A Condenação de Lula pelo TRF-4 e o divisor de águas na sociedade brasileira – breve análise político-existencial
Nenhuma sociedade atravessa uma situação semelhante à vivida política e institucionalmente pelo Brasil atual sem deixar marcas profundas no s
Nenhuma sociedade atravessa uma situação semelhante à vivida política e institucionalmente pelo Brasil atual sem deixar marcas profundas no solo da vida coletiva, no relacionamento interpessoal e nos sentidos existenciais dos indivíduos.
O julgamento do ex-presidente Lula em segunda instância no próximo dia 24 de janeiro no TRF-4, cujo resultado de confirmação da sentença do juiz Moro já é tido como certo, representa um momento decisivo de uma escalada autoritária que começou há alguns anos e que deixará cicatrizes por longo tempo entre os cidadãos brasileiros. Não pretendo aqui analisar os vícios e absurdos da denúncia do ministério público e da sentença que condena o ex-presidente sem nenhuma prova, ou, mais explicitamente, que o faz contrariamente às provas de sua inocência incluídas pela defesa nos autos do processo; esse trabalho já está feito por pessoas muito mais qualificadas do que eu e se encontra amplamente disponibilizado em vários meios digitais e impressos [i]. Disponho-me aqui a analisar as prováveis consequências ético-políticas do fato e das atitudes pessoais diante do mesmo, pois, reafirmo, não estamos diante de um acontecimento qualquer, mas de um fato com imensas repercussões para a democracia, as liberdades e a vida social brasileiras.
O momento em questão é semelhante a diversos outros acontecimentos históricos de alta significação, tais como: (a) o caso Dreyfus, na França de fins do século XIX; (b) os primeiros atos legais do regime nazista contra os judeus, a partir de 1933; (c) a luta de Mohandas Gandhi, contra o domínio britânico e pela soberania do povo indiano; (d) o julgamento de Rivonia que condenou Nelson Mandela e várias outras lideranças do Congresso Nacional Africano, em 1964, pelo judiciário do regime racista na África do Sul; (e) o movimento dos direitos civis e a morte de Martin Luther King, nos anos 1960, nos EUA; (f) o golpe de estado de Pinochet, em 1973, e o regime sanguinário que o seguiu.
Esta é apenas uma pequena lista dentre os mais conhecidos acontecimentos que marcaram sociedades no mundo moderno. Embora haja grandes distinções entre todos os momentos mencionados, há algo comum que a todos eles perpassa: para o bem ou para o mal, todos eles foram marcos definidores que mudaram a história de suas sociedades e obrigaram os contemporâneos a assumir uma posição determinada a respeito da situação específica. A indiferença das pessoas no tocante a tais eventos foi progressivamente impossibilitada, porque aqueles se tornaram questões fundamentais da sociedade, das quais não se poderia escapar ou evadir-se. Em acréscimo, tal aspecto comum veio a se caracterizar, no decorrer do tempo, pela legitimação de apenas uma posição, dentre aquelas em disputa, como digna, civilizada e humana, a despeito de que, à época de cada um dos acontecimentos, os conflitos pessoais e sociais a seu respeito fossem fortíssimos. Nos dias atuais, todas as pessoas esclarecidas sabem que: (a) Alfred Dreyfus foi julgado e condenado sem provas, por interesses escusos de proteção a funcionários hierarquicamente superiores e pelo antissemitismo contra a pessoa do réu; (b) os atos legais nazistas contra os judeus, além de anti-humanos por si mesmos, faziam parte de uma estratégia geral de aniquilação de tais pessoas; (c) a luta de Gandhi foi justa e por um princípio hoje mundialmente reconhecido, tendo esse líder entrado para o panteão mítico do século XX; (d) Nelson Mandela tornou-se reconhecido e mundialmente aclamado por sua luta contra o apartheid, seu governo e seu comprometimento com a justiça e a paz; (e) Martin Luther King, mundialmente reconhecido e aclamado, tornou-se um mártir da paz e dos direitos civis, também ingressando, juntamente com Gandhi e Mandela, no âmbito dos mitos inspiradores dos tempos modernos; (f) a figura de Augusto Pinochet ombreia-se hoje com a de tiranos da qualidade de Hitler, Mussolini e Stalin, por ter liderado um regime de torturas e terror que aniquilou milhares de pessoas.
