Os talibãs
Para os analistas de geopolítica, o livro de Tim Marshall, Prisoners of Geography: Ten Maps that Tell You Everything You Need to
Para os analistas de geopolítica, o livro de Tim Marshall, Prisoners of Geography: Ten Maps that Tell You Everything You Need to Know About Global Politics, é extremamente original, e necessário. Seu objetivo é expor e demonstrar, porque é sua tese, como o design político mundial, desde a Antiguidade até os dias de hoje, dependeu da configuração geográfica dos continentes, seus rios, montanhas, planícies e dos mares.
Tim Marshall é um jornalista britânico, agora com 62 anos, que trabalhou durante pelo menos 25 deles para uma série de mídias de primeira linha nos quatro cantos do mundo – exceto, pelo que pude verificar na sua biografia, na América Latina. Ou pelo menos, neste quadrante do mundo, a sua frequência foi menor do que em outros, o que se reflete, como exporei, no texto.
Este livro em foco – de que existe uma excelente versão para crianças[1] – procura reunir uma reflexão abrangente sobre sua experiência como analista e testemunha da política internacional durante as últimas décadas do século passado e as primeiras deste, mergulhando em profundidade do passado histórico.
Ao invés da praxe habitual, de começar pelas positivas, começarei pelas negativas, que são relativamente poucas, depois passando aquelas, que são muitas.
A sereia geográfica
A primeira negativa me faz glosar o título, Prisioneiros da geografia. Acontece que o autor também se mostra um “prisioneiro da geografia”. Ou seja, parece um tanto encantado com sua tese, a de que a geografia do terreno, dos rios e dos mares, determinou e ainda determina predominantemente as opções políticas dos dirigentes das etnias, dos povos, das nações, dos estados modernos e, portanto, o desenho da geopolítica, como afirmado no primeiro parágrafo desta resenha. A tese é esgrimida com muita informação e originalidade, mas peca por uma dose de exagero. Há uma leve mas insistente tendência a tornar natural aquilo que é fruto de tramoias e maquinações políticas, embora algumas destas também sejam expostas de maneira objetiva e impiedosa.
A América Latina
Segunda e última negativa desta resenha: a América Latina. Vê-se logo de saída que o autor demonstra muito menos familiaridade com ela do que com os outros continentes analisados: Europa, Ásia, África, partes da Oceania e até o Ártico, embora este não seja propriamente um continente, mas uma cada vez mais ameaçada calota de gelo com passagens abertas cada vez menos eventuais durante o ano.
Dou um exemplo. Ao analisar a constituição histórica do Brasil, o autor assinala as dificuldades econômicas impostas pelo relativo isolamento entre as diferentes regiões, e a problemática situação da floresta amazônica, santuário ameaçado e também terreno impróprio para a agricultura. Daí assinala a fertilidade das terras mais ao sul, depois do cerrado que cerca a floresta, assinalando que a colonização portuguesa e o subsequente Brasil ali se fixaram por 300 anos antes de começar a se expandir pelo resto do território. Ou seja, ele simplesmente remete ao limbo a ocupação açucareira do atual Nordeste e o ciclo do ouro nas Minas Gerais.
Assim mesmo, seu ponto de vista contrabalança, de modo instigante, aquela visão tradicional do Brasil “abençoado pela sua Natureza exuberante”, apontando as dificuldades históricas e geográficas de seus planaltos, escarpas alcantiladas e do litoral acidentado, que fez do futuro país, inicialmente, um aglomerado de arquipélagos com maior ligação com a metrópole do que entre suas “ilhas”.
Outro exemplo: o papel deletério do imperialismo norte-americano sobre a região é mencionado sim, mas de modo muito leve diante do seu peso histórico e esmagador de tentativas de libertar-se de seu círculo de ferro.
Passemos às positivas. Será impossível falar de todas. Citarei alguns exemplos.
Os talibãs
Começo por um assunto extremamente atual: como explicar a força resiliente dos talibãs no Afeganistão, onde estão prestes a retomar o poder? O livro de Tim Marshall oferece uma hipótese bastante verossímil. Em termos mais recentes (embora a origem desta história comece na Antiguidade) tudo começa com a formação do atual Paquistão, inventado pelos britânicos para resolver o imbróglio que criaram na Índia e em parte de seu atual entorno. Numa tentativa de acomodar as tensões intra etnias, povos e religiões, os britânicos instituíram uma divisão: grosso modo, a Índia para os hindus e o Paquistão para os muçulmanos, o que, na ocasião (logo depois da Segunda Guerra Mundial), provocou uma enorme e tensa migração de um lado para o outro da fronteira desenhada.
Desta forma, reuniram-se no Paquistão (depois declarado uma República Islâmica) seis etnias principais, sendo a maior a dos Punjabis (44,7% da população), seguida dos Pashtuns (15,4%) e dos Sindhis (14,1%). Historicamente o convívio entre estas etnias esteve longe de ser amistoso, muitas vezes não passando de uma cordialidade sob a qual prosseguiam vicejando antigas rivalidades. Também a o fato de que “Paquistão” significa pouco para estes grupos, mais afeitos a suas lealdades antigas do que à novidade de uma “nação moderna”, de modelo europeu.
