Juliane da Costa Furno
Juliane Furno
Juliane da Costa Furno é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.
Pedro Rossi
Pedro Rossi
Professor Livre-Docente do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON).

Desmontando os mitos sobre a inflação

Inflação é um problema distributivo que afeta indivíduos e classes sociais de forma distinta e o seu combate também não é neutro

Publicado em 18/08/2023
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A inflação é um problema distributivo que afeta classes sociais de forma distinta e o seu combate não é neutro como defende o Banco Central "independente". Novo livro revela que assim como não se aperta parafuso com martelo, não se deve combater a inflação com juros altos - desacelerando a economia e atingindo principalmente os trabalhadores.

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A inflação é tema recorrente nos noticiários e no centro das preocupações dos brasileiros que assistem à corrosão do seu poder de compra pela alta dos preços. Para controlá-la, o receituário tradicional propõe aumentar a taxa de juros e cortar gastos públicos. A inflação é geralmente tratada como se fosse um problema neutro do ponto de vista distributivo e o seu combate é apontado como técnico, que supostamente beneficia a sociedade em seu conjunto. Nada mais falso.

A inflação é um problema distributivo que afeta indivíduos e classes sociais de forma distinta e o seu combate também não é neutro. Por isso, é necessário analisar o tema para além da superfície, avaliar os impactos da inflação sobre a desigualdade social e identificar quando o discurso do combate à inflação esconde interesses econômicos e de classe.

Este texto busca destacar essa dimensão política, frequentemente oculta no debate público brasileiro, ao explorar mitos que ocupam o senso comum. Assim, destaca a natureza do processo inflacionário, o conservadorismo no seu tratamento e o conflito distributivo por detrás da inflação e da política monetária.

Os mais pobres são os que têm menos condição de se proteger de processos inflacionários, uma vez que têm menos acesso aos instrumentos financeiros que protegem a renda e a riqueza da inflação.”

 

O mito de que a inflação se resolve com aumento dos juros e decalcarão econômica

A taxa de inflação mede o aumento no nível de preços. Ou seja, é o crescimento dos preços de um conjunto de bens e serviços em um determinado período de tempo. Os índices de inflação contam uma parte da história, mas pouco dizem sobre a variação dos salários, lucros, juros, e outros rendimentos que determinam o ganho ou a perda do poder de compra diante da inflação de trabalhadores e capitalistas. Ou seja, o impacto da inflação na nossa vida depende também de como a nossa remuneração varia e o combate à inflação também afeta essa remuneração.

Os mais pobres são os que têm menos condição de se proteger de processos inflacionários, uma vez que têm menos acesso aos instrumentos financeiros que protegem a renda e a riqueza da inflação. Os trabalhadores, principalmente os informais, dificilmente têm sua remuneração vinculada aos índices inflacionários, diferentemente da remuneração de formas de capital, como os aluguéis pagos aos detentores de imóveis ou o lucro de empresas que atuam em concessões públicas, geralmente indexados contratualmente aos índices de inflação. As exceções importantes são os salários e benefícios vinculados ao salário mínimo que protegem uma parte importante da população das perdas inflacionárias.

Diante de uma inflação de alimentos, um aumento de juros pode agravar um problema de segurança alimentar e nutricional ao provocar desemprego e queda da renda.”

Há diferentes caminhos para reduzir a inflação. O caminho ortodoxo é desacelerar a economia por meio de um choque monetário (aumento de juros) e fiscal (corte de gastos), o que reduz demanda por bens e serviços. Esse caminho prejudica principalmente os trabalhadores que saem empobrecidos com a economia estagnada e sem empregos, embora beneficie quem tem riqueza financeira para aplicar nos juros altos.

O aumento de juros além de fragilizar famílias endividadas também tem impactos distributivos via política fiscal, pois aumenta o custo do carregamento da dívida do governo que transfere para uma parcela mais abastada da população os serviços dessa dívida.

Além disso, esse tipo de política não resolve, por exemplo, a inflação de alimentos. Isso porque a maior parte dos alimentos é pouco afetada pela política monetária uma vez que seu preço pode depender do preço internacional, de fatores climáticos ou de safra. Nesse sentido, diante de uma inflação de alimentos, um aumento de juros pode agravar um problema de segurança alimentar e nutricional ao provocar desemprego e queda da renda sem reduzir substancialmente o problema no preço dos alimentos.

