A iminente revolução financeira global
Críticos estrangeiros há muito se irritam com o "exorbitante privilégio" do dólar norte-americano como moeda global de reserva. Os EUA podem
Críticos estrangeiros há muito se irritam com o "exorbitante privilégio" do dólar norte-americano como moeda global de reserva. Os EUA podem emitir essa moeda apoiada por nada além da "plena fé e crédito dos Estados Unidos". Governos estrangeiros, com necessidade de dólares, não só os aceitam no comércio, mas compram títulos norte-americanos com eles, efetivamente financiando o governo dos EUA e suas guerras estrangeiras. Mas nenhum governo foi poderoso o suficiente para quebrar esse arranjo... até agora. Como isso aconteceu e o que significará para as economias dos EUA e do mundo?
A Ascensão e Queda do Petrodólar
Primeiro, um pouco de história: O dólar norte-americano foi adotado como moeda global de reserva na Conferência de Bretton Woods em 1944, quando o dólar ainda era garantido por ouro nos mercados globais. O acordo era que o ouro e o dólar seriam aceitos intercambiavelmente como reservas globais, com os dólares a serem resgatáveis em ouro, sob demanda, a 35 dólares a onça. As taxas de câmbio de outras moedas eram fixadas em relação ao dólar.
Mas esse acordo foi quebrado depois que a política de "armas e manteiga" do presidente Lyndon Johnson exauriu o caixa dos EUA financiando a guerra no Vietnã junto com seus programas sociais domésticos da "Grande Sociedade". O presidente francês Charles de Gaulle suspeitando que os EUA estavam ficando sem dinheiro, resgatou uma grande parte dos dólares da França em ouro e ameaçou sacar o resto. Outros países seguiram o exemplo ou ameaçaram fazê-lo.
Em 1971, o presidente Richard Nixon acabou com a conversibilidade internacional do dólar por ouro (conhecido como o "fechamento da janela do ouro"), a fim de evitar a drenagem das reservas de ouro dos EUA. O valor do dólar então despencou em relação a outras moedas nas bolsas globais. Para recuperá-lo, Nixon e o Secretário de Estado Henry Kissinger fizeram um acordo com a Arábia Saudita e os países da OPEP de que o cartel venderia petróleo apenas em dólares, e que os dólares seriam depositados em Wall Street e nos bancos da cidade de Londres. Em troca, os EUA defenderiam militarmente os países do cartel. O pesquisador econômico William Engdahl também apresenta evidências de uma promessa de que o preço do petróleo seria quadruplicado. Uma crise do petróleo, desencadeada por uma breve guerra no Oriente Médio, fez com que o preço do petróleo quadruplicasse, e o acordo com a OPEP foi firmado em 1974.
O acordo manteve-se firme até 2000, quando Saddam Hussein o quebrou vendendo petróleo iraquiano em euros. O presidente líbio Muammar Gaddafi seguiu o exemplo. Ambos os presidentes acabaram assassinados e seus países foram dizimados em guerra com os Estados Unidos. O pesquisador canadense Matthew Ehret observa:
"Não devemos nos esquecer que a aliança Sudão-Líbia-Egito sob a liderança combinada de Mubarak, Gaddafi e Bashir, havia se movido para estabelecer um novo sistema financeiro lastreado em ouro fora do FMI/Banco Mundial para financiar o desenvolvimento em larga escala na África. Se este programa não tivesse sido prejudicado pela destruição da Líbia liderada pela OTAN, pela divisão do Sudão e pela mudança de regime no Egito, o mundo teria visto, pela primeira vez na história, o surgimento de um grande bloco regional de estados africanos moldando seus próprios destinos fora do jogo de finanças manipulado pelos EUA e Reino Unido.
