para o Brasil. E também identificam nossa reação até o momento e apontam medidas que poderiam ser tomadas para melhor navegar na atual geoeconomia, temas da Carta IEDI “O Brasil na nova geoeconomia” a ser divulgada em breve.
Entre jan/25 e set/25, a tarifa média efetiva de importação dos EUA saltou de 2,4% para 17,4%, o nível mais elevado desde 1935. A despeito disso, o descontentamento americano com o comércio mundial já vinha se apresentando desde bloqueio da eleição de novos membros do Órgão de Apelação da OMC, iniciado no governo Obama (2009-2017).
Por sua vez, o governo Biden (2021-2025), não voltou atrás no conjunto de tarifas impostas no primeiro governo Trump e também fez uso desde expediente, ainda que de forma mais pontual e voltado para áreas tecnológicas estratégicas, como para veículos elétricos, baterias, semicondutores, células fotovoltaicas etc.
A estratégia dos EUA, além de neutralizar o poder de arbítrio da OMC, tem sido a de flexibilizar o recurso a dispositivos legais a que o governo federal tem acesso, criados majoritariamente nos anos 1960 e 1970, de modo a ampliar seu alcance. Nesse sentido, na guerra comercial travada, suas armas não são novas, mas se tornaram mais poderosas.
Em alguns casos, entretanto, esta estratégia do governo Trump é formalmente contestada, a exemplo do julgamento da U.S. Court of International Trade, que entendeu que a imposição das “tarifas recíprocas” por meio da IEEPA excede a autoridade constitucional e legal do presidente. O governo Trump apelou e aguarda a decisão final.
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Para o Brasil, são três os dispositivos de maior impacto, segundo Thorstensen e seus coautores:
•Seção 232 do Trade Expansion Act de 1962, que aumentou as alíquotas para produtos específicos, como aço, alumínio e automotivos, de todo os países de origem;
•Seção 301 do Trade Act de 1974, para combater práticas desleais de parceiros comerciais, sob a qual o Brasil está em investigação devido a práticas no comércio e pagamento digitais, proteção à propriedade intelectual, desmatamento, corrupção etc.
•International Emergency Economic Powers Act de 1977 (IEEPA) que estabeleceu as chamadas “tarifas recíprocas” de 10% sob pretexto de segurança nacional e, posteriormente, adicionou alíquota de 40% para o Brasil, por motivação política
A União Europeia, por sua vez, segue defendendo o multilateralismo e o respeito ao regramento do comércio mundial, mas busca influenciá-lo projetando a regulamentação interna do seu espaço econômico sobre seus parceiros comerciais. Exerce seu poder por meio de seu ativismo regulatório, inclusive mobilizando as agendas ambiental e humanitária para construir barreias comerciais.
São exemplos paradigmáticos de “statecraft regulatório” o mecanismo de triagem de investimento estrangeiro (FDI screening), o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM), o regulamento de cadeias livres de desmatamento (EUDR) e a proibição de produtos feitos com trabalho forçado, entre outros.
Esses regulamentos permitem condicionar fluxos de capitais, disciplinar tecnologias críticas, definir parâmetros ambientais globais e impor requisitos de due diligence a empresas estrangeiras, transformando o acesso ao vasto mercado europeu em ferramenta de negociação estratégica.
Para o Brasil, os regulamentos que apresentam maior potencial de impacto, para os autores do estudo, são o CBAM, o EUDR e a proibição de produtos feitos com trabalho forçado, o que exigirá reforçar políticas de precificação de carbono, normas e procedimentos para monitorar, relatar e verificar emissões, desmatamento ou outros indicadores ambientais e investir em rastreabilidade setorial.
As estratégias geoeconômicas tanto dos EUA como da União Europeia são não apenas barreiras ao livre comércio, como também são fontes de incertezas consideráveis para o comércio mundial.
