Num tango eterno, economia argentina afunda sob batuta de Macri
Em abril, com 20 pesos argentinos era possível comprar um dólar. Na quarta-feira 22 de agosto o mesmo dólar valia 30. Uma semana depois, 40. E
Em abril, com 20 pesos argentinos era possível comprar um dólar. Na quarta-feira 22 de agosto o mesmo dólar valia 30. Uma semana depois, 40. Em alguns dias chegou a roçar 42 pesos, mas recuou, pressionado pela venda de centenas de milhões da moeda americana das mais que combalidas reservas e, claro, de dinheiro emprestado pelo FMI. Já a taxa de juros chegou no finzinho de agosto a estonteantes 60% anuais.
Na segunda-feira 3, o presidente Mauricio Macri anunciou uma série de novas e drásticas medidas destinadas a conter o gasto público e a diminuir o profundo déficit fiscal. Entre elas, a eliminação de 8 dos 18 ministérios do seu governo.
Num gesto mais do que significativo do momento argentino, Macri resolveu fazer desaparecer o Ministério da Saúde, que passa a ser uma secretaria nacional da pasta de Desenvolvimento Humano.
Desconheceu e atropelou uma frase dita em 1949 pelo então presidente Juan Domingo Perón, ao criar a pasta agora dissolvida: “Como podemos ter um ministério para cuidar da saúde das vacas, sem termos um para cuidar da saúde das pessoas?”
Outro ministério importante, principalmente para um país onde o desemprego cresce a cada dia, também foi eliminado: o do Trabalho.
Ao mesmo tempo, o governo aumentou uma vasta série de impostos e criou outros, voltados especialmente para as exportações. Também retirou os poucos subsídios sobreviventes da era Kirchner, enquanto anunciava cortes e mais cortes em obras públicas e investimentos do Estado. Para completar, aumentou o preço da gasolina, pressionando uma inflação que anda pelas nuvens.
E mais: confirmou que o acordo assinado com o FMI em junho será renegociado, e que a Argentina pediria a liberação antecipada de novas parcelas. Dos 50 bilhões de dólares previstos, ao menos 15 bilhões foram liberados, sem que houvesse melhora alguma no cenário. Na verdade, o que houve foi uma sensível piora.
Primeiro resultado: um dia depois, o dólar subiu de novo. Como disse o jornal Página 12, a cada pronunciamento de Macri duas coisas se desvalorizam: o peso argentino e seu próprio governo.
Houve, porém, quem elogiasse o governo e expressasse sua “renovada confiança” em Macri: Donald Trump.
Faltando três meses para que se cumpram três anos da chegada de Macri à presidência com todas as bênçãos e vênias do sacrossanto mercado financeiro, tanto o local quanto o de tudo que é canto, seu governo desacreditado enfrenta uma crise de confiança profunda, inferior apenas à enfrentada por todo o país.
Chama a atenção de qualquer visitante a quantidade de moradores de rua em Buenos Aires, padecendo as agruras de um inverno especialmente duro. Cálculos de organismos independentes indicam que o total de moradores de rua mais do que duplicou de janeiro para cá.
Os números de desempregados são atualizados semanalmente, e não se sabe ao certo quantos comércios baixaram suas portas ao longo dos últimos 12 meses.
A explosão do câmbio levou a uma confusão sem fim, lembrando o acontecido durante a forte desvalorização de 1991, no governo de Carlos Menem. Naquela ocasião, um cidadão contou, ao longo de dez quarteirões de uma Rua Florida atopetada de turistas, nada menos que quatro mudanças na cotação anunciada nas placas das casas de câmbio. Quase uma mudança a cada 2 minutos...
Ainda não se chegou a tanto, mas não são poucos os que acham muito elevado o risco de que semelhante panorama se repita. Para tentar impedir a tragédia, o governo Macri torrou mais de 3 bilhões dos escassos dólares das reservas em menos de um mês e meio.
Ao longo das últimas duas semanas repete-se o mesmo cenário de mais de 20 anos: os comerciantes não sabem como calcular o preço do que vendem, pois não sabem qual será aquele da reposição dos produtos. Mas produtores e comerciantes sabem que aumentos significativos, por mais necessários que sejam, afastarão ainda mais os eventuais compradores, acelerando a profunda recessão.
No seu pronunciamento da segunda-feira 3, Macri anunciou solenemente que o déficit primário estará zerado até o fim do próximo ano, que, aliás, será de eleições presidenciais. É difícil imaginar que ele próprio acredite no que disse.
Quanto ao mercado financeiro, o ceticismo traduziu-se no dia seguinte, quando a moeda americana tornou a subir e o governo optou por vender outros 358 milhões de dólares para tentar conter a escalada alucinante.