Há outras políticas que auxiliam no combate à inflação, e que também não são neutras do ponto de vista distributivo. Por exemplo, quando a Petrobras não reajusta para cima os preços do combustível, a população tem acesso a combustível mais barato e a inflação fica menos pressionada, ainda que a distribuição de dividendos para acionistas da Petrobras seja prejudicada. Quando não há reajustes no transporte público, grupos econômicos deixam de lucrar, mas trabalhadores comemoram.

Combater a inflação não é uma finalidade em si, mas um meio para garantir bem-estar social e direitos humanos. Uma política que desacelera a economia pode até reduzir a inflação, mas tem um alto custo social arcado especialmente pelos mais pobres.”

Quando o governo lança mão de uma política de controle de preços de alimentos ou de taxação de exportação de commodities, esses ficam mais baratos, embora produtores possam sair prejudicados. Portanto, a decisão sobre as formas e os instrumentos de combate à inflação é também uma decisão sobre quem ganha e quem perde, trata-se de uma decisão política com consequências distributivas e não de uma decisão técnica.

Combater a inflação não é uma finalidade em si, mas um meio para garantir bem-estar social e direitos humanos. Para isso, é necessário preservar a moeda e suas funções e o poder de compra da população, especialmente a de mais baixa renda. Portanto, uma política que desacelera a economia pode até reduzir a inflação, mas tem um alto custo social arcado especialmente pelos mais pobres. A inflação é um problema distributivo e combate-la com desemprego fragiliza os trabalhadores. Existem outras maneiras de combater a inflação, de formas mais justas.

Para cuidar da inflação não basta o manejo da taxa de juros como ferramenta única, mas é preciso uma “caixa de ferramentas”. A inflação tem múltiplas causas e demanda múltiplos instrumentos para o seu combate eficiente e compatível com a busca do pleno emprego e do crescimento. Não se aperta parafuso com martelo, assim como não se deve combater qualquer inflação com juros altos.

O mito de que o gasto e déficit público geram inflação

O discurso pró-austeridade recorre frequentemente ao fantasma da inflação para justificar os cortes de gastos públicos. Afirmações como “se romper o teto de gastos podemos voltar à hiperinflação” buscam interditar o debate. Trata-se de terrorismo econômico.

Há dois argumentos comuns que associam o gasto público e a inflação no debate público. O primeiro defende que o aumento dos gastos no Brasil levará a uma explosão da dívida pública que só poderá ser paga por meio de emissão monetária. Esse aumento na quantidade de moeda, por sua vez, resultará em hiperinflação.

Há vários problemas nesse argumento. A começar, pelo fato de que o aumento da dívida pública em relação ao PIB é decorrência de diversos fatores e não apenas das decisões de gasto, como a própria redução do crescimento econômico e a queda da arrecadação pública. Assim, a estabilização da dívida pública pode ser alcançada, não com corte de gastos, mas com a retomada do crescimento e do aumento da arrecadação pública. Além disso, não existe um patamar específico de dívida pública que torne o país incapaz de se financiar com títulos públicos, sendo obrigado a emitir moeda.

O segundo argumento aponta que o déficit público (quando as receitas são menores que as despesas) exerce pressão adicional sobre a demanda por bens e serviços, provocando aumento de preços. O argumento pode ser verdadeiro em casos específicos, mas não pode ser generalizado. Primeiro, porque o déficit público pode ser causado por uma redução da arrecadação que, por vezes, contribui para redução da inflação. Por exemplo, quando se desonera produtos da cesta básica a tendência é de aumento de déficit associado à queda (e não o aumento) dos preços desses produtos, o que ameniza a inflação.

Gasto público e déficit público não são necessariamente fontes geradoras de inflação, especialmente em momentos de crise econômica.”

Além disso, o efeito inflacionário de um aumento do gasto público depende do momento do ciclo econômico, em particular da utilização dos fatores de produção de uma economia, trabalho e capital. O tema é complexo mas pode ser pensado de forma intuitiva.

Quando a economia está em pleno emprego e empresas utilizam toda sua capacidade produtiva, um gasto público tende a gerar a inflação, pois aumenta a demanda no momento em que a capacidade de oferta está dada. Por exemplo, quando o governo contrata uma empresa para a construção de uma estrada. Esta, ao operar em plena capacidade, pode deixar de atender projetos do setor privado para atender o setor público e, além disso, pode pedir preços maiores do que de costume, o que gera inflação.