No caso dos EUA, além de objetivos extraeconômicos, como ficou claro na justificativa do “tarifaço” contra o Brasil, o pouco embasamento técnico na definição das alíquotas recíprocas acima de 10%, e os recuos, como no caso da negociação com a China, a contestação jurídica aos instrumentos utilizados para aumentar as tarifas, como mencionado acima, geram grande incertezas.
No caso da União Europeia, quanto à EUDR, o sistema de classificação de países foi rejeitado pelo Parlamento Europeu em jul/25, devido a preocupações sobre a qualidade e a atualidade dos dados usados.
Quanto ao CBAM, até o momento, a Comissão Europeia não publicou os benchmarks de emissões necessários para calcular com precisão as obrigações definitivas. Sem esses parâmetros, as empresas não conseguem estimar custos de forma confiável. Há valores padrão definidos para uso durante a fase de transição, mas ainda não existe clareza plena sobre sua aplicação em 2026 em diante.
Sabe-se que, no regime definitivo, os dados de emissões terão de ser verificados por organismos acreditados, mas os critérios técnicos, prazos e mecanismos de acreditação ainda não foram publicados. Isso dificulta que empresas e verificadores se preparem com antecedência.
Incerteza, por um lado, mas oportunidades ou brechas para “contra-ataque”, de outro. É o que este quadro pode significar se mantivermos uma postura pragmática e reforçarmos nossa atuação técnico-diplomática.
O Brasil pode transformar requisitos regulatórios da UE em argumentos de valor, enfatizam Thorstensen e sua equipe. A matriz elétrica majoritariamente renovável pode reduzir custos relativos sob o CBAM, apresentando vantagem frente a concorrentes com maior pegada de CO2. A agricultura de baixo carbono pode se tornar ativo estratégico para conquistar espaço no mercado europeu.
O Acordo Mercosul-União Europeia, por sua vez, pode se transformar em plataforma para monetizar sustentabilidade como diferencial competitivo, se prevalecer a ideia de “descarbonização aberta” (multilateral e baseada em regras internacionais claras).
No caso americano, a contestação jurídica dos dispositivos usados pelo governo para elevar tarifas se torna um campo a ser explorado, inclusive, com auxílio da pressão de empresas privadas americanas com relações de comércio e investimento importantes com o Brasil.
Por fim, na China, adota-se uma prática de sanções discricionárias e, por vezes, dissimuladas de requisitos técnico-sanitários, embora tenha avançado na formalização dos seus instrumentos.
Nos últimos anos, não foram registradas sanções formais impostas pela China contra o Brasil. Contudo, ocorreram episódios de medidas sanitárias e de barreiras técnicas, que também podem ter funcionado como sanções informais.
Em 2021, por exemplo, casos de BSE (Encefalopatia Espongiforme Bovina) levaram à suspensão das exportações brasileiras de carne bovina para a China entre setembro e dezembro, e a demora na liberação foi interpretada por analistas como um sinal do poder de Pequim e da vulnerabilidade brasileira, diante da elevada concentração de suas exportações em um único mercado.
Cabe ainda mencionar o risco das chamadas “sanções secundárias” dos EUA, dada nossa dependência do mercado chinês e a intensidade da disputa EUA-China. Apenas para ilustrar nossa exposição a este conflito, em 2024, enquanto registramos déficit comercial de US$ 284 milhões com os EUA, acumulamos US$ 30,7 bilhões de superávit com a China.
Sanções secundárias são medidas que penalizam entidades de terceiros países, inclusive bancos, exportadores ou importadores, que realizam negócios com empresas ou setores chineses sob sanção. Essas sanções são operacionalizadas pelo Office of Foreign Assets Control do Departamento do Tesouro (sanções financeiras) e pelo Bureau of Industry and Security do Departamento de Comércio (transferências de tecnologia, acesso a insumos americanos etc.).
Uma empresa exportadora brasileira que, além de fornecer à China, utilize serviços financeiros em dólares de bancos norte-americanos, pode enfrentar dificuldades se a contraparte chinesa estiver na lista de entidades sancionadas pelo OFAC. O risco é maior para empresas em setores sensíveis.
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