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Sergio Gonzaga de Oliveira

A maldição dos recursos naturais

Autores que utilizaram o nível de exportação de commodities como parâmetro para medir a abundância encontraram evidências da maldição

Publicado em 07/06/2024
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Contam os antigos que Midas, rei da Frígia, atual Anatólia na Turquia, se preocupava muito com a difícil situação dos pobres de seu reino. Dedicava grande parte do tempo e do ouro que dispunha para diminuir o sofrimento dessas pessoas. As ações de Midas eram tão recorrentes e apreciadas por seus súditos que sua fama logo ultrapassou as fronteiras do reino, chegando aos ouvidos dos deuses do Olimpo. Um dia, Midas rogou à Baco, deus do vinho, que lhe ajudasse na luta contra a pobreza.

Em atenção às suas boas intenções, Baco lhe concedeu um único pedido. Midas, sem pensar, disse-lhe que gostaria de transformar em ouro tudo aquilo que tocasse, certo de que o ouro produzido resolveria todos os problemas de seu reino. Pedido aceito, Midas retornou para casa. Os primeiros momentos foram de muita euforia. Midas transformou variados objetos em artefatos de ouro. Vasos, móveis, talheres e até plantas reluziam com o toque do rei. Pouco mais tarde soou a hora do jantar. Na mesa descobriu horrorizado que todos os alimentos que tocava transformavam-se em ouro. Não havia como se alimentar.

Em completo desespero, sua filha correu para ajudá-lo. Quando tocou no pai, transformou-se em uma estátua de ouro. Midas entendeu que, ao invés de uma benção, tinha obtido uma maldição. Desesperado clamou novamente pela ajuda de Baco. O deus generoso lhe disse que a magia seria desfeita quando Midas se banhasse no rio próximo ao castelo. As águas do rio levariam para longe a maldição do ouro. Não se sabe ao certo se por conta da lenda, ou por obra de formações geológicas milenares, durante muito tempo, as areias do rio Pactolo, na Anatólia, foram ricas em pepitas de ouro.

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Em 1993, Richard Auty, economista inglês e professor da Universidade de Lancaster, cunhou a expressão “maldição dos recursos naturais” para indicar a dificuldade que países detentores de grandes reservas minerais e agrícolas têm em transformar essas riquezas em bem-estar para sua população. Assim como na lenda, a abundância de recursos naturais não seria um passaporte seguro para um futuro sem miséria e pobreza.

Entretanto, a comprovação empírica da existência dessa maldição não é uma unanimidade na ciência econômica. Existem sérias controvérsias. Essas controvérsias são resultantes de diferentes métodos de abordagem para definir o que é a abundância de riquezas naturais.

Autores que utilizaram o nível de exportação de commodities, como parâmetro para medir a abundância, encontraram evidências da maldição. A mais célebre pesquisa nesse sentido foi publicada em 1997 por Jeffrey Sachs e Andrew Warner que através da análise de uma amostra de 95 países, entre as décadas de 1970 e de 1990, encontraram uma relação inversa entre a “intensidade da exportação de recursos naturais” e o “crescimento econômico”. Em outras palavras, para esses autores, países exportadores de commodities têm encontrado muitas dificuldades em transformar essa riqueza em desenvolvimento econômico e social.[1]

Mais recentemente esse entendimento sofreu forte reversão e muitos questionamentos. Outros autores utilizaram os estoques de recursos naturais como variável chave para análise do fenômeno. Neste caso não encontraram evidências da maldição. Christa Brunnschweiler e Erwin Bulte, em artigo publicado em 2008, estudaram 60 países no período de 1970 a 2000 e descobriram uma correlação direta entre a “abundância de recursos naturais” e o “crescimento econômico”, o que significa negar a ocorrência da maldição.[2]

Mas afinal, será que a abundância ou escassez dos recursos naturais é realmente determinante para o desenvolvimento? Porque alguns países conseguiram transformar a maldição em benção e outros não? E nos dias atuais, será que a abundância das riquezas naturais pode ser um empecilho para um futuro sem miséria e pobreza? Para ajudar a esclarecer essa controvérsia vale a pena recordar um pouco da histórica econômica recente que, desde a Revolução Industrial, separou o mundo em países centrais e periféricos.

