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José Augusto Gaspar Ruas

Lava Jato, setor petrolífero e novo neoliberalismo no Brasil

Em artigo escrito no início de2016, o cientista social britânico William Davies caracterizou aemergência de uma nova e terceira&nb

Publicado em 02/08/2019
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Em artigo escrito no início de 2016, o cientista social britânico William Davies caracterizou a emergência de uma nova e terceira fase do neoliberalismo no mundo. O “Novo Neoliberalismo”(1) , segundo ele, mais do que uma modificação nas regras e instrumentos de política utilizados desde os anos 1980, seria marcado por uma “ética punitiva” na implementação do arsenal de políticas neoliberal.

Segundo sua interpretação, o neoliberalismo teria passado por duas fases importantes antes da atual. Como princípio filosófico que as integraria, a difusão da ideia hayekiana de que o mercado é um melhor processador de informações do que qualquer racionalidade humana. Como corolário, toda forma de ação humana sobre a realidade econômica e política seria inferior ao recurso ao livre mercado como ordenador social (2).

Sob esse mantra, a primeira fase do neoliberalismo, nos anos 1980, teria sido movida pela ética do combate ao socialismo. Para isso foi apresentada uma escolha binária entre neoliberalismo e socialismo, maniqueísmo utilizado como força de combate aos modelos político-econômicos do pós-guerra, nas suas inúmeras vertentes.

Após o fim do socialismo real, antagonista central, as décadas de 1990 e 2000 teriam sido palco da segunda etapa, agora caracterizada pela normatização. A implementação de uma burocracia estatal para auditoria e controle das políticas públicas teria promoviLava Jato, setor petrolífero e novo neoliberalismo no Brasil do a generalização da ótica da eficiência, da lógica de mercado nas instituições públicas (3). Esse avanço do ethos normativo como instrumento norteador da ação política seria o principal responsável pelo que denominou “desencantamento da política”. O papel decisivo da centro-esquerda na implementação deste arranjo, em parte como justificativa para a própria canalização de recursos para atividades socialmente desejáveis, teria promovido um desarranjo nestes partidos, despidos, no pós-crise, de alternativas para oferecer no campo político.

É nesse contexto que o Novo Neoliberalismo teria emergido. Após 2008, repetem-se instrumentos de austeridade e redução do Estado, mas agora ancorados em uma lógica punitiva. Desde então, cessam-se espaços para o controverso, argumentação e debate sobre alternativas. Em seu lugar é erigido um ethos moralizador, acompanhado de um sentimento vingativo, que se impõe através da associação entre dívida (pública) e fracasso. Nas palavras de Davies:

“O que distingue o espírito de punição é sua lógica pós-jure, ou seja, a sensação de que o momento do julgamento já passou e as questões de valor ou culpa não estão mais abertas à deliberação. Da mesma forma, é pós-crítico. Sob o neoliberalismo punitivo, a dependência econômica e o fracasso moral tornam-se emaranhados na forma de dívidas, produzindo uma condição melancólica em que governos e sociedades desencadeiam o ódio e a violência contra membros de suas próprias populações.” (DAVIES, 2016, p. 14).

Pelos exemplos utilizados em seus trabalhos e pela temporalidade de sua periodização, é evidente que o artigo tem como objeto central a análise da Europa e dos EUA. Contudo, as referências conceituais, descrições e associações são incrivelmente pertinentes para a caracterização da atual conjuntura econômica brasileira.

Certamente, qualquer investigação sobre a nossa crise atual e ascensão de políticos com viés econômico ultraliberal deve analisar a lógica e consequências da Operação Lava Jato.

As últimas semanas vêm sendo particularmente importantes por desnudarem, com vazamentos de trechos de conversas em aplicativos de celular, as relações e procedimentos indevidos executados, ao longo da operação, por parte de procuradores e do ex-juiz Sergio Moro. A cada nova divulgação são colocados novos elementos para interpretar os diferentes aspectos (econômicos, jurídicos e políticos) da nossa realidade atual.

