Sem Estado não há mercado e a energia é cara
A inserção no comércio e na geopolítica energética deve ser prioridade nas próximas décadas. Qual o projeto de nação?
O ano terminou sem reforma no setor energético. Além de ser oportuna, ao se articular à tributária em andamento, ela é urgente para vencer a desigualdade no país e o aquecimento do planeta. De fato, à exceção da Petrobrás, a direção da área pouco mudou e, após uma década de completo desmonte, faltam planejamento, regulação e política. Qual o projeto de nação? Ser líder em energia renovável? Nos biocombustíveis? Estar entre os maiores produtores de petróleo? Vender hidrogênio para o mundo? A inserção no comércio e na geopolítica energética deve ser prioridade nas próximas décadas.
A privatização do setor remonta ao século passado. Iniciada por Collor, avançou com FHC, foi reformulada sem sucesso pelo PT, acabou retomada por Temer e Bolsonaro. Os resultados foram preços de países ricos, tributos de nações importadoras, custos sociais e ambientais crescentes e nenhuma transparência na partilha da renda criada. Nada disso condiz com a abundância de energia renovável e não renovável; a última, uma novidade. Sol, vento, água e terras garantem uma vantagem comparativa absoluta, diria Adam Smith. No petróleo, contudo, só em 2007 foram descobertas as jazidas do pré-sal. De importador a grande exportador, o país flerta com um novo ciclo extrativo em pleno século XXI; aliás, sem que qualquer fundo soberano seja lembrado.
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E, aqui, o importante é a riqueza gerada pela energia - única por ser extraordinária.
No Brasil, o valor adicionado pela eletricidade, gás, óleo e biocombustíveis responde por um quinto do PIB. Fora os trabalhadores, o excedente é dividido, meio a meio, entre Estado e capital. As famílias brasileiras, como consumidores, não se beneficiam de ganho significativo. No Rio de Janeiro, um quarto da tarifa elétrica residencial paga encargos e tributos. No gás natural, o carioca paga três vezes a remuneração do produtor e transportador, enquanto encargos e tributos somam um terço da conta. Nos combustíveis líquidos, um terço do preço da gasolina e um sexto do diesel são taxas e impostos, enquanto o ICMS sobre eles é a maior fonte de arrecadação estadual.
A cumulatividade, as alíquotas do ICMS, as excentricidades arrecadatórias e a complexa apuração são objetos da reforma em curso. A mudança deve ser profunda e coordenar a natureza fiscal e extrafiscal dos tributos à energia, ao clima e ao enfrentamento da pobreza. Inclui revisar a desintegração dosativos constituintes das cadeias energéticas, o ingresso de capitais aventureiros e especuladores, assim como a aposta na competição em indústrias de rede; um disparate à noção de monopólio natural.
Só nos últimos dez anos, descontada a inflação, o preço da eletricidade subiu mais de 50%. O desmembramento só elevou os custos de transação, os riscos regulatórios e o sobre-preço da ineficiência alocativa.
Mas nem esse preço reflete o valor do bem, em razão do oligopólio e de atributos que o mercado “falha” em reconhecer. A segurança energética, a dependência externa de derivados e gás, a volatilidade internacional e o custo ambiental não estão nos preços. Arcadas por todos, essas despesas são custos sociais. Enquanto isso, na esteira da abertura, a abundância em recursos naturais e preços inflados colocavam, frente a frente, na disputa pelo excedente, os maiores capitalistas do Brasil e grandes multinacionais numa terra de gigantes.
Era de se esperar, com o esvaziamento estatal, que a disputa ganhasse contornos mais imediatistas, oportunistas e obscuros. Em 2022, o número de Emendas Constitucionais foi excepcional: 14, sendo oito com impacto orçamentário. Entre elas, a EC 123 reconheceu o “estado de emergência” devido à alta dos combustíveis.
A luta pelo excedente toma formas só aqui vistas, como os créditos de carbono CBIO, criados pela Lei do Renovabio: uma transferência forçada de renda em favor dos usineiros e em detrimento do restante do país; em especial, dos consumidores no interior e das distribuidoras menores. Pior: petroleiras, refinadores e importadores estão isentos. Em novembro, a urgência da Lei das Fontes Renováveis foi outra ilustração. Além de tratar de eólica e solar, foram numerosos apensamentos ao projeto, do hidrogênio verde, sem produção comercial, ao subsídio para o carvão na geração elétrica, até a construção de térmicas a gás, onde não existem jazidas, nem gasodutos.
Jabuticabas e jabutis, como conhecidas, essas iniciativas são a pura expressão do rentismo. O excedente é mais do que suficiente para atrair todo tipo de interessado. A organização industrial que emergiu deu meios à elite para participar de sua partilha. Além disso, confrontado ao poder do monopólio, ou do oligopólio privado, não surpreende que consumidores, outros atores envolvidos e, simplesmente, os cidadãos não sejam contemplados. Ao contrário, estão submetidos ao interesse dos vendedores, sem qualquer capacidade de barganha ou qualquer contestação dos reguladores.
O Estado perdeu os meios para atuar no setor. Sem concursos, prestígio e com salários defasados, ele se reduziu ao mínimo. Autarquias e empresas do MME padecem de obsolescência prematura. Até hoje, os quadros dirigentes não foram renovados, a ideologia livre-cambista persiste e não se articula com quem importa: a Petrobrás e o BNDES. A maior empresa do país deve liderar a transição energética e o banco financiará a infraestrutura. Existe consenso quanto às fontes renováveis, à eletrificação dos processos, à renda petrolífera que deve bancar a transformação, à modicidade dos preços da energia num país entre os mais desiguais do mundo. Mas o que dizer da Margem Equatorial? Do O&G não convencionais? Da energia nuclear na geração elétrica? Dos biocombustíveis de segunda geração? E do preço do gás como matéria-prima, para reconstruir a química brasileira?
Vale lembrar que, a despeito da energia renovável, o Brasil é o quarto maior emissor per capita de gases de efeito estufa. O responsável é o uso do solo e das florestas. Mais uma vez, a visão sistêmica se faz necessária para planejar e regular a atuação privada. O fracasso de mecanismos do tipo Protocolo de Kyoto, os compromissos não vinculantes do Acordo de Paris, a ausência do financiamento
tão discutido nas conferências do clima, a velocidade e irreversibilidade do aquecimento planetário e os eventos climáticos extremos exigem soluções.
Soma-se a dinâmica cíclica do capital que, per si, justifica a intervenção estatal, a política econômica, a regulação dos ciclos e da partilha. Keynes, Schumpeter e Kalecki, três ideologias distintas, três economistas do século passado, chegaram à mesma conclusão: no capitalismo, sem Estado, não há mercado, nem crescimento. E cabe acrescentar, muito menos transição energética ordenada.
Luís Eduardo Duque Dutra é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris-Nord e professor Adjunto da Escola de Química da UFRJ.
Publicou “Capital Petróleo: a saga da indústria entre guerras, ciclos e crises”
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