O capitalismo como imensa coleção de perguntas
Pois a lista de perguntas que elas no fazem hoje 24 horas deve dizer algo da riqueza burguesa ou do próprio capitalismo tal como este se apresen
Pois a lista de perguntas que elas no fazem hoje 24 horas deve dizer algo da riqueza burguesa ou do próprio capitalismo tal como este se apresenta hoje, ao menos no Brasil. Uma hora vou verificar a duração de todas as vezes em que ouço e respondo a seus apelos e fazer a soma final de um ano. A coleção de perguntas, algumas bastante petulantes, é interminável, mas, sendo eu procrastinadora, algo com que não contam, sempre digo ou escrevo não ou depois (equivalentes a um não enche!); mesmo assim, isso me toma muito mais tempo que arrancar a erva inútil que cresce todo dia no meu canteiro de plantas. Eis algumas:
– Você já é nosso cliente? ou: Você é cliente prata? Diamante? Você é cliente Mais? Extra? Único? A senhora quer fazer o cartão X? (se você for a três lojas, p.ex., serão três interrogações, claro, às vezes sob a variação Já é cliente fidelizado?)
– A senhora já conhece a nossa promoção? (se estiver diante de pessoa insistente, você terá de lhe responder duas ou mais vezes, e, mesmo que seja monossilábico como eu nessas horas, precisará de um tempinho a mais.
– Se não quiser receber nossa newsletter/nosso email, clique aqui. Então você segue a recomendação, e a cortina se fecha (primeiro ato); responda sim ou não! (segundo ato); mas, quando você supõe que eles estão saindo de cena, eis que… Ora, mas por que você não quer receber mais nossa newsletter? Sua resposta é muito importante para nós! Não vou dizer que seja mentira, mas não vou lhe tirar também o seu tanto de eufemismo (“passivo-agressivo”, como se diz no novo jargão psicológico) para o fato de que sem ela, a resposta, não saímos da grade que imediatamente se fecha em torno de nós, indicando o círculo infernal em que continuaremos a receber o email. Então pressionamos uma entre as quatro ou cinco opções oferecidas, que não deixam de exibir da parte deles uma percepção decantada e matizada dos dilemas da alma humana. No entanto a única coisa que estou dizendo intimamente, com o maxilar travado desde o começo do primeiro ato, é: calhordas, calhordas, calhordas.
– Deseja fazer as atualizações agora/deseja atualizar o aplicativo agora? Sim ou não? Às vezes oferecem as opções “daqui a 15 dias, 30 dias”, “lembre-me depois” etc. Nesses casos alternativos, o “não” é só o adiamento de um encontro do qual jamais vou poder escapar.
– Qual a nota que você dá para o Victor? (se você pegar só um Uber por dia, claro). Agora essa curiosidade foi acrescida de algumas indiscrições: quanto você gostaria de dar para o Victor [de quem você, como nos disse, gostou tanto]: 1, 5 ou 10 reais? Não dou nada, mas isso já cavou um buraquinho no meu coração e lá foi se intrometer uma nova modalidade de culpa.
– Não vou contar as propagandas de Ômega 6 que se acumulam na secretária eletrônica do telefone fixo, gravadas por algum trabalhador precário em seu próprio apartamento e pagas por peça pela empresa distribuidora do produto. Eu as apago metodicamente a cada tantos dias, como uma trabalhadora também, capinando ou faxinando. Não fazem interpelações propriamente, mas me roubam uns segundos mesmo que eu só as ouça no início para logo deletá-las. Depois de uns dez dias, suponhamos, haverá umas seis ou sete mensagens. Além disso, meus dedos estão com burn-out, especialmente o indicador, que estremece de imaginar que pode trabalhar até 80 anos ou mais, com ou sem Reforma da Previdência.
– Não vou também contabilizar aqui os telefonemas de associações de caridade solicitando alguma contribuição, pois no meu entender não vendem mercadorias, e tampouco estas, mercadorias, estariam em seu “lugar de fala” (como quando o próprio jornal ou ômega 6 falam), mas se trata de situação, digamos, fenomenologicamente parecida, e sinto a mesma fadiga e angústia.
– Nesse item aqui contarei, sim, as inúmeras propostas de empresas de telefonia, às quais invariavelmente respondo — e, atenção, mesmo eu me sentindo por vezes atraída, como podemos sê-lo por alguém de quem desconfiamos, no entanto, que seja um tanto complicado depois para nos desembaraçar…. PREFIRO NÃO é o que sempre digo. Já assumi ser um Bartleby do consumo (depois de sê-lo do trabalho).
– Já tem alguém te atendendo?, é o que ouço mal ponho o pé na loja ou mesmo nem ainda transpus a soleira, e já fico um pouco ansiosa. Às vezes, quando mais sensível ou neurastênica (com aquele toque de século 19), chego a temer tanto pelo assédio que ponho binóculos para apreciar melhor as mercadorias do outro lado da rua. Não é algo, contudo, que possa fazer com a calma necessária porque naturalmente levanto suspeitas.