Muito já foi dito sobre a relação entre Lava Jato e seus impactos na economia brasileira. Ao longo dos últimos anos, essa temática foi abordada sistematicamente por consultorias e instituições de pesquisa. De modo geral, como o foco das investigações esteve, na esfera privada, centrada sobre a corrupção em contratos da Petrobras e fornecedores, especialmente construtoras, centenas de projetos foram paralisados.

Já em 2015 a Consultoria GO Associados previa um impacto de 2,5% do PIB (4). Mais recentemente, trabalhos do INEEP (5) estimaram uma queda de 2% do PIB em investimentos da Petrobras e 2,8% do PIB em investimentos de empreiteiras em 2015. Adicionalmente, para 2016 estimou-se impacto de 5% do PIB no investimento nacional.

A redução de investimentos da Petrobras produziu consequências drásticas sobre a cadeia de fornecedores. O setor naval, que chegou a empregar aproximadamente 85 mil pessoas em 2014, tem hoje cerca de 23 mil funcionários. Trinta estaleiros foram fechados ou ficaram sem encomenda alguma (6). Parte dos principais e mais modernos, adicionalmente, tinham como sócios algumas das empreiteiras envolvidas na Lava-Jato, o que provocou um efeito combinado de crise. Alguns eram responsáveis pela construção de cascos e/ou módulos de plataformas e foram paulatinamente reduzindo suas atividades. Os efeitos sobre a cadeia como um todo só não foram piores porque o governo acelerou recentemente as concessões, já com maior presença de petrolíferas estrangeiras. 

Certamente, os reais impactos da Lava Jato são difíceis de precisar.Pouco depois que a Lava-Jato foi desenrolada, em 2014, os preços de petróleo sofreram queda abrupta, caindo de patamar próximo aos US$ 100 para um novo 50% inferior. A indústria mundial de petróleo reduziu investimentos e, mesmo em condições normais, alguma queda dos investimentos da Petrobras seria previsível. Menos sujeita a questionamentos, a lentidão em viabilizar acordos de leniência para empresas investigadas pode ser apontada como propulsora da crise. Este desarranjo provocou desequilíbrios financeiros em construtoras nacionais, processos de recuperação judicial e crise em empresas de infraestrutura sob seu controle.

Contudo, mais do que o cálculo efetivo dos efeitos no PIB, a centralidade da Petrobras no embate político trouxe consigo a desconstrução da ideia da estatal como orgulho nacional e como possível agente/instrumento de desenvolvimento nacional.

A natureza da “defesa” da Lava Jato (7) ilustra esse ponto. A ideia de que a refundação do Brasil, livre de corrupção, seria a única forma de retomar a credibilidade e o investimento foram amplamente difundidas. Os efeitos acumulados sobre o PIB, emprego e empresas, seriam, portanto, desejáveis. As empresas e o Brasil mereceriam essa “punição” e ela seria, ao fim e ao cabo, redentora.

Como descreve recente texto para discussão do IE/UFRJ (8) , a Lava Jato foi imbuída de uma missão: separar as relações entre o público e o privado e moralizar o país. Contudo, “passar o Brasil a limpo” seria um fim em si mesmo. Não há projeto de país. A combinação entre ausência de projeto de nação e moralismo se sustentam na ideia de que sem a interferência política espúria, a economia resolveria sozinha nossos problemas. Essa combinação explicita um viés ético similar ao descrito por Davies (2016) para o Novo Neoliberalismo.

Como ilustrado, a Lava Jato operou como amálgama para a nova onda de difusão dessa ideologia no país. Antes dos recentes vazamentos, a isenção jurídica da operação justificou ataques à Petrobras e construtoras, bem como uma reorientação neoliberal das políticas públicas.

Valendo-se da “culpa” pela dívida da estatal e da ideia de que estava “quebrada” (fracasso econômico), autorizou-se acriticamente um processo de venda de ativos da empresa nos mais diversos segmentos de atuação, num processo de “privatização fatiada”.