No entanto, quando há desemprego e capacidade ociosa nas empresas, esse mesmo gasto não gera inflação, mas emprego e aumento da renda. Daí a importância do uso do gasto público em momentos de crise econômica e desemprego. Portanto, gasto público e déficit público não são necessariamente fontes geradoras de inflação, especialmente em momentos de crise econômica e também é um mito a ideia de que o governo brasileiro só vai conseguir pagar sua dívida com emissão de moeda e inflação.

O mito da inflação como um problema técnico e da necessidade de um BC independente

A defesa de um Banco Central autônomo ou independente propõe blindar gestores supostamente técnicos de políticos e eleitores supostamente ignorantes. Com isso, a instituição teria mais credibilidade com os investidores internacionais e nacionais, o que levaria a um melhor controle da inflação e à queda da taxa de juros.

Mas a autonomia aumenta o poder do mercado financeiro sobre o Banco Central e favorece a chamada “porta giratória” que ilustra o movimento de quadros do setor privado para o setor público e vice-versa. Ou seja, o Banco Central nomeia, para seu quadro de diretores, profissionais do mercado financeiro que têm incentivos para favorecer seus antigos (e prováveis futuros) chefes.

A inflação não é um problema meramente técnico e um Banco Central independente tende a favorecer politicamente os interesses do mercado financeiro.”

A atuação do Banco Central interfere na própria rentabilidade do mercado financeiro ao atuar sobre variáveis como a inflação, taxas de juros e de câmbio e ao regular as instituições financeiras. Isto é, na hora de escolher quem ganha e perde com o combate à inflação, o Banco Central pode arbitrar em favor das demandas do mercado a despeito das necessidades da população.

De acordo com um estudo publicado no Banco Mundial, um Banco Central independente tende a aumentar a desigualdade por três motivos. Primeiro porque a instituição pode constranger indiretamente a política fiscal e enfraquecer a capacidade do governo de usar o gasto público como instrumento de redistribuição. Segundo, porque incentiva a desregulamentação financeira, o que gera ganhos para o setor financeiro e bolhas de preços. E, por fim, quando na presença de pressões inflacionárias, faz uso de uma política monetária excessivamente conservadora com aumentos excessivos de juros, o que enfraquece o poder de barganha dos trabalhadores.

Portanto, a inflação não é um problema meramente técnico e um Banco Central independente tende a favorecer politicamente os interesses do mercado financeiro.

Desmitificar para fazer uma política monetária mais juta

Este texto teve como objetivo estimular o interesse por um debate dominado por um falso tecnicismo e por uma visão estigmatizada sobre a inflação. Não há um patamar mágico para inflação. Sabe-se que uma inflação muito alta pode desorganizar a economia, favorecer a indexação e comprometer a confiança na moeda. No entanto, uma inflação muito baixa também pode não ser saudável, como mostram processos históricos de deflação que desestruturam a economia e geram recessão e desemprego.

No Brasil, a inflação é muito suscetível aos choques de preços de commodities, à volatilidade da taxa de câmbio e à indexação de contratos. Sem resolver esses problemas, dificilmente teremos uma inflação baixa como aquela apresentada em países centrais. Apesar disso, o Banco Central brasileiro por vezes persegue metas de inflação extremamente baixas e irrealistas. A decisão se mostra conservadora e os custos de perseguir uma inflação tão baixa pode ser o desemprego que representa a violação do direito humano ao trabalho, além de um desperdício de recursos produtivos.

Portanto, a inflação é um problema econômico complexo. Não se trata de um inimigo comum que afeta a toda população da mesma forma, mas de uma variável cujas causas e consequências afetam a distribuição de recursos entre classes sociais e setores produtivos. Evitar cair no lugar comum nesse debate é difícil, mas necessário, especialmente quando a obsessão com o combate inflacionário resulta em desemprego, juros altos, menos recursos para a garantia de direitos humanos e empobrecimento da população.

Sobre os autores

JULIANE FURNO
é doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp.

PEDRO ROSSI
é professor do Instituto de Economia da Unicamp, co-organizador dos livros “Economia pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico” e "Economia para poucos – Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil".

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