– É só isso mesmo? Não quer ver mais nada? Pode ocorrer de a pessoa insistir tantas vezes quanto são os produtos que existem na loja: não quer ver uma bolsa… uma saia… (chego a ver as reticências se desenhando no ar)… um cinto… (para logo a oferta ganhar aceleração) uma meia uma écharpe uma tesoura um brinco um paralelepipedo? Não, não, não, já disse que não. Posso não levar nem isso que decidi levar, mas é o que você quer? É mesmo? Pense bem! Não ignoro, claro, que são tentativas de persuasão da parte de um vendedor cujo maior rendimento vem da comissão e que deve trabalhar, quando menos, 12 horas por dia, com folga num domingo a cada duas semanas, conforme a nova tendência. E é verdade que numa dessas enumerações é provável que me sinta inclinada a rever minha posição; no entanto o cansaço, que só aumenta, tem me tornado incoercível — e às vezes apenas balanço, sem maior expressividade, a cabeça para os lados, como duas pás de um ventilador já muito fraco.
– Não será o caso de lembrar certos convites ou homenagens que recebo de aniversário: Priscila, você é muito importante para nós, ou para mim, com a mercadoria mais personificada, às vezes até acompanhada de um presentinho, com a assinatura de pessoa física, na verdade aqui um mero alcoviteiro da sua relação amorosa com o CNPJ. Não é mentira minha que uma vez certo namorado estrangeiro, já falando português, embora ainda longe de captar todas as astúcias e nuances da língua e em cujo país de origem não lembro ter visto semelhantes ou tão frequentes costumes comerciais, depois de abrir a meu pedido uma correspondência que pegou no chão, perguntou com um pouco de ciúmes: Ó, quem é esse Otávio (era o Frias Filho, com a assinatura digital copiada) que diz coisas assim carrrinhosas e te envia um CD de música clássica no seu aniversário? E ainda é o Brrrrahms, que você gosta tanto! Além de toda a explicação, o fiz ver o detalhe de que não tinha só Brahms, mas muitos outros compositores, em “highlights”, o que não me agradava tanto, e o Otávio creio que não soubesse disso.
– Nem é bom mencionar as malas-diretas que, por morar em casa, jogo no lixo todo dia. Certo dia fiz a caixa do correio dizer: “Minha boca está abarrotada”, mas não lhe deram ouvido. A luta pela vida é insone e nela está engajada quase toda a humanidade… é só o que penso quando recebo tanta propaganda ou me dou conta da cada vez mais milimétrica divisão do trabalho na cosmética, com negócios inteiramente dedicados às sobrancelhas, ou às cutículas, ou aos dedões do pé, ou às celulites. Jamais pensei que se podia fazer tanta coisa e tanta arte nas sobrancelhas, mas a verdade é que estamos sendo testemunhas nas últimas décadas de um novo processo de racionalização e autonomização das esferas, esferas de todo tipo, tamanho e consistência, e centenas de milhares de seres humanos, quiçá liliputhianos, penduram-se em cada uma das minúsculas partes do corpo mais aparente (como a medicina no corpo mais oculto), onde acham seu meio de vida e razão de existir. De todo modo, mala-direta não é pergunta, embora certo dia uma delas saltasse na minha cara, me intimando: Quanto tempo mais você vai precisar para me comer? Era uma pizza bem oferecida, com duas azeitonas pretas no lugar dos olhos.
– Não é o momento agora para falar do Você quer CPF da nota? Ao que parece, não é exatamente uma relação mercantil. Ao que parece. Em todo caso, recuso a oferta com certa apatia.
– Por que você não quer mais assinar o jornal? E aí se segue um verdadeiro interrogatório, onde não fica claro se você é réu, vítima, promotoria, defensoria.
– Eu ia me esquecendo dos bancos. Não vou lembrar direito das interpelações, mas, depois que você insere o cartão, elas começam a se multiplicar: você não quer fazer um empréstimo consignado? Já conhece nossa nova opção de….? Sem contar a operacionalidade do caixa que muda de banco para banco, e no interior de cada banco a própria operacionalidade também muda de tempos em tempos. Daí é preciso digitar a senha, as letras de acesso, fazer a biometria… meu dedo, já estressado, nem sempre se deita da melhor forma, sou pega no pulo e já muito afobada quando vejo a luzinha vermelha e logo depois o ferro de um cadeado brandido (tente de novo!). Meu desespero bate no limite, mas sempre haverá algo mais a acrescentar para a “nossa” segurança. De fato são códigos para responder a uma pergunta essencial e antiga: quem és? ou ainda: você é você mesmo? E, uma vez apresentadas todas as provas, como o herói para a princesa exigente que concedia sua mão depois do longo caminho percorrido, a urna ou caverna abre-se como por mágica — do ponto de vista deles, não do seu, que deu um duro. E você se apossa não de dádiva ou tesouro alheio, menos ainda de uma princesa, mas de si mesmo, e isso em geral é decepcionante. Imagino que não deva tardar o dia em que, depois de completar um percurso iniciático ainda mais longo, nada mais estará a sua espera.
Priscila, no que você está pensando?
Fonte: Outras Palavras
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