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Carlos Serrano Ferreira

A história não anda para trás

A questão sobre a qual fui desafiado a escrever éo processo de desindustrialização e financeirização brasileirae a possibilidad

Publicado em 29/05/2019
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A questão sobre a qual fui desafiado a escrever é o processo de desindustrialização e financeirização brasileira e a possibilidade de reversão dessa tendência histórica inegável. Sobre a descrição desse processo há farta literatura, e – em artigo sobre o governo Temer publicado neste jornal – já referi este fenômeno e suas implicações políticas, apontando que “a vitória da estratégia golpista significou a vitória do bloco da oligarquia primário-exportadora e do setor financeiro” (FERREIRA, 2018, p.9). A questão que se coloca, fundamentalmente, é se é possível desconstruir essa tendência, negá-la, e retornar a outro modelo de acumulação, que poderíamos denominar de fordista, industrial, produtivo, entre outros, conforme o gosto do autor, de sua escola de pensamento ou de suas idiossincrasias. A resposta pode não ser agradável ou simplista, mas é um talvez. Caso se trate de um padrão capitalista de produção, a resposta é não; se for um não-capitalista, que o supere, a resposta é sim, ainda que, infelizmente, sua concretização é uma possibilidade, não uma certeza apriorística.


A vitória política desse setor é a culminância de um processo que tem por base uma prévia vitória econômica, que foi se consolidando desde meados dos anos oitenta, independentemente das orientações ideológicas, de neoliberais radicais como Fernando Collor (1990-1992), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) ou Michel Temer (2016-2019) à social-democracia liberal dos governos petistas de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). E desde os anos noventa vivemos a continuidade de uma política macroeconômica que se tornou blindada: o tripé câmbio flutuante, metas de inflação e metas de superávit primário, com a liberalização da conta capital (LAVINAS; GENTIL, 2018).

Esta tendência foi imune mesmo às variações conjunturais do crescimento econômico, quando tanto o peso das indústrias retrocede, como há uma especialização regressiva, com o crescimento na indústria dos setores ligados às commodities e “os saldos comerciais com o exterior dependem de forma crescente dos saldos dos setores não industriais da economia e dos setores menos intensivos em tecnologia da indústria, indicando um ‘empobrecimento’ da pauta exportadora nacional” (ARAÚJO, BRUNO & PIMENTEL, 2012, p.427-428).

Essa realidade é irmã siamesa da financeirização da economia brasileira. E esta não é um produto de uma política particular, mas são estas políticas particulares produtos da financeirização. Contudo, como nos ensina o marxismo, a realidade é uma totalidade, ainda que constituída por contradições, determinações, mediações e componentes que são, em determinado nível de abstração, parcialmente totalidades em si mesmas. A economia capitalista é uma totalidade, e a economia brasileira não pode ser tomada de forma isolada. Claro está, como demonstraram os teóricos marxistas da dependência, que as economias dependentes são determinadas pela sua posição nessa totalidade, o que implica, por sua vez, que existem outras posições, que estão dialeticamente relacionadas com as demais, o que não implica, por sua vez, uma reprodução pura e simples, como se pensou em determinado momento de nosso pensamento econômico e social. Contudo, esta posição diferenciada, mais do que criar possibilidades distintas, as limita, e impõe que os grandes marcos sistêmicos, como a financeirização, sejam não só reproduzidos, mas que o façam de forma ampliada e degenerada. As unidades do sistema têm sua margem de ação determinada pela totalidade sistêmica. Por isso, ao se discutir a possibilidade ou não de superação da financeirização do Brasil, é preciso saber se esta é uma característica intrínseca da atual etapa do capitalismo, ou apenas conjuntural, e por isso, modificável. Ou seja, é possível na atualidade um capitalismo não financeirizado?

Antes, tentemos definir financeirização. É um novo regime de acumulação, a nova fase do capitalismo, marcada pelo controle da economia em geral pelas finanças, sobrepujando a produção e o comércio, que passam a estar controlados pela lógica do capital financeiro, cada vez mais autônomo das determinações produtivas reais, sendo uma tendência que se alastra por todos os campos da vida. Esta fase do capitalismo é a superação dialética decadente da fase madura do sistema, o imperialismo, que se encontra subsumido, mas não anulado. Desta forma, é a exacerbação e vitória definitiva universal dos traços parasitários já apontados por Lênin em relação ao imperialismo, quando afirmava a existência de uma “[...] tendência para a estagnação e para a decomposição, inerente ao monopólio, [que] continua por sua vez a operar e em certos ramos da indústria e em certos países há períodos em que consegue impor-se” (LENINE, s.d.).