A ideia de privatização, amplamente rejeitada nos pleitos entre 2002 e 2014, tornou-se objeto desejável por uma parcela crescente da população. Nesse ambiente se insere o combate à regra de conteúdo local, a autorização legal para venda de ativos da Cessão Onerosa e o fim da regra de operador único nos campos do Pré-Sal. José Serra, autor desta última proposta, retornou recentemente com novo projeto: extinguir definitivamente a consulta previa à Petrobras sobre seu interesse em ser operadora. Como argumento, apresentou: “Os interesses da Petrobras e da União estão em lados opostos”.

Além de ampliar o espaço para a entrada de empresas estrangeiras, incluindo a recente aceleração dos leilões (9) , a retirada da Petrobras como operadora reduz a potencialidade da política industrial. Como o operador define o arranjo tecnológico a ser utilizado, a presença de múltiplos operadores dificulta a utilização das encomendas como instrumento de promoção de aprendizado e escala operacional em segmentos/empresas nacionais.

Neste sentido, além do amplamente discutido efeito sobre setor produtivo, emprego e PIB, a Lava Jato operou como legitimadora da nova fase do neoliberalismo no país, recorrentemente derrotado eleitoralmente até 2014. Ao contrário dos países centrais, nos quais o Novo Neoliberalismo originou-se em 2008, quando o problema do endividamento veio à tona, em nosso caso o debate sobre dívida pública e da Petrobras ganhou força somente em 2014, ano de início da Lava Jato. Desde então, imbuídos de um “punitivismo vingativo”, passamos a destruir os instrumentos de ação social e econômica do Estado. Passamos a acreditar que a privatização fatiada de nosso setor petrolífero, a redução de importância das empresas nacionais e mesmo a queda brutal nas condições de vida no país sejam parte de um processo redentor. Por isso, antes de que efetivamente seja possível retomar o controle sobre os destinos do setor petrolífero brasileiro, faz-se urgente refletir em que condições faremos o povo brasileiro voltar a acreditar em seu potencial, em sua capacidade de construir seu próprio desenvolvimento a partir do planejamento e de um projeto nacional.

* José Augusto Gaspar Ruas é doutor em Teoria Econômica pela Unicamp e professor e coordenador adjunto no curso de Ciências Econômicas das Faculdades de Campinas.

1 DAVIES, William The New Neoliberalism. New Left Review, 101, set/out 2016.

2 Para uma análise adicional sobre interpretações do neoliberalismo e das visões sobre o Neoliberal Thought Collective, veja-se MIROWSKI, Philip, Hell is Truth Seen Too Late. University of Notre Dame, julho de 2017.

3 Uma análise sobre esse ponto também pode ser encontrada em DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a sociedade Neoliberal. São Paulo, Boitempo, 2016.

4 FOLHA DE SÃO PAULO (FSP) Impacto da Lava Jato no PIB pode passar de R$140 bilhões, diz estudo (11/08/2015). Nesse mesmo estudo, que levou em conta principalmente a redução dos investimentos da Petrobras, a estimativa de queda de impostos chegaria a R$ 9,4 bilhões e de empregos atingiria 1,9 milhões.

5 NOZAKI. INEEP: Os impactos econômicos da Operação Lava Jato e o desmonte da Petrobras, publicado no Jornal GNN (26/08/2018)

6 FOLHA de PERNAMBUCO Sinaval pede apoio para recuperar a indústria naval, (05/09/2018)

7 Veja PINHEIRO, Armando Castelar A Lava Jato e o PIB. Publicado em Valor Econômico (01/04/2016), ou ISTOÉ DINHEIRO, A Lava Jato está corroendo o PIB. E daí? Publicado em 02/06/2017.

8 PINTO (et al) A Guerra de Todos Contra Todos e a Lava Jato: a Crise Brasileira e a vitória do Capitão Jair Bolsonaro. IE/UFRJ, Texto para discussão 13, maio de 2019.

9 NOZAKI (et al) Caminhos e descaminhos da gestão do pré sal: entre a soberania e a subordinação. INEEP, agosto de 2018

Fonte: Jornal do Corecon-RJ

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