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Edna Bonhomme

Quando a África era um laboratório alemão

Cientistas ocidentais transformaram a África em um laboratório vivo durante a epidemia da doença do sono no início do século 20. Não teria

Publicado em 16/10/2020
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Cientistas ocidentais transformaram a África em um laboratório vivo durante a epidemia da doença do sono no início do século 20. Não teria permissão para fazer o mesmo nos dias atuais.

Na virada do século 20, epidemias de trypanossoma, ou "doença do sono", como eram mais conhecidas, começaram a aparecer na África. Essa doença parasitária, transmitida por um vetor, causava apatia, movimentação lenta, desordem na fala, fraqueza física e morte. A doença do sono fez soar o alarme entre os colonizadores europeus no continente que temiam que a contaminação em outras áreas pudesse atingir a força de trabalho africana e, em consequência, seus projetos coloniais.

Em 1906, um renomado cientista alemão viajou para a África Oriental com sua esposa e seus assistentes para tentar encontrar uma "cura" para a doença. Ele construiu um "campo de concentração" para doentes do sono na região e começou a tratá-los com Atoxyl – um reagente que continha arsênico – embora se soubesse que o arsênico causasse dor, cegueira e até mesmo a morte.

O nome desse cientista era Robert Koch.

Atualmente, o legado de Koch está vivo por toda a Alemanha. A cidade de Berlim está cheia de placas, monumentos e estátuas que trazem seu nome, louvando suas realizações médicas. A agência federal alemã, responsável pelo controle de doenças e sua prevenção e que está conduzindo a resposta do país à pandemia de Covid-19 também tem o nome de Koch.

Mais conhecido por suas pesquisas sobre a cólera e a tuberculose, Koch é considerado o fundador da moderna microbiologia e um dos melhores cientistas do fim de século 19 e início do século 20. Recebeu o Prêmio Nobel de Medicina/Fisiologia em 1905 por suas pesquisas sobre a tuberculose e recebeu aclamação internacional por suas descobertas. Seus quatro postulados, usados para estabelecer a relação de causa e efeito entre um micróbio e uma doença, são ensinados até hoje nas aulas de biologia dos cursos de ensino médio para firmar a compreensão dos estudantes sobre as doenças, infecções e o meio ambiente.

Atualmente, as descobertas e realizações de Koch são bem conhecidas e bastante celebradas na Alemanha e em todo o mundo, mas sua expedição à África Oriental raramente é mencionada. Quando eu estava escrevendo este artigo, até mesmo na Wikipedia, onde sua vida, sua educação e sua carreira são discutidas em detalhe, não há qualquer menção a seu trabalho na África. Não há qualquer dúvida sobre o fato de que Koch projetou, construiu e operou pessoalmente campos de concentração com algum viés médico na África Oriental, causando incomensurável sofrimento e dor a milhares de pessoas. Por que seus esforços colonizadores têm sido ignorados nas discussões atuais sobre seu legado?

Os defensores de Koch poderiam alegar que suas notáveis contribuições no campo da biologia poderiam contrabalançar sua breve expedição à África. Todavia, a influência que Koch teve na África colonial não se limitou aos poucos anos que passou no continente. Basta saber de sua decisão de conduzir experiências médicas utilizando os povos africanos que foram consideradas perigosas para os europeus e tinham tido consequências além do suportável além de terem influenciado o modo como a comunidade científica ocidental trata os africanos até os dias atuais.

Quando a doença do sono golpeou a África há cerca de um século, havia muito pouco conhecimento sobre da doença. Embora seus riscos fossem bem conhecidos tanto na Europa quanto na África, pouco poderia ser feito para evitar sua propagação.

Mesmo assim, os cientistas alemães chegaram com diversos remédios que acreditavam serem efetivos no tratamento da doença do sono, bem como outras doenças presentes na Europa, tais como a sífilis. Eles testaram esses remédios em animais, mas a crescente suspeita a respeito de experimentos médicos em humanos na Europa mostrava que essas misturas não poderiam ser experimentadas em cobaias alemãs.

Na África, entretanto, não havia qualquer tipo de resistência pública comparável e as autoridades coloniais pouco se importavam com o impacto que esses experimentos pudessem ter sobre os africanos.

Assim, quando Koch embarcou para a África Oriental, sua principal tarefa era testar esses remédios – muitos dos quais contendo substâncias venenosas como o arsênico – em humanos. É difícil determinar se a principal preocupação de Koch era curar os africanos orientais que sofriam dessa horrível doença ou usá-los como porquinhos da Índia para avaliar a eficiência de remédios que poderiam ser empregados no tratamento de outras doenças que já afetavam os europeus em larga escala.

Seria Koch um racista querendo conduzir experimentos perigosos com pessoas negras para benefício da Alemanha ou um cientista esperto que assumia riscos para curar doentes?

