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Eduardo Migowski

Origens da polarização brasileira: guia para entender a nossa política

Gostaria de começar esse texto pedindo para o leitor imaginar um caso hipotético, prometo que não será muito complicado. Numa terra muito dis

Publicado em 19/10/2017
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Gostaria de começar esse texto pedindo para o leitor imaginar um caso hipotético, prometo que não será muito complicado. Numa terra muito distante, um político foi eleito para o cargo máximo, com uma plataforma que buscava fortalecer o mercado interno desse país e expandir a sua capacidade industrial. Numa democracia ideal, após eleito, o novo chefe da nação teria a liberdade (ou melhor, a obrigação) de colocar em prática aquilo que havia sido debatido e decidido durante a campanha eleitoral.

Mas o nosso país tinha um longo passado escravocrata, uma sociedade estratificada e aristocrática. Lá nada era simples. O novo presidente já vinha sendo acusado de ditador e populista (que na linguagem vulgar desse país significava aquele que se aproveitava dos mais pobres para angariar prestígio político). Ele, em busca da governabilidade, havia convidado um político conservador para ser seu vice-presidente. Acreditava que, desse modo, acalmaria os mercados e a oposição. Após as eleições, a vitória do nosso político hipotético foi contestada na justiça. Queriam impugnar sua candidatura. Não deu certo. Quando o novo presidente finalmente assumiu o governo, ele tentou montar um governo de coalizão, chamando políticos de todas as legendas para compor o ministério. A ideia era arquitetar uma conciliação entre as forças políticas. No poder, ele adotou uma postura ambígua, ora acenando para os nacionalistas, ora para os liberais. O país, porém, estava polarizado. A imprensa, esmagadoramente ao lado da oposição, acusava o governo de corrupção. Uma quadrilha estaria no poder e o chefe era o presidente eleito. A classe média estava apavorada.

Foi então que, depois de um escândalo político, o vice-presidente se aproximou da oposição. A união da parte da base do governo e a oposição, somado ao apoio a mídia e a sucessão de denúncias, delações e convicções, emparedou o presidente e colocou fim ao seu governo. O vice-presidente, um homem fraco, com baixíssimo carisma e nenhuma base social, assumiu o governo. Apoiado pela oposição e por empresários, ele passou a adotar o programa de governo que havia sido derrotado nas urnas.

Essa historinha poderia parecer absurda em muitos lugares do mundo. O leitor brasileiro, contudo, sabe que esse país é real. Quem está acompanhando esse texto também já imagina que eu estou falando do Brasil. Porém, o que você provavelmente ainda não descobriu é que eu não estava me descrevendo o atual presidente Michel Temer, mas ao obscuro Café Filho. E o presidente não era um político do PT, mas nada mais nada menos que Getúlio Vargas.

Se eu disse no início que se tratava de um “lugar distante”, era em função do espaço temporal. Mas, como se estivéssemos preso a uma cápsula do tempo, a um passado que não passa, essa terra nos é familiar. Não é curioso que eu tenha descrito de forma genérica um governo dos anos 1950 e muito leitores tenham confundido com o momento atual? Muitos irão dizer, com razão, que eu montei a narrativa de modo proposital, com o intuito de confundir. Assumo que essa era a intenção. Mas eu não menti. De fato, tal qual em 2016, em 1954 houve um golpe (que não se concretizou em função do suicídio), com o objetivo principal de colocar em prática o projeto da oposição, que havia sido derrotado anos antes.

O método científico trabalha com as regularidades. Nas ciências humanas não é diferente, apesar de essas regularidades serem mais problemáticas que no mundo natural. Se um fenômeno perdura no tempo, talvez ele esteja relacionado com causas mais profundas e não apenas com eventuais erros de cálculo político. Precisamos, portanto, entendê-lo melhor.

Muitos têm dito, recentemente, que a sociedade brasileira está dividida. O que é uma verdade. Fala-se também que é preciso fugir da polarização (eu tendo a concordar, mas há alguns problemas nessa afirmação que serão explicitados mais adiante). Outros afirmam que Lula e o PT dividiram o Brasil. Esse ponto eu rejeito completamente. Como no exemplo acima, nossa polarização, nossas paranoias e nossos golpes, possuem longa tradição. Este texto pretende fazer alguns apontamentos que podem ajudar na compreensão desse fenômeno da política brasileira, sem, obviamente, ter a pretensão de esgotar o assunto.

Por que somos um país que, de tempos em tempos, é rachado ao meio pela força devastadora das ideologias políticas? Grosso modo, poderíamos dizer que a história recente do Brasil é marcada, com alguns recuos, por tentativas de ampliar a democracia formal, sempre contrabalançada por práticas de contenção da participação popular. A ideia é criar uma democracia sem povo. Pareceu confuso? Abaixo explicarei de forma mais detalhada.

Após 1945, a democracia finalmente chegou ao Brasil. É nesse período que emergem dois projetos antagônicos: o desenvolvimentista e o liberal. De um modo geral, para os desenvolvimentistas, a ordem internacional era dividida entre centro e periferia. O Brasil, enquanto nação subdesenvolvida, estaria na periferia do sistema, na condição de dependência. Os países centrais, por outro lado, teriam “chutado a escada” que ergueria à modernização. Para subverter essa condição, diziam os partidários dessa corrente, o Brasil precisaria buscar um caminho autônomo. Seria preciso modernizar sua base produtiva, investir em tecnologia e expandir o mercado interno. Anos depois, com o surgimento das Reformas de Base, o “nacional desenvolvimentismo” seria vertido no “social-desenvolvimentismo”. Para o social-desenvolvimentismo, apenas o crescimento econômico e industrial, seriam insuficientes. As mazelas e o atraso brasileiro seriam basicamente em função das suas exorbitantes desigualdades sociais, que deveria ser combatida por meio de reformas estruturais. Em termos mais claros, o que estava sendo proposto era uma redistribuição do poder político e econômico.