2.

A Europa Ocidental e os EEUU, a partir do final do século XVIII, durante o XIX e início do XX deram um salto econômico considerável, distanciando-se dos demais países. De forma simplificada, pode-se dizer que se formou uma espécie de círculo virtuoso entre acumulação de capital, aumento da produtividade e distribuição de renda nos países centrais e uma estagnação dessas mesmas variáveis nos países periféricos.

Uma parte desse processo de separação entre os países pode ser atribuído à forças internas ao sistema do capital, onde as empresas mais competitivas e inovadores excluem do mercado as menos capacitadas, num processo que Joseph Schumpeter denominou de “destruição criativa”. No nível internacional esse processo se reproduz, quando empresas precursoras em um determinado país, criam vantagens competitivas difíceis de serem superadas pelas empresas retardatárias de áreas periféricas.

Mais do que isso, o ambiente onde as mais competitivas e inovadoras se estabelecem promove o aumento da eficiência de toda a economia naquela região. Mais e mais excedentes, sob a forma de lucro, são gerados e destinados à busca por inovações, tanto gerenciais quanto tecnológicas, num efeito de autoalimentação que promove o que hoje se denomina de crescimento autônomo. É verdade que o crescimento autônomo não é gerado somente pelas inovações, mas essa é uma de suas principais variáveis.

A lógica do mercado aumenta continuamente a diferença entre as áreas desenvolvidas e retardatárias. De um lado, bens industrializados, de maior valor agregado, em geral com poucos fabricantes, muitas vezes em regime de monopólio, oligopólio ou competição monopolista e taxas de lucro mais altas. De outro, matérias primas abundantes, com muitos produtores em forte concorrência e taxa de lucro mais baixa.

Adicionalmente, os lucros extraordinários gerados nas regiões precursoras permitem a formação de reservas monetárias para empréstimos. Muitos países periféricos, para pagar suas importações, tomam emprestados esses recursos e, através do mecanismo dos juros, transferem uma parte da riqueza produzida da periferia para o centro. Uma vez estabelecida essa dualidade, é extremamente difícil revertê-la, tanto do ponto de vista econômico, quanto político.

Entretanto, o desenvolvimento dos países centrais não ficou a cargo somente da lógica interna associada à economia de mercado. Na maioria esmagadora dos casos os governos dos países bem-sucedidos, desde o início, protegeram suas empresas até que tivessem condições de competir no mercado internacional.

Na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, foram adotadas regras rígidas nesse sentido. Daron Acemoglu do MIT e James Robinson de Harvard em seu livro Porque as nações fracassam escrevem: “Depois de 1688, enquanto no âmbito interno iam se constituindo condições mais igualitárias, no plano internacional o Parlamento empenhava-se em ampliar as prerrogativas inglesas – o que é evidenciado não só pelas leis das madras, mas também pelas leis da navegação, a primeira das quais foi promulgada em 1651, e que permaneceriam em vigor, de um modo ou de outro, pelos 200 anos seguintes. Tais leis visavam facilitar o monopólio do comércio internacional pelos britânicos, ainda que com a particularidade de que se tratava de um monopólio não por parte do Estado, mas do setor privado. O princípio básico era que o comércio inglês deveria ser transportado em navios ingleses. As leis proibiam o transporte de bens de fora da Europa para a Inglaterra ou suas colônias por embarcações de bandeira estrangeira; vetavam também o transporte de produtos originários de outros países europeus para a Inglaterra em navios de uma terceira nacionalidade. Tal vantagem dos comerciantes e produtores ingleses naturalmente aumentava sua margem de lucro e talvez tenha incentivado inovações nesses novos e altamente rentáveis ramos de atividade”.[3]

