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Igor Fuser

Pré-sal, uma tragédia brasileira

A entrega do petróleo brasileiro do pré-sal já não é ameaça ou risco – tornou-se, em grande medida, uma realidade, com o frenesi de leil?

Publicado em 19/12/2018
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A entrega do petróleo brasileiro do pré-sal já não é ameaça ou risco – tornou-se, em grande medida, uma realidade, com o frenesi de leilões para a exploração das imensas reservas do litoral, realizados em meio ao quase total desconhecimento da opinião pública. Em cinco rodadas de leilão já realizadas, a Petrobras adquiriu apenas 25% (13 bilhões de barris) de um total de 52 bilhões de barris de petróleo entregues a consórcios de empresas, que vão explorar e vender esses recursos (1).

A parcela em poder da empresa brasileira – que descobriu essas reservas, em 2006, e desenvolveu tecnologia de ponta para o empreendimento bem-sucedido da sua exploração – é menor do que a obtida por duas petroleiras do Reino Unido, a BP e a Shell, que já abocanharam até agora 13,5 bilhões de barris de petróleo do pré-sal, o que equivale a 26% do total. Duas empresas estadunidenses, a ExxonMobil e a Chevron, ficaram com 20% (10,3 bilhões de barris), e quatro petroleiras chinesas adquiriram, no conjunto, 9,5% das reservas brasileiras já leiloadas (4,9 bilhões de barris). O volume restante foi dividido entre empresas de diversos outros países, como Noruega, França, Alemanha e Portugal.

O resultado desses leilões indica que o Brasil está abrindo mão da maior parte dos ganhos ¬nanceiros a serem gerados pela exploração do imenso tesouro petrolífero situado no seu litoral. De acordo com cálculos do pesquisador Eduardo Costa Pinto, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro Pré-sal, uma tragédia brasileira (UFRJ), cada barril de óleo a ser produzido nos campos já leiloados produzirá um excedente de cerca de 120 reais, de acordo com os preços em setembro de 2018, considerando as taxas de câmbio, os custos estimados e os padrões vigentes para a partilha desse recurso entre a União e as empresas contratadas (2). Desse valor, 70 reais, na média dos blocos do pré-sal a serem explorados, correspondem aos lucros das petroleiras e apenas 50 reais serão arrecadados pela União – a quem, legalmente, pertencem todas as riquezas existentes no subsolo brasileiro.

A renúncia, pelas autoridades brasileiras, de um valor incomensurável em receitas futuras para o orçamento público já seria, em si mesmo, um crime gravíssimo de traição à pátria, mas o que está em jogo é muito mais grave. Com a mudança nas regras e na política para a exploração do pré-sal, iniciada durante a ofensiva direitista que culminou na deposição da presidenta legítima Dilma Rousseff  e prosseguiu em dois anos e meio de regime golpista de Michel Temer, o país deixa de lado a possibilidade de utilizar o gigantesco empreendimento do pré-sal para promover o desenvolvimento da indústria e da tecnologia nacionais. As normas de conteúdo local adotadas nos governos de Lula e Dilma para garantir a utilização de bens, equipamentos e serviços nacionais, de modo a alavancar o desenvolvimento industrial do país a partir das encomendas do pré-sal, foram dramaticamente encolhidas na gestão Temer, que atendeu até agora a todas as demandas das empresas estrangeiras, em prejuí- zo do interesse nacional. Chegamos assim a uma situação em que todos os objetivos que levaram o Congresso Nacional, em 2010, a aprovar um conjunto de leis voltadas para maximizar os ganhos com as novas reservas petrolíferas brasileiras foram ou estão em processo de ser anulados por uma orientação entreguista e ultraliberal implementada pelo Poder Executivo, pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) e pela alta direção da Petrobras.

Graças às regras de conteúdo local adotadas nos governos anteriores, a indústria naval brasileira, reduzida a cinzas pela política neoliberal dos governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso, renasceu e saltou de 2 mil empregos em 2000 para 85 mil em 2014. Nada menos que 16 navios de grande porte foram entregues à Petrobras entre os anos de 2011 e 2017, cofirmando o acerto da decisão do presidente Lula de favorecer os estaleiros brasileiros nas encomendas do pré-sal em lugar de comprar essas embarcações em países como Cingapura ou Coréia do Sul (3). Ao contrário do que diziam os agentes do capital externo, a indústria nacional superou rapidamente os desafios de qualidade e custo, produzindo esses navios de acordo com as especificações técnicas e com margens decrescentes de atraso. Conforme afirmou Dilma Rousseff, “nós provamos que era possível construir plataformas no Brasil, nós provamos que é possível construir sondas no Brasil, nós provamos que é possível construir equipamentos e os bens e prestar os serviços de que a Petrobras precisa para explorar o pré-sal” (4).

