Ricardo Valle: oito momentos de uma bela vida (In memoriam)
Texto lido pelo autor na cerimônia de despedida a Ricardo Valle, em 30 de setembro
1964: Ricardo acaba de fazer 21 anos. O Brasil fervilhando de novas ideias. Literatura, cinema, teatro, CPC (o saudoso Centro Popular de Cultura). Ricardo, levando sem muito entusiasmo um curso de engenharia, participa e se empolga com todas as atividades culturais. A quartelada de 31 de março vai turvar essa saudável agitação, e colocar o país na longa noite da ditadura.
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1967/1968: Ricardo, já formado em engenharia e trabalhando na Petrobrás, participa, em longas noites, longas madrugadas, do teatro estudantil que não perde sua garra. Em particular, o TUCA-RIO, o Teatro Universitário Carioca, onde dirige algumas peças. Na Petrobrás, onde entrou sem muito entusiasmo, Ricardo conseguiu se encaixar na atividade de Pesquisa Operacional, uma utilização de modelos matemáticos que o empolgou de forma permanente.
1969: o apartamento que alugou, na Fonte da Saudade, é invadido pela polícia política. Os amigos que ali estavam são levados para a Ilha das Flores, e vão sofrer com todos os desmandos do aparelho repressivo. Dora e Ricardo seguem para o mesmo destino e, ainda que logo liberados, carregaram por anos afora a “vergonha” (vergonha com muitas aspas, vergonha para os reacionários) de ter participado da luta contra a ditadura.
1972: Ricardo e Dora estão em Bruxelas, fazendo seus mestrados. Muito estudo, uma vida difícil, um país nem sempre acolhedor. Para se divertir, um chope com fritas na Grand-Place e algumas escapadas a Paris, onde têm amigos.
Final dos anos 70, início dos 80: o país fervilha com o movimento de redemocratização. Movimento pela anistia, eleições mais livres, a luta pelas diretas. O renascer dos movimentos sindicais. A AEPET, Associação dos Engenheiros da Petrobrás, batalhou contra os contratos de risco, o que provocou a ira de uma direção da Companhia, comprometida com interesses escusos. Ricardo vai perder um cargo de chefia por ter escolhido permanecer alinhado com a AEPET – um padrão de comportamento que pautou sua vida, sempre ao lado das posições mais progressistas.
1988: assim como sempre fez, Ricardo se reúne com os amigos, no entardecer, para um chope. Fala-se de tudo, de política, de trabalho, de cinema, de teatro. E mais um chope, e talvez ainda mais um. Mas sempre o Ricardo brigando com o garçom, “não leve embora meu restinho de chope!”. O importante era estar com os amigos – um círculo grande que o Ricardo soube construir.
2002: Ricardo em família, curtindo a praia e a brisa de Búzios. A família reunida, Dora, Ricardo, Tania e Camila. O casal espera a chegada dos netos. Que vão tardar um pouco, mas virão: Alice, Zoé, Tomás e Pedro, quatro crianças para alegrar aquela casa. E os teatrinhos, e as brincadeiras, e o amor.
2015: Ricardo finalmente está aposentado. Resistiu por anos: “que é que eu vou fazer, gente? só sei trabalhar com petróleo e energia” ... Uma grande bobagem. Ricardo logo encontrou o que fazer. Uma velha paixão, o teatro. E foi o Tablado, e foi o Rei Lear, e foram tantos grupos, e foi o Re-Acordar. E vimos o Ricardo entoando, com sua voz forte e afinada, a canção irônica de Janis Joplin: “O Senhor não quer comprar pra mim / Um Mercedes Benz?”
Amigos, descrevi oito momentos da vida de Ricardo Valle. O que são oito momentos, frente a uma vida tão longa e tão produtiva?
Fico por aqui. Vai-se o Ricardo, tendo cumprido sua missão. Ficamos nós, com as lembranças de uma vida, lembranças que nunca se apagarão.
João Bastos de Mattos é engenheiro eletrônico, trabalhou na Petrobrás de 1975 a 2008, como Analista de Pesquisa Operacional. Foi da diretoria da AEPET."
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