Ocorre que os Pashtuns são a maior etnia presente no vizinho Afeganistão (44% da população), ocupando quase a metade de seu território, a partir da fronteira com o Paquistão. O próprio nome “Afegão”, que deriva, dizem os eruditos na matéria, da palavra sânscrita “Asvakan” (“Cavaleiros”), designava, historicamente, os Pashtuns. “Afeganistão”, também uma República Islâmica, reúne, a raiz “Afghan” com o sufixo “stan”, da línguas Pashto (dos Pashtuns) e Persa (dos Iranianos), que quer dizer “lugar dos”. “Afeganistão” = “Lugar dos Afegãos”, isto é, historicamente, os “Pashtuns”. E – surpresa? – os Pashtuns são a base étnica e cultural dos Talibãs, um movimento político/religioso que emergiu em 1994 da raiz “Deobandi”, uma corrente muçulmana Sunita de tendência tradicionalista em meio à guerra civil que opunha a maioria Pashtun ao regime sucessor dos comunistas apoiados alguns anos antes pela naufragada União Soviética. Este movimento religioso, de raiz antiga, foi ampliado e intensificado por atividades acadêmicas que criaram uma base vasta de jovens e fieis militantes de sua causa.
Durante o conflito com os soviéticos os futuros talibãs contaram com o apoio dos Estados Unidos e seus aliados (incluindo o Paquistão), de tal modo que agora se pode dizer, com segurança, que Washington, em sua “retirada”, que muitos no país abandonado preferem chamar de “traição”, está sendo humilhada pelo que ajudou a semear. Sem falar que no labirinto dos Pashtuns crescia o grupo da Al-Qaïda, liderado por Osama Bin Laden, também apoiado, inicialmente, pelos EUA, além da Arábia Saudita. Deu no que deu.
Fatores decisivos
Três fatores são ainda decisivos nestes conflitos “de muitos gumes”, como dizia colega meu, José Jorge Peralta, nos tempos de USP.
O primeiro: historicamente, os Pashtuns têm muito mais familiaridade com o terreno hostil do país do que qualquer forças invasoras, sejam as extintas soviéticas ou as dos Estados Unidos e seus aliados. O território afegão, com regiões predominantemente montanhosas e/ou desérticas, oferecendo extremos de inverno e verão, favorece os habitantes tradicionais contra quaisquer invasores.
O segundo: a fronteira com o Paquistão, com o território imediatamente vizinho ocupado também por Pashtuns, facilita o trânsito vai-vem dos Talibãs, que podem se refugiar e se re-municiar no lado paquistanês.
O terceiro fator é o próprio Paquistão. Embora pertença ao exclusivo clube das nações com armas nucleares, o Paquistão é um país de população empobrecida, envolto em conflitos amargos: com a vizinha Índia, com os dissidentes separatistas da Cashemira, além dos internos e das relações difíceis com seus aliados ocidentais. Pressionado por estes últimos, o governo paquistanês rompeu relações com os Talibãs e passou a considerá-los um grupo “terrorista”. Porém nada interessa menos a este governo do que agravar as tensões internas entre etnias e correntes muçulmanas cujo convívio é problemático, para dizer o mínimo. Na prática, isto quer dizer que o governo, sediado em Islamabad, cidade situada a pouco mais de 150 km da fronteira com o Afeganistão, tem pouco interesse em hostilizar os Pashtuns.
A força resiliente dos Talibãs mostra-se, assim, inexpugnável. A ONU, os Estados Unidos e seus aliados, o próprio Paquistão podem considerá-los um grupo “terrorista”. O fato é que eles dispõem de uma base social considerável tanto no Afeganistão quanto no Paquistão. Além disto, os Pashtuns têm uma presença significativa na Índia, nos Emirados Árabes Unidos, no Irã, até mesmo nos Estados Unidos, e uma presença menor em sete outros países dispersos pelo mundo.
A ação de britânicos e franceses
O exemplo explorado acima – os talibãs – expõe o papel do colonialismo/imperialismo britânico no mundo todo, em particular na África, no Oriente Médio e na Ásia, na semeadura dos atuais conflitos armados nas regiões que estiveram sob seu domínio. Seu papel e seu legado nefastos também se espalham por outras regiões, como a América Latina e a Oceania. Também contou com uma ajuda alheia: a dos Estados Unidos (com um estilo diferente), de outros países europeus, como a França, a Bélgica, a Alemanha, a Holanda e em escala menor, a Itália. Tiveram antecessores ilustres no colonialismo espanhol e português.