O contraste entre essas palavras e a triste realidade atual é gritante. No governo Temer, o índice de conteúdo local para exploração de petróleo (ou seja, pesquisa e prospecção) caiu para 18%, em comparação com a margem de 37% a 55% existente antes de 2016. A participação nacional nas plataformas petrolíferas encolheu de um mínimo de 55% (ou até 65%, em certos casos) para uma média de 25% (5). Os novos índices são tão pequenos que, em muitos projetos, podem ser supridos somente com a prestação de serviços, sem envolver a compra de máquinas e de equipamentos nacionais. Certamente, o momento mais significativo do atual retrocesso na presença industrial brasileira no pré-sal ocorreu em 21 de julho de 2018, quando uma empresa chinesa entregou à Petrobras a plataforma P-65, a primeira entre as utilizadas no pré-sal a ser fabricada inteiramente no exterior (6).

Descoberta em 2006 e anunciada oficialmente em novembro de 2007, a área do pré-sal, situada numa faixa do litoral brasileiro entre os estados do Espírito Santo e o norte de Santa Catarina, é a maior e mais valiosa entre as novas reservas de petróleo encontradas no mundo nos últimos cinquenta anos. Estima-se que lá estejam guardados ao menos 80 bilhões de barris de petróleo, o que deixa o Brasil numa posição privilegiada entre os cinco ou seis maiores donos de reservas petrolíferas do mundo. O pré-sal abriu novas perspectivas, tanto no que se refere aos suprimentos de energia – com a expectativa de superar a necessidadede importar petróleo e derivados – quanto à balança comercial, já que existe uma forte chance de o país se tornar um importante exportador desse combustível. Tamanha riqueza só poderia despertar polêmica – como de fato ocorreu, desde o início – e, sobretudo, a cobiça das grandes empresas petrolíferas internacionais, sediadas principalmente nos EUA e na Europa Ocidental, companhias riquíssimas, porém carentes daquilo que constitui o patrimônio mais importante nesse setor da economia: reservas de petróleo em condições de serem exploradas. Colocou-se em dúvida a capacidade da Petrobras em levar adiante a exploração econômica desse tesouro. Dizia-se que o custo de produção seria tão elevado que tornaria a exploração dos poços inviável do ponto de vista comercial. Ao mesmo tempo, disseminou-se todo um discurso voltado para diminuir a importância econômica do pré-sal, sob o argumento de que a humanidade estaria em vistas de deixar para trás a “era do petróleo”, fadado a ser substituído rapidamente por combustíveis renováveis.

Os fatos desmentiram, uma a uma, essas afirmações agourentas. Em menos de três anos, o petróleo do pré-sal já estava jorrando nas plataformas da Bacia de Campos, em uma proeza inédita na história da indústria petrolífera mundial. No Golfo do México, por exemplo, foram necessários sete anos, após a descoberta de petróleo no mar (off shore), para que as empresas estadunidenses começassem a produzir. Hoje em dia mais da metade da produção de petróleo brasileiro é oriunda das plataformas do pré-sal e os custos caem a cada ano, por conta do domínio crescente da tecnologia desse tipo de exploração pela Petrobras e da alta produtividade dos poços. Quanto à idéia de que o petróleo estaria prestes a se tornar obsoleto, a ela se contrapõem as projeções dos centros de referência mais respeitados, como a Agência Internacional de Energia (AIE), que prevê o consumo cada vez maior desse combustível, em escala mundial, ao menos até 2040, ainda que em termos proporcionais outras fontes energéticas, como o gás natural e os chamados novos renováveis (energias eólica e solar) se expandam a um ritmo mais rápido.

Para garantir os interesses nacionais na exploração do pré-sal, o governo Lula elaborou um marco regulatório moderadamente nacionalista, que visa atrair empresas estrangeiras como sócias da Petrobras na exploração desse recurso, sem abrir mão de maximizar as oportunidades para utilizá-lo em favor do desenvolvimento industrial e social do país. Altos investimentos foram feitos para levar adiante a exploração das reservas, e centenas de empresas se mobilizaram para produzir os equipamentos necessários.