Hoje, é fácil reconhecer tudo isso. A história, por meio da luta, comprometimento e sangue derramado de muitas pessoas, tornou límpido tal reconhecimento para nós que não vivenciamos aqueles momentos. Às vezes, pela facilidade em reproduzir esses julgamentos já realizados pela história, sequer nos damos conta do esforço, da envergadura moral, do comprometimento consigo mesmo e com a humanidade em cada um, por parte das pessoas que sustentaram com suas vidas esse mesmo reconhecimento enquanto vivenciavam tais situações em carne e osso, contrapondo-se às opiniões majoritárias e aos sistemas sociais, políticos e econômicos que lhes davam suporte. Em suma: ser contrário à ditadura de Pinochet hoje e fora do Chile é muito fácil; fazer isso na sociedade chilena dos anos 1970 era algo completamente diferente.
De forma semelhante aos momentos mencionados, mantidas todas as diferenças históricas, sociais e políticas, a sociedade brasileira aproxima-se de um momento decisivo que a marcará por muitos anos e estará gravada na vida de milhões de brasileiros. Trata-se, ao fim e ao cabo, de como a sociedade e os indivíduos se posicionarão diante da condenação e eventual prisão do ex-presidente Lula, sem provas, com o fito de afastá-lo definitivamente das eleições presidenciais de 2018, consolidando-se, assim, uma ditadura judicial-midiática iniciada com o golpe de 2016.
Trata-se de um daqueles momentos em que a história cobra de cada um, inexoravelmente, uma posição explícita a respeito de acontecimento fulcral e definidor de um tempo. Certamente que parte considerável das pessoas tenta fugir ao peso de ter que assumir uma posição clara perante as demais, porque em tal momento a escolha pessoal não define um ato cotidiano qualquer, mas revela de forma incisiva o modo estrutural como alguém se porta diante da situação inescapável de ter que assumir a responsabilidade por seu posicionamento no mundo e pela estrutura do próprio mundo que supõe defender. O peso em assumir seu posicionamento se expressa para muitas pessoas porque, em tais situações, pouco valem as racionalizações, as desculpas, os discursos floreados, as promessas de boas intenções; a pessoa está envolvida, quer queira, quer não, em carne e osso na situação e não serão palavras abstratas posteriores que poderão legitimá-la perante os demais e o devir. Nessas situações cruciais, o que vale é a atitude indivisível pela qual a pessoa se manifesta no mundo. A condição humana em tais situações, com todas as possíveis implicações relacionadas, já foi há muito estudada por um ramo da filosofia hoje já clássico – a Filosofia da Existência, tal como expressa por autores como Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Sartre, entre outros.
Alguns podem supor evadir-se da situação ou ignorá-la ao adotar postura de indiferença ou desqualificação do assunto em pauta. A história não é, entretanto, tão complacente nesses momentos quanto possam pensar essas pessoas. Haverá sempre um preço a pagar por qualquer postura que a pessoa assumir, inclusive a indiferença. Hoje está claro que todos aqueles, inclusive judeus, que inicialmente não se posicionaram de forma clara e firme contra as primeiras leis antijudaicas do III Reich nada mais fizeram do que contribuir com o fortalecimento das investidas mais brutais dos nazistas na consolidação do terror totalitário; hoje, ninguém reconheceria como legítima a posição de alguém que afirmasse naquela ocasião que tudo aquilo não lhe dizia respeito – tal atitude de alheamento configuraria por si mesma expressão de barbárie. Adicionalmente, quem se assume indiferente diante de tais situações deslegitima-se a si mesmo porque recai em autocontradição, uma vez que não lhe é indiferente viver em uma democracia ou em uma ditadura; antes, tal pessoa pretende ter todos os benefícios da vida em uma sociedade livre e democrática, sem se comprometer com a defesa dos princípios que tornam possível a sua existência.