Talvez jamais venhamos a saber a resposta definitiva a esta pergunta. O que de fato sabemos, entretanto, é que não importam suas intenções, as ações de Koch contribuíram diretamente para a opressão colonial dos povos africanos.

Após chegar à África Oriental, Koch construiu o Campo de Pesquisas da Doença do Sono em Bugula (na atual Gana) e começou a tratar até 1.000 pessoas por dia com Atoxyl e outros reagentes não testados. Como a historiadora Manuela Bauche explicou, não é claro quantos habitantes locais foram ao campo de Koch e se eles eram informados dos prováveis efeitos esses que "tratamentos" tóxicos poderiam provocar em seus corpos.

Os experimentos de Koch no Campo de Bugula estabeleceram o padrão para o combate da doença do sono nas colônias alemãs na África. Não somente o Atoxyl firmou-se como a droga padrão no tratamento da doença do sono, mas o plano de Koch para construir muitos mais "campos de concentração" – nome que ele mesmo deu a essas instalações – para isolar os doentes dos saudáveis e continuar com as experimentações em humanos que foram levadas a sério pelas autoridades alemãs.

Ao tempo em que Koch deixou a África, outubro de 1907, três "campos de concentração" para a doença do sono tinham sido construídos na África Oriental alemã e mais cinco dessas instituições poderiam ser encontradas nas colônias da África Ocidental alemã, atualmente o Togo e Camarões.

Nesses campos, conforme Wolfgang U. Eckart explica em seu texto de pesquisa, "A colônia como laboratório: campos de concentração da doença do sono na África Oriental", milhares de africanos se tornaram objetos de perigosas pesquisas terapêuticas e farmacológicas. Os cientistas que dirigiam os campos aplicavam rotineiramente diferentes doses de Atoxyl em seus "pacientes" e monitoravam os efeitos colaterais que surgiam.

De acordo com a historiadora da Universidade de Pittsburg, Mary K. Webel, no campo de Bugula, construído pelo próprio Koch, as cobaias foram obrigadas a usar etiquetas de identificação de madeira no pescoço ou nos pulsos e submetidas a uma série de avaliações desumanizadoras. Os olhos e ouvidos eram regularmente perfurados por agulhas em um esforço para extrair aquilo que os cientistas chamavam Krankenmaterial (suprimentos médicos) ou "material doente" de seus corpos.

Os dados coletados nesses campos eram eventualmente partilhados com funcionários britânicos, que também estavam tentando enfrentar surtos da doença do sono em suas colônias.

Frente a frente com uma epidemia mortífera, que poderia devastar a força de trabalho e destruir a economia, Koch e seus contemporâneos partiram para uma busca a fim de achar a cura ou, ao menos, um meio para controlar a propagação da doença. Ao escolherem levar a cabo experimentos que consideravam perigosos para populações europeias em africanos, eles criaram e sustentaram hierarquias raciais para e execução de experiências. À luz da corrida internacional para desenvolver uma vacina para a Covid-19, estas são questões com as quais deveríamos ter cuidado hoje em dia.

Em abril de 2020, dois médicos franceses sugeriram, em um programa de TV, que uma potencial vacina contra o coronavírus deveria, a princípio, ser testada na África.

"Isto pode ser provocação", disse Jean-Paul Mira, chefe da unidade de terapia intensiva do Hospital Cochin, de Paris. Se não fizéssemos esse estudo na África onde não há máscaras, nem unidades de terapia intensiva, um pouco como tem sido feito com alguns estudos de Aids, onde entre as prostitutas, tentamos novos caminhos, por que sabemos que elas estão muito expostas e não se protegem?

Seus comentários causaram tumulto e levaram muitos a desafiarem publicamente a ideia de que a "África é um laboratório de testes para a Europa".

A sugestão dos médicos franceses, todavia, não deu em nada. Mais de um século atrás, quando confrontados com uma nova doença mortal, os funcionários da Europa colonial não pensaram duas vezes antes de usar os africanos como objetos de teste, sem ter sua concordância ou informando-lhes dos riscos.

Koch foi um brilhante cientista e provavelmente queria achar a cura para a doença do sono e melhorar o nível de saúde e de vida daqueles que sofriam da doença. Mesmo assim, os métodos que ele usou para buscar a cura e as condições que ele criou para conter a doença tinham raízes na hierarquia colonial. Ele não apenas envenenou milhares de pessoas, como também contribuiu para generalizar a aceitação da ideia de que, quando se chega à ética médica, regras diferentes podem ser aplicadas à África e à Europa.

À medida que continuamos a buscar uma vacina ou uma potencial cura para o novo coronavírus, é importante prestar atenção aos capítulos obscuros do passado, já que a África não é mais um laboratório vivo para os cientistas ocidentais.

Edna Bonhomme é escritora e historiadora da ciência baseada em Berlim, Alemanha

Traduzido do Inglês por A. Pertence

Fonte: The Zimbabwe Independent

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