A Ascensão do Petrorublo
O primeiro desafio de uma grande potência, ao que ficou conhecido como petrodólar, chegou em 2022. No mês seguinte ao início do conflito com a Ucrânia, os EUA e seus aliados europeus impuseram pesadas sanções financeiras à Rússia em resposta à invasão militar ilegal. As medidas ocidentais incluíram o congelamento de quase metade das reservas de 640 bilhões de dólares do banco central russo, a expulsão de vários dos maiores bancos da Rússia do sistema global de pagamentos SWIFT, a imposição de controles de exportação destinados a limitar o acesso da Rússia a tecnologias avançadas, o bloqueio de seu espaço aéreo e portos para aviões e navios russos e a determinação de sanções pessoais contra altos funcionários russos e magnatas de alto perfil. Os russos preocupados correram para retirar rublos de seus bancos, e o valor do rublo caiu nos mercados globais assim como o dólar americano tinha caído no início da década de 1970.
A confiança colocada no dólar americano como moeda global de reserva, apoiada pela "plena fé e crédito dos Estados Unidos", tinha finalmente sido totalmente quebrado. O presidente russo Vladimir Putin disse, em um discurso em 16 de março, que os EUA e a UE tinham descumprido suas obrigações e que o congelamento das reservas da Rússia marcava o fim da confiabilidade dos chamados ativos de primeira classe. Em 23 de março, Putin anunciou que o gás natural da Rússia seria vendido, para "países hostis", apenas em rublos russos, em vez dos euros ou dólares atualmente usados. Quarenta e oito nações são apontadas pela Rússia como "hostis", incluindo Estados Unidos, Grã-Bretanha, Ucrânia, Suíça, Coreia do Sul, Cingapura, Noruega, Canadá e Japão.
Putin observou que mais da metade da população global mantém relações "amigáveis" com a Rússia. Os países que não votaram a favor do apoio às sanções incluem duas grandes potências – China e Índia – juntamente com Venezuela, grande produtora de petróleo, Turquia e outros países do "Sul Global". Países "amigáveis", disse Putin, agora poderiam comprar da Rússia em várias moedas.
Em 24 de março, o legislador russo Pavel Zavalny disse em uma conferência de imprensa que o gás poderia ser vendido para o Ocidente em rublos ou ouro, e para países "amigáveis" em moeda nacional ou bitcoin.
Ministros de energia das nações do G7 rejeitaram a exigência de Putin, alegando que ela violava termos dos contrato de fornecimento de gás que exigiam que o pagamento fosse em euros ou dólares. Mas em 28 de março, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que a Rússia "não estava envolvida em caridade" e não fornecerá gás para a Europa gratuitamente (o que o país estaria fazendo se as vendas fossem em euros ou dólares que não poderiam ser usados atualmente no comércio). As sanções em si são uma violação do acordo para honrar as moedas nos mercados globais.
A Bloomberg informou que, em 30 de março, Vyacheslav Volodin, presidente da câmara baixa do parlamento russo, sugeriu em um post no Telegram que a Rússia poderia expandir a lista de commodities para as quais exigiria o pagamento do Ocidente em rublos (ou ouro) para incluir grãos, petróleo, metais e muito mais. A economia da Rússia é muito menor do que a dos EUA e da União Europeia, mas a Rússia é um grande fornecedor global de commodities-chave – incluindo não apenas petróleo, gás natural e grãos, mas madeira, fertilizantes, níquel, titânio, paládio, carvão, nitrogênio e metais de terras raras usados na produção de chips de computador, veículos elétricos e aviões.
Em 2 de abril, a gigante russa de gás Gazprom suspendeu oficialmente todas as entregas para a Europa através do gasoduto Yamal-Europa, uma artéria crítica para o suprimento europeu de energia.
O professor britânico de economia Richard Werner qualifica o movimento russo de inteligente – uma repetição do que os EUA fizeram na década de 1970. Para obter commodities russas, os países "hostis" terão que comprar rublos, aumentando o valor do rublo nas bolsas globais, da mesma forma que a necessidade de petrodólares sustentaram o dólar norte-americano após 1973. De fato, em 30 de março, o rublo já havia subido ao preço que estava um mês antes.
Uma página fora do manual de estratégias do "Sistema Americano"
A Rússia está seguindo os EUA não apenas ao atrelar a moeda nacional às vendas de uma mercadoria crítica, mas em um protocolo anterior – o que os líderes norte-americanos do século 19 chamaram de "Sistema Americano" de moeda soberana e crédito. Seus três pilares eram (a) subsídios federais para melhorias internas e para nutrir as indústrias incipientes do país, (b) tarifas para proteger essas indústrias e (c) crédito fácil emitido por um banco nacional.