Não estamos, no caso do julgamento sem provas do ex-presidente, diante de uma eleição livre e limpa em que todas as posições em disputa são legítimas e respeitáveis e qualquer um tem o direito fundamental de defender a sua opinião como um dos lados da disputa. Pode-se ter opinião a respeito de qualquer coisa, embora nem todas possam ser legítimas, desde que a pessoa acate as consequências de sua própria expressão. Alguém pode, ainda hoje, ter a opinião de que não houve o genocídio de judeus no regime nazista (e ainda há pessoas que assim pensam), do mesmo modo como alguém pode ter a opinião de que o mundo foi criado em seis dias literais de 24h (outros também pensam assim) – a primeira opinião não possui legitimidade civilizatória, democrática, nem histórica, e a segunda não possui legitimidade científica. O fato concreto é que estamos diante de uma condenação do ex-presidente Lula, sem provas – afirmam-no dezenas de juristas que analisaram o processo e até alguns jornalistas de direita, e os próprios acusadores não conseguem provar a acusação. Como já afirmado, isso não é uma novidade histórica. Não é e nunca foi um processo justo, ou “luta contra a corrupção” – esse slogan já foi desmentido por inúmeros outros acontecimentos; a falta de interesse do ministério público e do judiciário em investigá-los e processar as pessoas que cometeram crimes a eles relacionados, com provas materiais robustas e insofismáveis, dissolve aquele lema por completo. A história é pródiga em mostrar que a razão e o compromisso com a verdade não são matérias abundantes, a não ser post factum. Por essa razão, não é de estranhar que haja milhões de brasileiros que, independentemente de prova, desejam e propugnam a condenação do ex-presidente; fundamentam-se tão somente nos seus desejos e opções políticas mais inconfessáveis, na adesão aos desejos da classe dirigente brasileira e na formalidade do processo judicial – a razão está completamente alheada de seu próprio posicionamento. Alguém, portanto, pode ter a opinião de que Lula deve ser condenado nas condições atuais, mas essa opinião não tem valor civilizatório, nem democrático, posto não haver prova que a corrobore, além de muitos outros problemas de legitimidade jurídica já analisados por juristas conceituados[ii]. Muitos, na África do Sul do apartheid, também tinham a opinião de que Mandela deveria ser condenado e preso eternamente, por sua luta contra o regime racista; hoje, os herdeiros dessa opinião e os que ainda a nutrem não têm a coragem de macularem-se a si mesmos ao emiti-la – são fascistas sob disfarce.
A história já nos mostrou que regimes totalitários são capazes de suprimir fatos da mentalidade da população. Aliás, nenhum regime totalitário sobrevive sem buscar definir a história a seu modo. O fato de que procuradores e juízes condenem sem prova o ex-presidente Lula é algo grave, mas não singular historicamente. A favor deles se encontra o poder temporal de fazê-lo contra os fatos, na tentativa de suprimir a estes por meio do ato de força da própria sentença convertida em fato. Entretanto, já agora estão disponíveis diversos meios de prova que, apesar de não deterem a força de se impor sistemicamente, terão o poder, no Brasil e em outros países, de deixar registrada a violência institucional praticada e apontar claramente os seus perpetradores e apoiadores ativos e indiferentes.
A classe dirigente brasileira quer impor a todos a aceitação resignada de uma mentira manifesta, como se todos tivessem que, pelo medo, reproduzir o absurdo de que 2 + 3 = 7. Muitos se prestam a esse papel, a começar dos procuradores e juízes que operam o cenário, incluindo-se aqueles que os apoiam e os que imaginam ficar alheios à questão. Por esse ato, renunciam a sua própria dignidade para habitar o mundo humano e regridem ao estágio da lei do mais forte, por mais que, em palavras apenas, afirmem-se democratas. O preço histórico e existencial será cobrado da sociedade brasileira e de cada brasileiro que apoiou ou se omitiu diante do ato bárbaro do juízo de exceção contra o ex-presidente Lula, encomendado para dar continuidade ao projeto golpista, e agora ditatorial, iniciado em 2016.