Na mesma linha, Richard Nelson da Universidade de Columbia, em seu livro As fontes do crescimento econômico, estudando o protecionismo da economia americana no período entreguerras, escreveu: “A maioria dos países industrializados que dependiam de mercados externos viveram tempos difíceis… As indústrias norte-americanas mantiveram-se em boa parte isoladas destes problemas. O país era altamente protecionista desde a época da Guerra Civil. Nos anos 1920, apesar da crescente força da indústria norte-americana, as barreiras à importação foram incrementadas, primeiro pela Tarifa Fordney-McCumber de 1922, e mais tarde pela famosa Tarifa Hawley-Smoot de 1930. Mas o mercado interno era mais do que suficiente para sustentar um rápido crescimento da produtividade e o contínuo desenvolvimento e difusão de novas tecnologias e novos produtos”.[4]

3.

Mas a interferência do Estado não foi apenas uma questão de tarifas e barreiras alfandegárias mais elevadas. Tão importante quanto as proteções aduaneiras foram as ações dos governos para aumentar a eficiência da economia local. A produtividade cresceu com investimentos públicos e privados centrados em educação, desenvolvimento tecnológico, infraestrutura física (energia, transporte e comunicações), infraestrutura social (saúde, habitação, saneamento básico e mobilidade urbana) e aumento da eficiência da burocracia do Estado.

Esses investimentos elevaram a competividade de todas as empresas, fazendo com que o confronto com as correspondentes dos países retardatários ficasse ainda mais desigual. Além disso, essas ações, associadas à distribuição de renda, criaram, na maioria dos casos, um forte mercado interno, capaz de por si só dar sustentação e impulsionar o sistema produtivo, formando uma sólida plataforma para competir externamente.

Mas não foi só isso. Muitos países precursores se empenharam em impedir os retardatários de alcançar o desenvolvimento. Por diversos caminhos procuraram impor a liberdade de comércio no plano internacional enquanto protegiam suas empresas e seu mercado interno. Muitas vezes, com o uso da força, esses países impediram qualquer tentativa de iniciar uma produção industrial mais elaborada nos países retardatários.

Daron Acemoglu e James Robinson, já citados, escreveram: “A China nunca chegou a ser formalmente colonizada por uma potência europeia – muito embora, depois da derrota para os ingleses nas guerras do ópio, entre 1839 e 1842, e do novo mais adiante, entre 1856 e 1860, os chineses tivessem de assinar uma série de tratados humilhantes, permitindo a entrada das exportações europeias” e continuam: “O Japão … vivia sob um regime absolutista. A família Tokugawa subiu ao poder em 1600 e assumiu o controle de um sistema feudal que também baniu o comércio internacional. O Japão também enfrentou uma circunstância crítica criada pela intervenção ocidental quando quatro navios de guerra americanos, sob o comando de Matthew C. Perry, adentraram a Baía de Edo, em julho de 1853, e impuseram concessões comerciais análogas àquelas arrancadas aos chineses pela Inglaterra nas guerras do ópio”.

Em resumo, a lógica do sistema, as ações específicas de proteção dos mercados internos, o aumento da eficiência da economia e o bloqueio dos retardatários alteraram substancialmente o panorama mundial após a Revolução Industrial, criando uma espécie de divisão internacional de trabalho, que favoreceu, em muito, os países precursores.

Além disso, em muitos países periféricos as elites locais reagiram fortemente à chegada das fábricas a das técnicas mais modernas de produção. Isto porque temiam que a concentração de trabalhadores, de comerciantes e de estudantes poderia trazer novas ideias e movimentos políticos que viessem a alterar o sistema de poder vigente, onde a ordem feudal ou semifeudal estava estabelecida.