Porém, por que a financeirização se impôs? Ela é a adaptação possível das relações de produção capitalistas às novas forças produtivas, que transbordam o capitalismo, geradas pela Revolução Científico-Técnica (RCT) de meados do século passado, “e por isso não pode ser plenamente absorvida e integrada a tais formas econômicas” (MARTINS, 2011, p.20). E cada passo, imposto pela própria dinâmica sistêmica, de introdução de novas tecnologias, como o avanço da automatização, só pode gerar mais crise e impossibilidade de realização da produção capitalista. A contradição entre forças produtivas socializantes e propriedades cada vez mais privadas não pode se solucionar mais no âmbito da produção, por isso há “uma transferência cada vez mais acentuada da produção para a propriedade” (PAULANI, 2016, p. 534), sendo por isso necessário ao capital fugir da produção e se encapsular no mundo da especulação e das finanças. Contudo, para isso, era necessário derrotar a organização dos trabalhadores, o que engendrou o neoliberalismo. Contudo, o que criou a janela de oportunidade para isso e para uma nova fase de crescimento capitalista, agora já em sua forma financeirizada, foi a derrota das experiências de transição socialista, com a vitória dos setores internos restauracionistas. Contudo, como demonstram os últimos trinta anos, este crescimento é parasitário, sem geração de riqueza real ou melhorias no emprego, salários e na vida dos trabalhadores. Pelo contrário, há um retrocesso civilizacional que caminha pari passu com o parasitismo financeiro, que se expressa no recurso a formas de acumulação primitiva, como as privatizações predatórias e a colonização financeira das previdências e seguridades sociais.

Sendo assim, a financeirização é não uma fase conjuntural, mas a forma necessária do capitalismo contemporâneo. Claro que variantes se apresentarão, como no caso brasileiro, onde há a centralidade da gestão da dívida pública, com efeito concentrador de riqueza (LAVINAS; GENTIL,2018, p.197).

A conclusão fundamental é que, ao contrário da vontade utópica dos neodesenvolvimentistas, a história não dá marcha atrás por nossa vontade. “Não somos nós que geramos a fecha do tempo. Muito pelo contrário, somos seus filhos” (PRIGOGINE, 1996, p.12). Isto nos impõe, se temos compromissos com uma perspectiva progressista, assumir não a ilusória busca por um paraíso perdido, mas a construção de um mundo novo. Afinal, este mesmo paraíso passado foi sempre uma ilusão para as maiorias, como testemunham as condições miseráveis de que padecem grande parte dos trabalhadores do Brasil e do mundo. E os que gozaram desse paraíso perdido gozam hoje do paraíso financeiro. A única possibilidade de escaparmos da espiral financeira é superar o capitalismo.

Bibliografia 

ARAÚJO, E.; BRUNO, M.; PIMENTEL, D. Regime cambial e mudança estrutural na indústria de transformação brasileira: evidências para o período (1994-2008). Revista de Economia Política, v.32, n.3 (128), pp. 424-444, jul.-set. 2012.

FERREIRA, C. S. Brasil, um país que se apequena. Jornal dos Economistas, n.342, pp.8-9, fev. 2018.

LAVINAS, L.; GENTIL, D. L. Brasil Anos 2000: a política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, v.37, n.2, pp.190-211, mai.-ago. 2018.

LENINE, V.I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. s.d. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap8.htm . Acesso em: 11 mai. 2019.

MARTINS, C. E. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2011.

PAULANI, L. M. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, v.36, n.3, pp. 514–535, 2016.

PRIGOGINE, I. O Fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: EdUnesp, 1996.

Carlos Serrano Ferreira é vice-coordenador do LEHC/UFRJ e bolsista da Cátedra UNESCO Educação, Cidadania e Diversidade Cultural
(ULHT, Portugal).

Agradeço a Denise Lobato Gentil e Carlos Eduardo Martins por algumas sugestões, em particular de bibliografia, sendo contudo os erros e conclusões dos mesmos de inteira responsabilidade do autor.

Fonte: Corecon-RJ

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