Condenar alguém sem provas, em um juízo de exceção, com o fito de destruir a democracia brasileira é uma possibilidade histórica, que pode diferir em grau, mas que é da mesma natureza bárbara e violenta do processo contra Dreyfus, das leis antijudaicas nazistas, dos processos imperiais contra Gandhi e os que lutaram pela independência da Índia, da perseguição racista a Mandela e a Martin Luther King, dos métodos da ditadura de Pinochet empregados contra os que resistiram ao golpe de estado por ele perpetrado. Todo cidadão é livre para posicionar-se favoravelmente a qualquer um desses acontecimentos que agrediram e agridem os fundamentos do mundo comum; não tem, entretanto, a legitimidade de fazê-lo com a expectativa de que possa ser bem recebido na comunidade humana, porque aquele que julga ter o direito de sobrepor cegamente suas preferências às regras que possibilitam a convivência por entre a pluralidade humana expressa, por esse seu ato, sua própria limitação antropológica para compreender com integridade o sentido de “viver com”, na medida que é incapaz de transcender o seu próprio autocentramento.
Recife, 31 de dezembro de 2017.
José Policarpo Junior - doutor em Educação (PUC-SP) e professor titular da UFPE.
[i] Para os que ainda não se informaram suficientemente, há, entre inúmeras outras fontes excelentes, os seguintes textos e documentários disponíveis:
A VERDADE DE LULA. Documentos provam cessão de direitos do Triplex. 20/jun/2017. Disponível em: http://www.averdadedelula.com.br/pt/2017/06/20/documentos-provam-cessao-de-direitos-do-triplex/
A VERDADE DE LULA. OAS é dona do Triplex, reafirma a defesa. 26/jun/2017. Disponível em: http://www.averdadedelula.com.br/pt/2017/06/26/oas-e-dona-do-triplex-reafirma-a-defesa/
BRASIL DE FATO. Denúncia contra Lula é política, baseada em hipóteses e não em fatos, diz jurista. 14/set/2016. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/09/14/denuncia-contra-lula-e-politica-baseada-em-hipoteses-e-nao-em-fatos-diz-jurista/
LACERDA, Fernando Hideo I. Breves considerações sobre a sentença contra Lula. 13/jul/2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/breves-consideracoes-sobre-a-sentenca-contra-lula-por-fernando-hideo-i-lacerda
MANCE, Euclides. Falácias de Moro: análise lógica da sentença condenatória de Luiz Inácio Lula da Silva – Processo no. 5046512-94.2016.4.04.7000. Passo Fundo: IFIBE, 2017.
MEDEIROS, Sérgio. Lula e a fragilidade assustadora da peça de acusação firmada por Moro. 14/jul/2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/fora-pauta/lula-e-a-fragilidade-assustadora-da-peca-de-acusacao-firmada-por-moro-por-sergio-medeiros
PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; RICOBOM, Gisele; DORNELLES, João Ricardo. Comentários a uma Sentença Anunciada – o processo Lula. Bauru: Canal 6, 2017.
REDE BRASIL ATUAL. Pedro Serrano: o sistema penal não soluciona o problema da corrupção. 21/set/2017. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/09/pedro-serrano-o-sistema-penal-nao-soluciona-o-problema-da-corrupcao
SILVA JARDIM, Afranio. Breve análise da sentença que condenou o ex-presidente Lula e outros. 13/jul/2017. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/breve-analise-da-sentenca-que-condenou-o-ex-presidente-lula-e-outros-por-afranio-silva-jardim
TV 247. Entrevista com Luiz Moreira – Prof. de Direito Constitucional. 19/dez/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x5Uewhu__mA
TV 247. TV Espanhola destaca perseguição a Lula e Cristina. 27/dez/2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ave8tIOw6K0
ZANIN MARTINS, Cristiano; TEIXEIRA ZANIN MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael et. al. O Caso Lula: a luta pela reafirmação dos direitos fundamentais no Brasil. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017.
[ii] Conferir os diversos artigos de mais de uma centena de juristas que compõem a obra já mencionada: PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; RICOBOM, Gisele; DORNELLES, João Ricardo. Comentários a uma Sentença Anunciada – o processo Lula. Bauru: Canal 6, 2017.
FONTE: GGN
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