Daron Acemoglu e James Robinson, em relação à Rússia czarista, escreveram: “… em 1849, foi promulgada uma nova lei, estabelecendo severos limites ao número de fábricas que poderiam ser abertas em qualquer área de Moscou e proibindo especificamente a abertura de qualquer nova fiação de algodão ou lã e fundições de ferro. Em outros setores, como o de tecelagem e o de tingimento, seria preciso solicitar autorização ao governador militar para abrir novas unidades fabris. Pouco adiante, a fiação de algodão seria explicitamente banida por uma lei que pretendia evitar toda e qualquer concentração de trabalhadores potencialmente rebeldes na cidade”. … “A oposição às ferrovias acompanhou a oposição à indústria, exatamente como no Império Austro-Húngaro. Até 1842, havia uma única ferrovia na Rússia: a Tsarskoe Selo, que percorria os 27 quilômetros que separavam São Petersburgo das residências imperiais de Tsarskoe Selo e Pavlovsk”.

No Brasil não foi diferente. As elites locais durante todo o século XIX reagiram fortemente ao fim da escravatura, de tal forma que sua abolição formal só se deu em 1888, mais de um século depois do início da Revolução Industrial nos países precursores.

Enfim, a análise dos mecanismos e processos de separação entre desenvolvidos e subdesenvolvidos permite responder as perguntas formuladas no início deste artigo. Tudo indica que essa separação sofreu pouca ou nenhuma influência da abundância ou escassez de recursos naturais, confirmando as pesquisas empíricas mais recentes. Na verdade, o que se observa é que as trajetórias bem-sucedidas foram uma combinação das forças autônomas do mercado, associadas à indução ao desenvolvimento por um Estado determinado a atingir esse objetivo.

Aliás, essa simbiose entre crescimento autônomo e induzido pode ser observada hoje em dia na República Popular da China, onde uma boa parte da produção é privada (cerca de 60%) enquanto o Estado estabelece as diretrizes estratégicas, planeja e controla setores importantes da economia. O resultado dessa experiência é que a China cresceu a taxas próximas de 10% ao ano nas últimas quatro décadas, retirando cerca de 800 milhões de pessoas da pobreza.

De qualquer forma, independentemente das análises empíricas e dos registros históricos, é fácil constatar que existem países desenvolvidos que têm abundância de recursos naturais, como os EUA, Austrália, Canadá, Noruega, Finlândia e Nova Zelândia. Enquanto isso, outros como Nigéria, Angola, Venezuela, Iraque, Líbia, Congo, Bolívia e Sudão, apesar da fartura desses recursos, continuam subdesenvolvidos.

Com isso, é possível afirmar que o desenvolvimento, mesmo retardatário como no caso da China ou de outros países, não depende da abundância ou da escassez de riquezas naturais. O processo é fundamentalmente político e institucional. Ele se estabelece a partir de instituições capazes de planejar, executar e controlar programas e projetos de longo prazo em busca desse objetivo. Para que a maldição se transforme em benção é necessário muito mais do que implorar pela ajuda dos deuses. É preciso conhecimento aprofundado da teoria do desenvolvimento, das experiências internacionais e, acima de tudo, de vontade e ação política.

Olhando para o Brasil, pode-se dizer que o atual nível de subdesenvolvimento não foi provocado pela abundância ou escassez de recursos naturais. E sim pela incompetência das elites para estruturar uma aliança política em torno de um claro programa de desenvolvimento de longo prazo que nos retire da quase estagnação em que nos encontramos a mais de 40 anos. Enquanto isso, a pobreza, a insegurança pública, a má qualidade da educação e da saúde, o baixo nível de saneamento, a tragédia diária do transporte coletivo nas grandes cidades e muitas outras mazelas continuam infernizando a vida da maioria da população brasileira.

*Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro (UFRJ) e economista (UNISUL).

Notas

[1] Sachs, Jeffrey e Warner, Andrew. Natural Resource Abundance and Economic Growth. Center for International Development and Harvard Institute for International Development, 1997

[2] Brunnschweiler, Christa e Bulte, Erwin. The Resource Curse Revisited and Revised: a tale of paradoxes and red herrings. Journal of Environmental Economics and Management, 2008.

[3] Acemoglu, Daron e Robinson, James. Por Que as Nações Fracassam. Elsevier Editora, Rio de Janeiro, RJ, 2012.

[4] Nelson, Richard. As Fontes do Crescimento Econômico. Editora da UNICAMP, Campinas, SP, 2006.

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