Reflexões sobre os 88 anos da Voz do Brasil
Foi a primeira experiência de regulamentação informativa na comunicação brasileira
A Voz do Brasil, o programa de rádio criado pelo presidente Getúlio Vargas, o mais antigo do Brasil e o mais longevo de todo o Hemisfério Sul, está completando 88 anos de idade.
É a primeira experiência de regulamentação informativa na comunicação brasileira, sendo, por isso mesmo, alvo da voracidade insaciável dos magnatas da mídia que não admitem o exemplo prático, que resistiu às inúmeras investidas para impedir que, durante uma hora, os poderes públicos tenham um espaço para comunicar-se diretamente com a população, sem a interferência da tirania midiática de mercado.
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A Voz do Brasil cobre todo o território nacional, desde o mais setentrional Monte Caburaí, em Roraima, até o Chuí, na ponta sul.
Quando o presidente Vargas criou a Voz do Brasil, o mundo vivia o ascenso do nazifascismo, e o País vivia a iminência de uma confrontação com a Inglaterra, como admitiu Leon Trotsky, que chegou a afirmar que, em caso de guerra entre os dois países, estaria pessoalmente ao lado do Brasil contra o “democrático” imperialismo inglês, ironizou. De fato, o governo Vargas já havia emitido sinais importantes de sua trajetória marcada por meta audaciosa: industrialização com implantação de direitos sociais. Antes de criar a Voz do Brasil, Vargas já havia criado os ministérios da Educação e o do Trabalho, sinalizando prioridades, havia cancelado concessões do governo anterior que dividiam e entregavam o Amazonas para a Standard Oil, como também já havia estatizado empresas do notório testa de ferro Percival Farquhar, que operava minas, portos, ferrovias em nome de capitais estadunidenses.
Com a decisão do Governo Provisório de realizar, a partir de 1932, a Auditoria da Dívida Externa – a única na toda nossa história – reduzindo seu montante em 60% e descobrindo inúmeros contratos falsos, Vargas desperta ódio na tirania financeira internacional, comandada por bancos ingleses, que financiam a mal denominada “Revolução Constitucionalista”, uma contrarrevolução onde a oligarquia paulista pretende a volta à Constituição do Império, pois o presidente já havia tomado providências para a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, além de regulamentar o voto secreto (extinguindo do voto a bico de pena), o voto feminino e a Justiça Eleitoral.
Este é o contexto em que Vargas vê a necessidade de criar a Voz do Brasil, visando a integração do país e do povo pelo rádio, com ênfase na sua unidade de informação, pois as reformas em curso no Brasil já haviam despertado a ira imperial inglesa, cujos bancos eram alvo da auditoria estatal, descobrindo graves falcatruas, contratos falsos, juros abusivos e até interferência externa nos impostos nacionais. É muito significativa a surpreendente posição de Leon Trotsky sobre o cenário entre Brasil e Inglaterra.
Trilhos vendidos no ferro velho
A sociedade brasileira deveria estar informada, mobilizada e unida para a eventualidade de ser alvo de interferência de potência estrangeira, face à decisão de Vargas de seguir o curso de industrialização com implantação de direitos dos trabalhadores, coincidentemente, o mesmo objetivo perseguido hoje pelo presidente Lula, depois da desindustrialização neoliberal imposta pelos governos de Collor, Itamar, FHC, Temer e Bolsonaro, privatizando a preços negativos, desde a Vale do Rio Doce até a privatização bandida da Eletrobrás, como classificou o próprio presidente.
O período mais destrutivo de todos foi, sem dúvida, a privataria de FHC, aquele que anunciou:
VAMOS ACABAR COM A ERA VARGAS.
Chegou ao ponto de vender até trilhos da privatizada Rede Ferroviária Federal no ferro velho. O Consenso de Washington operou para comprar a reeleição de FHC, para que pudesse privatizar, desregulamentar e entregar por mais quatro anos.
Rádio Nacional, Rádio Mauá, Rádio MEC
Getúlio tomou outras medidas nas áreas de comunicação e cultura, além da criação da Voz do Brasil. Criou a Rádio MEC, até hoje referência de ótima qualidade em informação e cultura musical, especialmente, tendo recebido doação do pesquisador Roquette Pinto, fundador da primeira emissora brasileira, a Rádio Sociedade Educadora do Rio de Janeiro, com a condição de que seguisse o compromisso da radiofonia educativa.
Vargas criou a Rádio Mauá, conhecida pelo bordão “A emissora dos trabalhadores”, pois destinava-se à educação musical e cultural das grandes massas operárias, bem como à difusão dos direitos trabalhistas em fase de expansão naquele momento. A Rádio Mauá tinha entre seus colunistas Carlos Drummond de Andrade, Nestor Hollanda, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. As instâncias de direção da emissora contavam com a participação direta de organizações sindicais de trabalhadores, uma novidade, ainda hoje. Também nacionalizou a poderosa e popular Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que passou a ser a terceira rádio mais potente do mundo, emitindo em três idiomas, além do português. Elis Regina declarou que decidiu ser cantora de tanto ouvir a Rádio Nacional, impregnando-se por sua magia musical.