Em um insólito gesto de autocrítica, Macri finalmente reconheceu o que era sabido por todos: houve, da sua parte, um “otimismo excessivo”. O resultado será um retrocesso calculado até agora em 2,4% do PIB, e a inflação anunciada com bumbos e clarins pelo governo – 15% – será de ao menos 42%, quase o triplo.
Como se o descalabro da economia não bastasse para turvar um cenário esfrangalhado, na mesma terça da desvalorização, o juiz Sebastián Casanello, espécie de Sergio Moro portenho, marcou para 18 de setembro o depoimento da atual senadora e ex-presidenta Cristina Kirchner, investigada em diversas frentes. Ela terá de responder à acusação de ser cúmplice de lavagem de dinheiro, em associação com o empresário Lázaro Báez.
O enredo mais intrincado a envolver tanto Cristina quanto seu falecido marido e também ex-presidente Néstor Kirchner é, no entanto, outro: o dos “cadernos de suborno”.
Tudo começou em 8 de janeiro último, quando – segundo seu próprio relato – “às 13h38” chegou às mãos do jornalista Diego Cabot uma caixa com seis cadernos espirais, desse modelo comum usado em qualquer colégio argentino, e um sétimo, de capa dura azul.
Cabot integra a equipe do jornal La Nación, de oposição feroz a qualquer coisa que não seja absolutamente conservadora. Sua ojeriza ao casal Kirchner sempre foi evidente e palpável.
Tratava-se de uma espécie de diário em vários volumes, todos escritos com a mesma caligrafia por Oscar Centeno, ex-motorista de Roberto Baratta, o número 2 de Julio de Vido, influente ministro do Planejamento de Kirchner.
Estão registrados todos os movimentos do ministro e de seu principal assessor, indicando dia, hora, trajeto e conteúdo de bolsas transportadas em um Toyota Corolla. E, claro, quem recebia o conteúdo que, sabe-se lá como, o motorista soube descrever em detalhes: dólares e mais dólares que, somados, alcançam cifras estratosféricas (alguns jornais mencionam a marca de 13 bilhões de dólares ao longo dos governos de Néstor e Cristina Kirchner, ou seja, entre 2003 e 2015).
Há, no entanto, incongruências nesse relato minucioso. Conforme comentou um político próximo da ex-presidente, é estranho que “alguém escreva como Jorge Luis Borges e fale como Carlos Monzón”, em referência ao escritor cheio de preciosismos e ao falecido boxeador cujo linguajar era constrangedor. Além disso, não foi feito nenhum exame grafológico nos cadernos, que, segundo contou o motorista, depois de lidos pelo repórter do La Nación foram devidamente xerocados para em seguida ir parar “na churrasqueira dos fundos do meu quintal”.
Tampouco é crível que sacos e sacolas com até 800 mil dólares em espécie fossem entregues em mãos tanto do falecido Néstor como da agora acusada Cristina Kirchner. E mais: não só no apartamento particular do casal, no bairro portenho de Recoleta, mas na própria residência presidencial de Olivos, um subúrbio de Buenos Aires.
Assim que essas notícias começaram a circular, apareceram também nomes de quem pagava os tais milhões e milhões de dólares. Em sua maioria, empreiteiros e diretores de grandes construtoras que obtinham contratos para obras dos governos Kirchner.
Como consequência imediata, começou a sucessão de “arrependidos”, versão local dos delatores premiados brasileiros.
O estardalhaço levado adiante por magistrados de instâncias inferiores explodiu nos dois principais jornais argentinos, o quase hegemônico Clarín e o próprio La Nación, além, claro, de emissoras de rádio e televisão controlados pelo grupo do primeiro dos jornalões.
Dessa forma, uma Argentina em frangalhos enfrenta uma crise econômica profunda, enquanto acompanha um escândalo judicial que encontra cada vez menos eco na opinião pública, conformada com a ideia divulgada pelo grupo Clarín de que os governos Kirchner foram uma etapa de corrupção generalizada, enquanto o de Macri ostenta, mas isso o jornal evita comentar, um cenário cada vez pior.
Como se não faltasse mais nada, justamente no país em que nasceu o atual papa cresce o número de católicos que renunciam publicamente à sua igreja. Tudo começou com a pressão exercida principalmente sobre senadores do interior pelos párocos locais para que derrubassem, como ocorreu, a lei do aborto.
De acordo com essa lei, aprovada pelos deputados, caberia ao Estado o dever de fornecer assistência às mulheres que optassem por abortar voluntariamente até o terceiro mês de gestação. Derrotado no Senado, o projeto foi o motivo alegado por mais de 3 mil católicos para renunciar publicamente ao catolicismo.
Sim, foram apenas 3 mil entre milhões. Mas o gesto foi mais que simbólico, e causou forte impacto no conturbado país de Mauricio Macri. Os argentinos renunciam até à fé.
Fonte: Vermelho
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