
Dólar: o rei está nu, mas armado até os dentes
Privilégio exorbitante do dólar perde fundamento técnico. Cerco ao PIX explicita o temor americano.
A tentativa do governo de Donald Trump de solapar o PIX tem conexões com um panorama muito maior do que apenas o acesso a pagamentos digitais que não passam por administradoras de cartão no Brasil. Não que isso não seja considerado, pois afinal são bilhões de reais que todos os anos as bandeiras de cartão arrecadam no Brasil na forma de taxas por transação, gerando custos adicionais para comerciantes e consumidores.
O assunto se encaixa em uma transição de larga escala, e cuja dimensão internacional é completamente disseminada ao redor do globo. A digitalização do dinheiro não parou na simples digitalização de contas correntes e empresas financeiras. A flexibilidade dos sistemas digitais encontrou um casamento perfeito com a própria definição de moeda fiduciária de ampla circulação e plena liquidez.
Da união, nasceram formas variadas de reduzir ao mínimo o tempo de transações de pagamentos, e o passo seguinte é onde estamos agora: todos já percebem o potencial transfronteiriço dos sistemas digitais de pagamentos, e o conflito se dá pela percepção de que o “privilégio exorbitante” do país de Trump não tem mais justificativa técnica para existir.
A expressão foi cunhada por Valéry Giscard d’Estaing, ministro das Finanças da França na década de 1960. Ele se referia ao fato de que o dólar estadunidense, sendo a moeda de reserva e curso mundial, permitia ao país emissor ter déficits externos praticamente ilimitados em suas transações correntes. Por ser o emissor da moeda de reserva, os EUA poderiam pagar os próprios déficits imprimindo dinheiro, sem que isso acarretasse fuga de capitais e investimentos, crises cambiais ou necessidade de apertar o cinto da sociedade.
Apenas como nota, registre-se que os demais países do mundo precisam (como sempre precisaram) exportar ou se endividar para ter acesso aos dólares que garantem suas compras no comércio internacional e o valor de suas moedas nacionais.
A justificativa técnica para este estado de coisas sempre foi associada à força militar do país de Trump, assim como ao arranjo geopolítico que se formou após a segunda Guerra Mundial. Mas ao longo das décadas, formou-se um sistema administrativo da economia planetária baseado neste arranjo. Este sistema forjou justificativas técnicas para a manutenção do privilégio exorbitante. E é exatamente este sistema que agora perdeu toda e qualquer justificativa técnica. O rei monetário está nu, mas faz ameaças para que nenhum engraçadinho venha a dizer que ele está nu.
PIX e outros sistemas
O surgimento do PIX é um dos sintomas dessa transição que já está em movimento. O caso brasileiro, no entanto, tem especificidades importantes. Enquanto em outros sistemas populares de pagamento instantâneo existe a participação de empresas privadas, o PIX brasileiro é inteiramente administrado pelo Banco Central do Brasil. Um dos sistemas similares mais populares é o indiano, o Unified Payments Interface (UPI), não está sob ataque dos EUA. O fato de que o processamento de pagamentos do UPI usa intermediadores como o Google Pay certamente é parte da explicação de porque ele é deixado em paz.
Receba os destaques do dia por e-mail
Tal como PIX e UPI, há muitos outros sistemas já em operação, em fase de testes ou em desenvolvimento. É uma evolução natural. Ocorre que a geopolítica inevitavelmente interveio sobre esse processo, exatamente porque ficou claro que, se o processamento de pagamentos internacionais pode refletir em escala mundial a fluidez e automação que os pagamentos nacionais já têm, basta querer para que as compensações financeiras sejam feitas de moeda compradora para moeda vendedora, e vice-versa.
Bem, não basta só querer, obviamente. Tecnicamente, não há mais barreira para acabar o privilégio exorbitante. A barreira é estritamente política. O que fazer com toda aquela estrutura de apoio que tornou possível e viabilizou o dólar global por todos estes anos? O que fazer com o sistema SWIFT, que processa os pagamentos bancários internacionais? O que fazer com o BIS (Bank of International Settlements), responsável pelas compensações? O que aconteceria com grandes empresas dos EUA e da Europa (que lançou a segunda moeda mais conversível do mundo) que operam afretamentos marítimos, seguros de exportação, cartas de crédito e contratos de câmbio?
E, finalmente, que impacto tudo isso poderia ter sobre o panorama mundial da hierarquia de moedas em um planeta onde a maioria dos países já não tem mais os Estados Unidos como seu principal parceiro comercial, e sim a China?
Riscos e estratégia
É este conjunto de temas maximamente sensíveis que explica porque a transição monetária deverá seguir em passo ultra-lento. O BRICS, que agora reúne mais países do que apenas aqueles da sigla, vem desenvolvendo projetos interessantes neste sentido. Uma nova arquitetura de pagamentos, transferências, compensações e securitizações internacionais promete substituir o entulho econômico do século XX formado após 1945. O BRICS Bridge, por exemplo, pode se tornar uma alternativa ao SWIFT. A integração de sistemas nacionais como o PIX pode vir a possibilitar transferências internacionais instantâneas de indivíduo para indivíduo com conversão de câmbio bilateral sem dólar, ao preço de momento.
Imagine-se o terror que tais possibilidades não provocam nos corredores do palácio conhecido pela alvura de suas paredes e colunas, na cidade de Washington. É por isso que certas partes do sistema alternativo que vai se formando começaram a ser objeto de um ataque feroz. O nosso PIX é uma delas. No caso brasileiro, muito em função do fato de que as chamadas Big Techs (Google, Meta, Apple, Amazon e Microsoft) já estão engasgadas com o Brasil porque aqui poderão ser reguladas em um nível mais restrito do que gostariam. Além disso, porque nosso sistema nacional de pagamentos dispensa por completo o auxílio de seus sistemas, consequentemente retirando delas enormes ganhos potenciais.
Um fato pouco relacionado a este debate é a proliferação do comércio eletrônico, que por sua própria natureza exige pagamentos digitais que no Brasil já são quase inteiramente feitos via PIX. Na América do Sul, surgiu uma das maiores empresas de e-commerce do mundo, a argentina Mercado Livre, que hoje já é a maior empresa da região com valor de mercado superior a US$ 90 bilhões. O que não aconteceria se empresas como a Mercado Livre se tornassem veículos globais de todo tipo de comércio internacional, usando para isso uma enorme base comum de transferências diretas de valores fora do sistema dólar?
Os riscos e as estratégias que se verificam neste momento histórico nos dão uma clara resposta. Agora, precisamos esperar para saber se haverá um caminho pacífico para adaptar o inevitável à realidade ou se tudo isso descambará para um ou mais conflitos militares.
Fausto Oliveira é jornalista de economia com experiência em setores industriais e infraestrutura.
Fonte(s) / Referência(s):
Gostou do conteúdo?
Clique aqui para receber matérias e artigos da AEPET em primeira mão pelo Telegram.