Todo o gigantesco projeto do pré-sal começou a desmoronar a partir do terceiro trimestre de 2014, por efeito de uma conjunção de fatores negativos, entre os quais se destacam os efeitos da Operação Lava-Jato sobre a Petrobras e suas empresas parceiras, envolvidas em um vendaval de escândalos de corrupção; a queda abrupta dos preços internacionais do petróleo; o aumento das dívidas da Petrobras e a perda do seu “grau de investimento”; a desvalorização do real, que agrava o endividamento da empresa; a crise política no comando da Petrobras, levando à saída da sua presidenta, Graça Foster, e a crise política no Brasil, que culminou no golpe jurídico-parlamentar contra Dilma Rousseff (7).

O governo instalado em meio ao processo de impeachment, sob a presidência de Temer, deu início imediato ao desmonte das políticas petrolíferas de Lula e Dilma. A peça chave para essa ofensiva foi o Projeto de Lei nº 4.567/2016, do senador José Serra (PSDB-SP), que retira da Petrobras a obrigatoriedade de participar de todos os contratos do pré-sal, de ser a operadora em cada um deles e de ¬car com 30% em cada projeto de exploração. Já em 2017, aprovado o projeto de Serra, o governo Temer passou a encomendar a empresas estrangeiras plataformas e novos equipamentos para a exploração do pré-sal, desrespeitando a política de conteúdo local. Em paralelo, a Petrobras vendeu à empresa francesa Total a maior parte de sua participação nos blocos do pré-sal de Iara e de Lapa, riquíssimos em petróleo, invertendo totalmente a orientação que caminhava no sentido da máxima presença da empresa estatal e do controle da União sobre esses recursos (8).

As perspectivas para o pré-sal são decepcionantes, se comparadas com o otimismo de tempos atrás, quando a descoberta foi qualficada como “segunda independência do Brasil” (Lula) e “um passaporte para o futuro” (Dilma). Hoje o Brasil entrega a exploração de sua maior riqueza a empresas transnacionais, apesar de contar com uma empresa petrolífera de grande porte e excelência tecnológica, reconhecida por meio de inúmeros prêmios internacionais. A própria Petrobras se encontra em processo de desmanche, ameaçada de privatização. O governo brasileiro se volta para ganhos de curto prazo, utilizando os bônus de participação pagos pelas empresas vencedoras dos leilões para cobrir os rombos no orçamento público, desperdiçando a oportunidade dourada de aproveitar uma riqueza natural altamente valiosa para superar o subdesenvolvimento. Hoje o Brasil, apesar de já ter obtido a autossficiência na produção de petróleo, importa derivados como a gasolina e o diesel e exporta óleo cru, a exemplo do fazem países periféricos donos de reservas petrolíferas, mas sem condições de se abastecer de combustível em suas próprias refinarias. No campo da energia, como em tantos outros, estamos regredindo a uma situação colonial.

* Igor Fuser é professor no Bacharelado em Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

1 “Leilões do pré-sal: vitória das estrangeiras e derrota da Petrobras”. Eduardo Costa Pinto, Carta Capital, 28/09/2018.

2 Eduardo Costa Pinto, op.cit.

3 “A política neodesenvolvimentista e seu desmanche no caso do petróleo e gás 2002-2017”. Giorgio Romano Schutte, Textos de Discussão, Núcleo de Estudos Estratégicos em Desenvolvimento, Democracia e Sustentabilidade (NEEDDS) da Universidade Federal do ABC (UFABC), fevereiro de 2018.

4 Entrevista ao Valor Econômico, 29/11/2017.

5 Giorgio Romano Schutte, op.cit.

6 “Petrobras, gigante do petróleo, recebe nova plataforma para exploração do pré- -sal”, Xinhua (agência de notícias chinesa), 21/07/2018. Disponível em http:// portuguese.xinhuanet.com/2018- -07/21/c_137339552.htm.

7 “Petrobrás em marcha forçada”, Giorgio Romano Schutte, Textos de Discussão, Núcleo de Estudos Estratégicos em Desenvolvimento, Democracia e Sustentabilidade (NEEDDS) da Universidade Federal do ABC (UFABC), abril de 2016.

8 Petrobras cede direitos na concessão de campos para a Total”, Jornal GGN, São Paulo, 01/03/2017.

Fonte: Corecon

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