Ainda no campo da comunicação, o governo Vargas criou o Instituto Nacional do Cinema Educativo, destinando sua direção a Roquette Pinto e a Humberto Mauro, considerado por muitos como o pai do cinema brasileiro. Depois de legalizar a capoeira, antes criminalizada, de criar o Teatro Experimental do Negro, abrindo o Teatro Municipal à comunidade negra, antes proibida de acesso, Getúlio convoca Heitor Villa-Lobos, o maior músico das Américas, para dirigir “a educação musical da juventude brasileira” e cria o Instituto Nacional de Música, nomeando o maestro como o seu primeiro presidente.
Foi Getúlio Vargas o autor da primeira regulamentação da profissão de jornalista no Brasil, ato complementado pela doação do moderno edifício-sede, de 11 andares, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), localizado no Centro do Rio de Janeiro, bem próximo ao moderníssimo Palácio Capanema.
Última Hora: o jornalismo popular, democrático e nacional
Já quando volta ao governo “nos braços do povo”, eleito por 60% dos votos, Vargas sente a necessidade de que o curso de transformações que empreendera e que continuaria com a criação da Petrobrás, do BNDES, da Eletrobrás e tantas outras, tivesse uma expressão jornalística, dado que todos os meios informativos privados lhe eram absolutamente hostis.
É criado o jornal Última Hora, uma escola de jornalismo popular, democrático e nacionalista, com a cobertura e linguagem que atraem a simpatia dos trabalhadores e da comunidade progressista. Todos os veículos combatiam, por exemplo, a valorização do salário mínimo, que no segundo período Vargas alcançou o valor recorde de 500 dólares, até hoje não superado, embora torçamos para que o presidente Lula consiga essa façanha.
O jornal Última Hora era o único veículo a estampar manchetes como “Abusivos são os lucros, não os salários”, em defesa da espetacular valorização de 100% do salário mínimo, decretada por Vargas, e ferozmente combatida pela grande mídia, comandada por anúncios de empresas estrangeiras, que também combatiam sem trégua a criação da Petrobrás, da Eletrobrás e tantas outras iniciativas varguistas.
A Voz do Brasil seguia o curso de oferecer ao grande público amante do rádio o dia a dia das decisões do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, muitas vezes sonegadas pela mídia privada ao grande público, quando seus interesses são contrariados. A mentalidade privatista da mídia comercial simplesmente não admite que os poderes do Estado possam se comunicar diretamente com a população. Querem ter o monopólio abusivo para decidir o que é ou não notícia e o que deve ser informado ou não ao povo. Os magnatas da mídia comercial enxergam na Voz do Brasil uma ameaça permanente, pelo seu exemplo, de que a regulamentação informativa que ela representa possa um dia se expandir, tal como prevista na Constituição, em seu capítulo da Comunicação, onde se prevê a complementaridade entre mídia pública, estatal e privada.
Aliás, há estudos realizados no governo Bolsonaro, no Minicom ocupado por bolsonarista, visando a abertura em 100% do capital das empresas de comunicação, além do plano de retirar, via PEC, de qualquer menção a Lei Geral de Comunicação, que pode, inclusive, abarcar as novas tecnologias de informação, sem a necessidade de outra lei específica.
Tirania midiática, uma ameaça
A Voz do Brasil (VB) completa 88 anos tendo resistido a todas as investidas da tirania midiática para destruí-la, torná-la inaudível – quando deveria tornar-se mais ampla, inclusive com sinal televisivo. É importante que o presidente Lula tenha se referido à Voz do Brasil como um patrimônio do rádio e do povo brasileiro. Isso porque algumas das investidas, visando desregulamentar a VB, ocorreram ainda no Governo Dilma, em coordenação com a Abert.
A Voz do Brasil resiste, mas o país permanece sob a sinistra sombra da desinformação. É difícil informar o povo sobre a necessidade da industrialização ou sobre a sabotagem do Banco Central, ou sobre os tantos perigos que ainda nos rondam, como admite o próprio presidente Lula, se não alcançarmos, como sociedade, a meta que está expressa na nossa Constituição, com a expansão da mídia pública e estatal, de tal forma a impedir o super poderio concentrado em mãos da mídia que opera a entrega do petróleo, das águas, da eletricidade, com ou sem Lava Jato.
Sem alcançarmos essa soberania informativa e cultural do povo brasileiro, para que seja educado política e culturalmente, ele será sempre possível vítima de que lhe sejam apresentadas falsas heroínas, como Xuxa, como grande expressão de nossa nacionalidade. O que apenas revela a fragilidade desta democracia assentada sobre violentas desigualdades sociais e assediada permanentemente por golpistas de plantão, como menciona o próprio presidente Lula. Só o povo informado e educado saberá como tomar iniciativas unitárias que evitem outras aventuras golpistas. A Voz do Brasil faz sua parte. Mas ainda não é suficiente.
Beto Almeida é jornalista.
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