Brasil, um país kafkiano!
Em mais de uma centena de línguas o adjetivo “kafkiano” se expressa como um mundo do absurdo, conotando a desumanidade absoluta, a sociedade
Em mais de uma centena de línguas o adjetivo “kafkiano” se expressa como um mundo do absurdo, conotando a desumanidade absoluta, a sociedade desestruturada da qual as raízes civilizatórias foram sendo extirpadas.
Um mundo no qual a humilhação é ao mesmo tempo imposta e consentida, assim como a servidão e o medo que lhe são inerentes e decorrentes. Um mundo que também angustia, e as angústias se generalizam, principalmente dentre aqueles inadaptados à subserviência ao Poder vigente.
E o Brasil tornou-se um país kafkiano!
E a humilhação, a servidão, o medo e a mentira constituem os novos paradigmas da dominação social por milicianos e seus aliados: os negocistas religiosos e manipuladores de opinião, que gradualmente penetram em todo tecido social!
E um país kafkiano nos remete a Joseph Kafka, “talvez por ele ter sofrido e profeticamente configurado todas as formas que o Poder assume na modernidade”. (Elias Canneti).
E Kafka nos diz: o Poder, em primeiro lugar, humilha! Em “O Processo” o Tribunal humilha pelo ato de esquivar-se. A persistência no empenho de um acusado em buscar sua absolvição ou sua condenação apenas revela a inutilidade das tentativas. A culpa ou a inocência que deveriam ser as únicas razões de um Tribunal são irrelevantes, pois as Cortes são profundamente corrompidas e importa aos que detêm o Poder manterem-nas assim, exatamente para humilhar e dominar!
No ambiente familiar, a luta de Joseph Kakfa contra o pai, numa estrutura machista, não deixou de ser algo diferente da luta contra o Poder. Na “Metamorfose”, ao transforma-se de esteio familiar em um simples inseto, K. experimenta toda a humilhação daquele que não mais pode ser útil. Sua irmã, que o substituirá como mantenedora da família, também será uma futura humilhada, ela que despreza o homem- inseto.
É verdade que em todos os seus livros, Kafka sempre se coloca ao lado dos humilhados; mas ele tinha claro que somente a busca por aliados poderia lhe proporcionar alguma sensação de força, mas a grande questão é que ele nunca os encontra. A fraternidade se evapora no ambiente kafkiano.
Logo, apenas segue a sufocá-lo a humilhação que sente em si mesmo e em todo um mundo de indefesos, que são a enorme maioria dos que não participam de alguma esfera do Poder. Eles recusam-se a levantar a cabeça e balem como ovelhas.
Um Poder, que tal qual um polvo, joga seus tentáculos em todas as atividades, corrompendo-as, prostituindo-as, e chega às próprias Cortes de Justiça, encarnado em seus funcionários- policiais- executores, afinal, esbirros todos decadentes e maus.
Em “O Castelo” temos a relação entre a humanidade impotente, domiciliada aos pés do Castelo e os funcionários públicos, a guarda pretoriana do Superior, do Príncipe. Mas para que existe um Superior, um Mito? Para as pessoas deixarem-se humilhar e psicologicamente permanecerem anuladas. E elas emudecem, adquirem o medo e não enfrentam aqueles que as submetem.
Num universo kafkiano a humilhação antecede o medo, assim como o terror os perpetua.
Ainda em “O Castelo”, o único ato de resistência ao Superior é o de uma camponesa, Amália, a qual se recusa fazer sexo com Klamm, chefe dos funcionários. Em represália, toda sua família é expulsa, exilada.
Afinal, no mundo dos humilhados ela tornara-se uma estrangeira, dissera Não!
No restante dos seres que servem ao Castelo, a fé nos deuses e a submissão ao Poder coincidem. E o servilismo das vítimas cultivado pelos funcionários é tal que torna praticamente impossível a revolta. E como ovelhas perante seus pastores, as pessoas pisoteadas NUNCA SE REVOLTAM. E balirão sempre.
Já em “A Colônia Penal” “o sentenciado humilhado e tornado culpado aparentava tamanha submissão canina que se tinha a impressão de que seria possível deixa-lo correr livremente e bastaria um simples assobio para que ele voltasse na hora da execução.”
E ao final, para os servos humilhados viver é ser condenado a estar vivo!
E o senhor K. de “O Processo” sabe o quanto qualquer vida, inclusive a sua, quando vista de perto, não deixa de ser ridícula. Porém, quando a conhecemos melhor, intimamente, a vida de todas as pessoas se torna séria, terrível e trágica. Isto ocorre no universo kafkiano no qual se transforma o Brasil, quando as pessoas se tornam alienadas de suas condições humanas básicas.
Existe um contraponto. Cada servo humilhado torna-se brutal para com seus iguais. Não é exatamente isto que ocorre em nossas periferias nos dias de hoje?
E isto acontece porque a humilhação e o medo transformam-se em falta de compromissos para com qualquer tipo de coletividade, e a falta de compromissos dinamita as relações familiares mais próximas, as de phylia (amizades) e, enfim, o próprio relacionamento social.
De tal modo que a verdadeira face kafkiana da vida são horrores.
Horrores de que a apenas uma minoria dos homens toma conhecimento, quando deles se tornam cientes e testemunhas. E esta minoria, pessoas que levam a marca de Caim foram eleitas pela vida como testemunhas dos tormentos impostos pelo Poder.
Já os esbirros vinculados ao Poder têm missões aterrorizantes como os das milícias paramilitares; os labirintos burocráticos aprofundam-se em julgamentos sem causa e condenações sem provas ou mesmo na ausência de processos e as transformações místicas nos trazem falsos apóstolos que misturam carne, espírito, poder e dinheiro.
Tal como o próprio Joseph Kafka, nosso país kafkiano é também profundamente angustiado e hipocondríaco. E se é verdade que a hipocondria é um mal de todos os tempos, nos tempos pós-modernos a hipocondria generalizou-se e transformou-se no troco miúdo da angústia; é a Angústia que para distrair-se procura e encontra outros nomes, dizia Elias Canetti.
Em carta escrita para a namorada, ex-noiva, quase esposa, Felice Braun, Kafka dizia: “Que sensação essa de ter encontrado um refúgio em ti, a salvo deste monstruoso mundo que apenas ouso enfrentar em noites dedicadas ao ato de escrever.” Pobre fuga do escritor genial que pressentiu ainda no auge da modernidade, o significado de uma realidade “kafkiana” que se imporia dez anos após sua morte com o nazi-fascismo, e se cristalizaria de forma dramática nos tempo de “realidade líquida”, na contemporaneidade do século XXI e no meu desditoso Brasil.
E o medo e a indiferença são os sentimentos principais que inspiram as pessoas humilhadas. E em nosso meio a humilhação, a submissão, o medo, a violência e a indiferença absoluta, a isso tudo se cognominou de Realidade Kafkiana.
Enquanto o senhor K., personagem sem nome, apenas uma inicial que Kafka adota em quase todos seus escritos, simboliza o nosso sentir só, despersonalizado, num mundo agressivo e irracional, apenas lógico nos lucros, no Brasil temos um Poder que trata de fazer emergir a absoluta ausência de fraternidade, o individualismo extremado, o consumismo absoluto.
Enfim, o mundo kafkiano é um mundo em ruínas em que as utopias, a religiosidade autêntica e as ilusões humanistas naufragaram. Para sempre???
Ou, quem sabe, veremos ainda um Renascimento em nosso Brasil kafkiano???
Fonte: Espaço Literário Marcel Proust
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