
Os “fetiches ideológicos” da imprensa mainstream
A grande imprensa brasileira, repito, tem sua história ligada à ditadura instalada em 1º de abril de 1964
Dois fatos relevantes da diplomacia brasileira — a viagem do presidente Lula a Moscou e o sucesso político e econômico das negociações em Beijing — foram reduzidos a “fetiches ideológicos” (O Estado de S. Paulo, 15/5/25). A imprensa joga às traças a relevância da diplomacia para um país que, a duras penas, tenta pensar com a própria cabeça e caminhar com seus pés, no contrapelo do complexo de vira-lata que intoxica a classe dominante.
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O périplo de Lula, principalmente seu encontro com Putin, despertou, na chamada grande imprensa brasileira, um insuspeitado fervor democrático que não poupa de críticas acerbas nosso presidente por haver estado presente nas festividades russas comemorativas da vitória contra o nazifascismo — comemorações as quais, entendem os editorialistas, devem ser patrimônio exclusivo dos EUA.
O comprometimento ideológico ignora que Brasil e Rússia são importantes parceiros comerciais e políticos no BRICS, cujo banco (Novo Banco de Desenvolvimento-NBD), presidido pelo Brasil. Ignora que Lula não deixou de dar o recado de que somos contra invasão de territórios estrangeiros (princípio inscrito em nossa Constituição) e levou o pedido ucraniano (somos parceiros dos dois beligerantes) por um cessar-fogo. Ignora sua reiterada defesa da paz — coluna de nossa política externa — e a defesa dos interesses sociais e do multilateralismo, talvez, neste caso, porque isso não agrade aos EUA de hoje.
A iniciativa de Lula pela paz na Europa — que não interessa aos que desprezam os riscos estratégicos em nome dos lucros da indústria bélica em alta — encontrou eco na parceria diplomática com Deng Xiaoping, que se associa no esforço por uma trégua seguida de paz duradoura. A isso se dá o nome de diplomacia — arte que não foi inventada por Lula e que é cultivada por qualquer nação que se preze, grande ou pequena — e que a competência do Itamaraty vem sustentando com arte e perícia, surdo aos apelos da subalternidade. Mas não pode ser pensada por quem só pensa pequeno.
Esta é a questão central: o sistema, estruturado para reproduzir a ideologia mainstream, se irrita com essa teimosia brasileira de traçar seu próprio espaço — o que, afinal, pode pôr em risco interesses do grande capital, mais próximos de Wall Street. Todas as tentativas anteriores de abrir espaço para uma política própria (no sentido de simplesmente privilegiar os interesses do país) foram combatidas com furor. Assim a política de Vargas; os tímidos ensaios de JK; a política externa de Jânio–Afonso Arinos e de Jango–Santiago Dantas. E, nos nossos tempos, a política ativa e altiva de Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia, presidida por Lula.
A resistência haveria de ser ainda maior hoje, quando a disputa hegemônica se acirra e a guerra — desde sempre instalada no “mundo que não conta” — atinge em cheio a Europa.
O Estadão não gosta de nossa política externa desde quando ela começou a levantar a cabeça. Não lhe agradam as críticas de Lula aos responsáveis pelo genocídio palestino. Deveríamos, segundo ele, simplesmente lamentá-lo. Nossa política, no geral, é acusada de antiocidental — de um Ocidente que sucumbe sem grandeza — e faz cara feia para as relações com a China, principal parceiro econômico do Brasil, que, ademais, não impõe taxas adicionais aos nossos produtos e acaba de anunciar investimentos de R$ 27 bilhões (Valor, 13/5/25), além de acordos nas áreas de semicondutores, energia e infraestrutura, e da abertura do mercado chinês para produtos do agro brasileiro.
É o que se lê no próprio Estadão (1º/05/25), no editorial que desanca o presidente Lula. Faltou dizer que, entre os entendimentos logrados, está nosso acesso direto ao grande mercado do Pacífico, via o porto peruano de Chancay, construído pela China.
A direita brasileira, pela qual fala a grande imprensa, nos quer engajados numa disputa hegemônica de blocos econômicos que não nos diz respeito. E já tem lado. Pode ser que a União Europeia tenha alguma razão para temer e odiar a Rússia — mas nós não temos. E parece que nem mesmo Trump as cultiva, embora continue interessado em vender armas para tentar salvar um parque industrial obsoleto (sua viagem à Arábia Saudita parece ter-se constituído em um sucesso comercial).
A disputa pela hegemonia se circunscreve à polarização com a China, que nada tem a ver conosco — nada obstante a tragédia geopolítica que nos instala no que antigas e atuais autoridades dos EUA, fiéis à sempre viva Doutrina Monroe, consideram “seu quintal”.
Vivemos a grande vitória ideológica do neoliberalismo, assimilado pelas chamadas elites pensantes, que são as elites dominantes. Assim se explica a alienação dessa imprensa — e da política — em face da questão nacional. E seu real desapreço pela democracia.
No Brasil, a chamada “grande imprensa” — com destaque para O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo — não apenas defendeu o golpe de 1º de abril de 1964 como logo abraçou a ditadura militar, ao ponto de esconder seus crimes, e, nestes termos, tornar-se cúmplice. Porque o regime deposto, segundo a visão do Departamento de Estado dos EUA (que supervisionou o golpe), prometia a ascensão das massas em um país que representava algo como metade do continente sul-americano, em plena Guerra Fria e após o acidente sem volta que foi a Revolução Cubana, a tão poucos passos da Flórida.
O ativismo antidemocrático e antipopular, porém, vem de longe. Nos meados do século passado, os jornalões, suas emissoras de rádio e de TV foram decisivos na preparação da crise que levou ao golpe militar e ao suicídio de Getúlio Vargas (1954), frustrando o projeto de governo trabalhista-democrático. Participaram, com a direita militar, da tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek (1956) e jamais aceitaram as teses do desenvolvimentismo. Combateram a construção de Brasília, os ensaios de política independente de Jânio Quadros e foram ativos na conspiração que visava impedir a posse de João Goulart (1961).
Não podem, sequer, falar em liberdade de imprensa. Estiveram de mãos dadas na tentativa de calar a voz da Última Hora, o único dos grandes jornais então aliado ao governo Vargas, e buscaram o monopólio dos meios — depois de assegurado o monopólio do discurso.
A grande imprensa brasileira, repito, tem sua história ligada à ditadura instalada em 1º de abril de 1964 e muito contribuiu para a longeva trajetória de 21 anos dos governos da caserna, assim fazendo jus aos dividendos com que foi premiada.
O sistema Globo — jornais, rádios, revistas e televisão — apoiou com entusiasmo o golpe e sustentou o mandarinato militar, até quando se anunciaram os primeiros sinais de seu esgotamento. Ainda no auge da festa, o general Emílio Garrastazu Médici, ditador nos anos 1969–1974 — certamente a fase mais sangrenta do mando da caserna — encheria de açúcar os ouvidos de Roberto Marinho:
“Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal [Nacional]. Enquanto as notícias [internacionais] dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de
trabalho.”
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