Um modelo de inclusão social, em um país em que a maior parte da população era pobre (e muitos possuíam direito ao voto), era muito sedutor. O PTB, principal defensor dessa ideologia, por exemplo, saltou de 22 deputados federais, em 1946, para 116 em 1962. Tornou-se a maior legenda no Congresso. Dos quatro presidentes eleitos, Eurico Dutra, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, apenas o último venceu sem apoio dos trabalhistas. João Goulart, eleito duas vezes vice-presidente, também ostentava uma ampla base eleitoral.

Na oposição estavam os liberais. Esses, no geral, recusavam a dualidade centro e periferia. Eles reconheciam o atraso brasileiro, mas acreditavam que a modernização viria do mercado, da iniciativa privada. Como não havia poupança interna no Brasil para financiar o crescimento endógeno, os recursos deveriam ser buscados fora, nos países ricos. O caminho para superar nossas mazelas, diziam, está na atração de investimentos estrangeiros, e para que isso fosse feito, seria necessário tornar o Brasil atrativo para esse capital. O principal partido que sintetizava essa posição era a UDN. Os liberais eram muito fortes também na mídia e entre as classes médias urbanas.

Repare que eu falei em dois projetos. Não me entenda mal, não quero dizer que não havia outras ideias, nem que tudo se resumia a uma lógica binária. Havia muitas nuances, inclusive dentro dessas duas doutrinas principais. Só para dar mais dois exemplos: à esquerda do PTB estavam os comunistas, que defendiam mudanças mais radicais. Havia vida também à direita da UDN. Os integralistas, que nessa época não eram mais um partido, mas ainda estavam na ativa, queriam um conservadorismo ainda mais forte, de molde fascista.

Além do PTB e da UDN, também havia partidos menores e movimentos sociais fora da política partidarizada. Mas há um detalhe. A despeito de a política ser multifacetada, as eleições terminavam na disputa entre os dois principais grupos. Tanto o PCB quanto os Integralistas não tinham força suficiente para disputar o Palácio do Catete. Assim, fatalmente, por mais que tentassem uma candidatura própria em alguns momentos, os comunistas terminavam por apoiar o projeto do PTB. O mesmo acontecia com a direita. Plínio Salgado, principal liderança integralista, por exemplo, esteve ao lado do Brigadeiro Eduardo Gomes (da UDN) nas eleições contra Getúlio Vargas. Portanto, por mais que a política fosse mais diversificada, as corridas eleitorais terminavam polarizadas. Por quê?


Minha hipótese é que a nossa polarização é uma herança histórica da colonização e da escravidão. Explico. A colonização impôs uma ambiguidade à política brasileira. Ao mesmo tempo em que nós dependemos dos países mais ricos (recursos, investimentos, dólares, tecnologia, bens de produção, exportações etc), nós os vemos como os causadores de parte do nosso atraso. Ou seja, sem ajuda, podemos quebrar. Com ajuda, continuaremos estagnados. Como superar essa condição? A resposta a essa pergunta divide o país, polariza as opiniões.

Para ilustrar a força política desse debate. Décadas depois, na virada do século XXI, o governo Fernando Henrique afirmava que a globalização era a grande chance do Brasil entrar de vez no comércio mundial e, assim, ampliar suas bases produtivas. O caminho seria a aceitação das regras e uma aproximação política com os EUA. Quando Lula o sucedeu, o discurso era outro.

Para o ministro Celso Amorim, as regras do comércio mundial favoreceriam as grandes potências. A solução não seria apenas a integração do país à globalização, mas um fortalecimento do que ele chamava de “parceria sul-sul”, entre os países em desenvolvimento, para, juntos, interferirem nos rumos tomados pela globalização. Todos nós sabemos o quanto se falou nesse assunto na época dos governos petistas. Essa pauta, no entanto, nada mais é do que a reedição desse debate político a respeito da inserção e da posição brasileira na comunidade internacional, que remonta, pelo menos, à independência do país.

A escravidão, por sua vez, ao longo de quase quatro séculos, conformou uma sociedade estratificada. Tanto liberais quanto fascistas tinham uma visão de mundo aristocrática (apenas a defesa de um modelo social aristocrático poderia explicar, por exemplo, a estranha aliança entre o fascista Plínio Salgado e os liberais da UDN). A democracia, contudo, como já dizia Aristóteles, é o único sistema político em que o poder soberano está com o mais pobres, pois estes são maioria e seria esperado que defendessem os seus direitos. A tendência é que, em uma sociedade desigual e democrática, as disparidades convirjam para o centro. Mas isso não ocorreu no Brasil, ou melhor, nas vezes em que esse processo foi iniciado, houve transformações que colocaram o país de volta ao estágio inicial. Essa fricção, portanto, provocada pelo choque entre as forças que buscam a ampliação das bases política, em uma sociedade de tradição aristocrática, é outra fonte de polarização.

 

FONTE: Voyager

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