Michael Hudson, professor de economia e autor de "Super-Imperialismo: A Estratégia Econômica do Império Americano" entre muitos outros livros, observa que as sanções estão forçando a Rússia a fazer o que o país relutara em fazer por si mesmo – reduzir a dependência das importações e desenvolver suas próprias indústrias e infraestrutura. O efeito, diz ele, equivale ao das tarifas de importação. Em um artigo intitulado "O Império Americano se Autodestrói", Hudson escreveu sobre as sanções russas (que na verdade datam de 2014):
"A Rússia permanecera encantada demais com a ideologia de livre mercado para tomar medidas para proteger sua própria agricultura ou indústria. Os Estados Unidos, via sanções, forneceram a ajuda necessária ao impor a autoconfiança doméstica à Rússia. Quando os Estados bálticos perderam o mercado russo de queijo e outros produtos agrícolas, a Rússia rapidamente criou seu próprio setor de queijo e laticínios – ao mesmo tempo em que se tornou o principal exportador mundial de grãos.
A Rússia está descobrindo (ou está prestes a descobrir) que não precisa de dólares norte-americanos como suporte para a taxa de câmbio do rublo. Seu banco central pode criar os rublos necessários para pagar salários domésticos e financiar a formação de capital. Os confiscos dos EUA podem, portanto, finalmente levar a Rússia a acabar com a filosofia monetária neoliberal, como Sergei Glaziev há muito vem defendendo em favor da MMT [Teoria Monetária Moderna]. ...
O que os países estrangeiros não fizeram por si mesmos – substituindo o FMI, o Banco Mundial e outros braços da diplomacia dos EUA – os políticos norte-americanos os estão forçando a fazer. Em vez de países europeus, do Oriente Médio e do Sul Global romperem a partir de seu próprio cálculo de seus interesses econômicos de longo prazo, os EUA os estão afastando, como tem feito com a Rússia e a China."
Glazyev e o reposicionamento eurasiano
Sergei Glazyev, mencionado por Hudson acima, é um ex-conselheiro do presidente Vladimir Putin e ministro da Integração e Macroeconomia da Comissão Econômica da Eurásia, o órgão regulador da União Econômica Eurasiana (UEE). Ele propôs o uso de ferramentas semelhantes às do "Sistema Americano", incluindo a conversão do Banco Central da Rússia para um "banco nacional" que emite a própria moeda e crédito da Rússia para o desenvolvimento interno. Em 25 de fevereiro, Glazyev publicou uma análise das sanções dos EUA intitulada "Sanções e Soberania", na qual ele afirmou:
"Os danos causados pelas sanções financeiras dos EUA está indissociavelmente ligado à política monetária do Banco da Rússia .... Sua essência se resume a uma vinculação estreita entre a questão do rublo para exportar lucros e a taxa de câmbio rublo dólar. Na verdade, uma escassez artificial de dinheiro está sendo criada na economia, e a política rigorosa do Banco Central leva a um aumento no custo dos empréstimos, o que acaba com a atividade empresarial e dificulta o desenvolvimento da infraestrutura no país."
Glazyev disse que se o banco central substituísse os empréstimos retirados por seus parceiros ocidentais por seus próprios empréstimos, a capacidade de crédito russa aumentaria muito, evitando um declínio na atividade econômica sem criar inflação.
A Rússia concordou em vender petróleo para a Índia na moeda soberana da Índia, a rúpia; para a China em yuan; e para a Turquia em lira. Essas moedas nacionais podem então ser gastas com os bens e serviços vendidos por esses países. Indiscutivelmente, cada país deve ser capaz de negociar nos mercados globais em sua própria moeda soberana; é isso que é uma moeda fiduciária – um meio de troca apoiado pelo acordo do povo de aceitá-la pelo valor de seus bens e serviços, apoiado pela "plena fé e crédito" da nação.
Mas esse tipo de sistema global de troca quebraria assim como os sistemas locais de troca, se uma parte do comércio não quisesse os bens ou serviços da outra parte. Nesse caso, alguma moeda de reserva intermediária seria necessária para servir como meio de troca.