Porém os britânicos, com ajuda sobretudo dos franceses, se especializaram em retalhar, com suas linhas traçadas em mapas estendidos sobre uma mesa europeia, povos e geografias pelo mundo que dominavam, separando o que deveria permanecer unido e unindo o que deveria permanecer separado. Estas linhas não eram “arbitrárias”, pois atendiam a seus interesses geopolíticos, mas o eram em relação ao que retalhavam.
A linha Sykes-Picot
Um dos casos mais dramáticos destes recortes, que o livro de Marshall examina, é o da chamada linha Sykes-Picot no Oriente Médio. Entre o final de 1915 e o começo de 1916, em meio à guerra de trincheiras na Europa, dois diplomatas, o britânico Coronel Sir Mark Sykes e o francês François George-Picot, negociaram o acordo que resultou – depois de algumas negociações suplementares – no acordo que dividiu o Oriente Médio em duas fatias, diante do bolo do Império Otomano que se desmanchava.
Uma linha quase reta, diz a tradição que inicialmente traçada por Sykes, dividia a região desde Haifa, hoje um porto mediterrâneo de Israel, até Kirkuk, hoje no nordeste do Iraque, já próximo da fronteira com o vizinho Irã. Ao norte desta linha, o mando seria francês; ao sul, britânico. Desta linha, depois aceita pela Rússia (já envolta na rebeldia que levou à Grande Revolução) e pela Itália, decorreu a existência de países-estados de fronteiras criadas algo artificialmente, como Síria e Jordânia, Iraque e Kuwait, Líbano e a futura cereja do bolo para o que resta do antigo Ocidente, Israel. Também decorreu daí o status de refugiados em sua própria terra, em condições diferentes entre si, de palestinos e curdos.
A pizza de Vladimir Putin
Há outros casos em estudo, onde a geografia física impõe sua presença sobre as linhas traçadas em mesas de negociação. Um destes exemplos abre o livro. Diz Marshall que Vladimir Putin deve pensar todos os dias numa fatia de pizza. Esta tem uma forma triangular; e triangular é a forma de um mapa que começa na base larga dos Urais, uma das fronteiras entre a Ásia e a Europa, atravessa a planície russa, em cujo centro está a capital, Moscou, depois prossegue tendo ao norte os países bálticos, Estônia, Letônia e Lituânia, ao meio a Bielo-Rússia, e a Ucrânia ao sul, chegando à ponta-fina da pizza, a Polônia. Daí para frente se estende outra região largamente plana, através do norte da Alemanha, da França, compreendendo a Bélgica e a Holanda, até o Oceano Atlântico.
Segundo Marshall, entre outros fatores é esta pizza que explica, por exemplo, o apoio inconteste de Putin a uma figura problemática mais útil para ele, como Lukaschenko, na Bielo-Rússia, e a decisão de re-anexar a Crimeia, quando o antigo Ocidente beligerante conseguiu derrubar um governo pró-russo em Kiev, na Ucrânia. O lado ocidental da Rússia está, por assim dizer, cercado pela geografia que, desde o Atlântico, não oferece qualquer obstáculo maior a forças invasoras. Além do fato de que a maioria dos portos russos, com exceção daqueles no Mar Negro, agora re-incluindo Sebastopol, na Crimeia, pertence bloqueada pelo gelo durante boa parte do ano.
A dura lição para Napoleão e Hitler
Penso que estes exemplos são suficientes, dentre muitos outros, para sustentar uma tese implícita no livro de Marshall, qual seja, a de que, mesmo numa época de drones e guerra nas estrelas, o fator decisivo no caso de um confronto armado ou simplesmente de contagem de forças, também além da aviação e da marinha, entre os fatores decisivos estão forças terrestres, portos, aeroportos, linhas de comunicação e abastecimento e o conhecimento e o domínio do terreno físico e humano onde tudo se decide.
Uma dura lição que abateu os esforços, tão diferentes entre si, de Napoleão e Hitler na Rússia. Invadir a Rússia a partir do Ocidente é uma coisa. Ocupá-la é outra. À medida que a ocupação avança, se distendem as linhas de comunicação e abastecimento. As dificuldades de sua revitalização terminaram provocando o colapso daquelas invasões, que enfrentaram, sobretudo no caso da segunda, uma tenaz resistência no terreno. No caso da Segunda Guerra Mundial, um fator que favoreceu os soviéticos foi o “atraso” de seu material bélico, sobretudo no terreno de blindados, diante da “tecnologia de primeira linha” dos alemães.
Os soviéticos, usando poucos e simples modelos, tinham mais facilidade em produzi-los em massa e suas peças de reposição, do que os sofisticados aparelhos inovadores dos alemães, além de que estes tinham uma enorme dificuldade para fazer chegar os tanques e outros armamentos vitais e suas peças de reposição através de um terreno cada vaso mais hostil.
Mutatis mutandis, uma lição parecida atingiu tanto os soviéticos no passado, quanto os norte-americanos e seus aliados hoje no Afeganistão.
Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
Fonte: A Terra é redonda
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