Glazyev e seus colegas estão trabalhando nisso. Em uma entrevista traduzida postada no The Saker, Glazyev afirmou:
"Estamos atualmente trabalhando em um projeto de acordo internacional sobre a introdução de uma nova moeda de liquidação mundial, atrelada às moedas nacionais dos países participantes e a bens negociados em bolsa que determinam valores reais. Não precisaremos de bancos norte-americanos e europeus. Um novo sistema de pagamento baseado em tecnologias digitais modernas com blockchain está se desenvolvendo no mundo, o que diminui a importância dos bancos."
Rússia e China desenvolveram alternativas ao sistema de mensagens SWIFT que bloqueou certos bancos russos. O comentarista Alexander Mercouris, baseado em Londres, faz a interessante observação de que sair do SWIFT significa que os bancos ocidentais não podem rastrear os negócios russos e chineses.
O analista geopolítico Pepe Escobar resume os planos para um reposicionamento financeiro eurasiano/chinês em um artigo intitulado "Diga olá para o ouro russo e para o petroyuan chinês". Em suas palavras:
"Foi um longo tempo de maturação, mas finalmente alguns dos principais contornos das novas fundações do mundo multipolar estão sendo revelados.
Na sexta-feira [11 de março], após uma reunião em videoconferência, a União Econômica Eurasiana (UEE) e a China concordaram em projetar o mecanismo para um sistema monetário e financeiro internacional independente. A UEE, composta pela Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Bielorrússia e Armênia, está estabelecendo acordos de livre comércio com outras nações da Eurásia, e está progressivamente interligando-se com a Iniciativa chinesa de Cinturão e Rota (BRI).
Para todos os efeitos práticos, a ideia vem de Sergei Glazyev, o principal economista independente da Rússia ....
Bastante diplomaticamente, Glazyev atribuiu o surgimento da ideia aos "desafios e riscos comuns associados à desaceleração econômica global e medidas restritivas contra os estados da UEE e a China".
Tradução: como a China é tanto uma potência eurasiana quanto a Rússia, eles precisam coordenar suas estratégias para contornar o sistema unipolar dos EUA.
O sistema eurasiano será baseado em 'uma nova moeda internacional', provavelmente com o yuan como referência, calculado como um índice das moedas nacionais dos países participantes, bem como os preços das commodities...
O sistema eurasiano está fadado a tornar-se uma alternativa séria ao dólar norte-americano, uma vez que a UEE pode atrair não apenas nações que aderiram à Iniciativa Cinturão e Rota... mas também os principais atores da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), bem como da ASEAN (Associação da Nações do Sudeste da Ásia). Atores da Ásia Ocidental – Irã, Iraque, Síria, Líbano – estarão inevitavelmente interessados."
Privilégio exorbitante ou fardo exorbitante?
Se esse sistema for bem sucedido, qual será o efeito sobre a economia dos EUA? A estrategista de investimentos Lynn Alden escreveu em uma análise detalhada intitulada "The Fraying of the US Global Currency Reserve System" [O desgaste do sistema de reserva de moeda global dos EUA] que haverá dor de curto prazo, mas, a longo prazo, beneficiará a economia dos EUA. O assunto é complicado, mas o resultado é que o domínio do dólar como moeda de reserva resultou na destruição de nossa base fabril e no acúmulo de uma enorme dívida federal. Compartilhar esse custo com outros países teria o efeito que as sanções estão tendo sobre a economia russa – nutrindo as indústrias domésticas como faria uma tarifa, permitindo que a base fabril norte-americana fosse reconstruída.
Outros comentaristas também dizem que ser a única moeda global de reserva é menos um privilégio exorbitante e mais um fardo exorbitante. Perder esse status não acabaria com a importância do dólar norte-americano, que está muito fortemente incorporado nas finanças globais para ser desalojado. Mas poderia muito bem significar o fim do petrodólar como única moeda global de reserva e o fim das devastadoras guerras petrolíferas que ele financiou para manter seu domínio.
Publicado originalmente por Scheerpost | Traduzido por César Locatelli
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