“O problema do Brasil nunca foi a falta de riquezas,
mas o modo como as riquezas são organizadas.”
Ignácio Rangel (1963)
As chamadas terras raras – um conjunto de dezessete elementos químicos essenciais para a fabricação de motores elétricos, turbinas eólicas, painéis solares, ímãs permanentes, semicondutores e dispositivos militares – tornaram-se um eixo de poder geopolítico no século XXI. A disputa pelo controle de sua extração, refino e beneficiamento atravessa hoje o campo da ciência, da economia e da defesa, reorganizando alianças e redesenhos estratégicos entre nações.
Detentor de amplas reservas e de uma matriz energética limpa, o Brasil enfrenta novamente o dilema entre permanecer exportador de matérias-primas ou construir um projeto nacional de industrialização tecnológica. Isso implica articular toda a cadeia produtiva – da prospecção ao produto final – e dominar quatro tecnologias essenciais: abertura química, separação elementar, metalurgia de ligas e fabricação de ímãs e componentes. É nessas etapas, mais do que na mineração, que se concentram o conhecimento, o valor agregado e a autonomia tecnológica.
O domínio dessa cadeia requer não apenas reservas geológicas, mas também competência científica, tecnologia de refino e planejamento industrial de longo prazo. A China, que desde os anos 1990 consolidou o controle de cerca de 80% do mercado global, demonstrou como a combinação entre Estado, empresas e pesquisa pública pode transformar minerais estratégicos em instrumentos de hegemonia. Ao submeter a exportação desses elementos e das tecnologias associadas a rígidos mecanismos de licenciamento (Mancheri, 2019), Pequim transformou as terras raras em instrumento de poder geopolítico, ao regular licenças, definir cotas e condicionar o acesso de rivais às suas cadeias de valor (ver Tabela 1).
Já o Brasil, por outro lado, que possui reservas expressivas de monazita e bastnasita em Araxá (MG), Catalão (GO), Carajás (PA) e na costa nordestina, carece de uma política integrada que una geologia, química fina, metalurgia e engenharia de materiais. A ausência de coordenação entre universidades, empresas e governo reproduz a lógica de dependência, com uma falta de continuidade em políticas públicas que perpetua o padrão denunciado por Ignácio Rangel: a abundância de recursos sem organização estratégica (Rangel, 1963).
| Tabela 1 – Diversas políticas relacionadas aos elementos de terras raras (ETR) implementadas pela China desde 2015. | ||||||||
| Ano | Política / Medida | Descrição resumida | ||||||
| 2015 | Anti-Crime | Ação conjunta de oito ministérios contra mineração ilegal e contrabando de terras raras. | ||||||
| 2015 | Export Quotas | MOC cancelou a gestão das cotas de exportação de terras raras. | ||||||
| 2015 | Resource Tax | Reforma do imposto sobre recursos de terras raras, de quantidade para preço. | ||||||
| 2015 | Export Tax | MOF cancelou o imposto de exportação sobre terras raras. | ||||||
| 2015 | Industry Regulation | MIIT regulamentou empresas de utilização abrangente de terras raras no sul da China. | ||||||
| 2016 | 6 Giants Integration | As seis grandes empresas integraram atividades de mineração e óxidos. | ||||||
| 2016 | Reserve Policy | Lançada a política de reservas comerciais e estatais de produtos de terras raras. | ||||||
| 2016 | Environment Protection | Oito equipes enviadas a províncias para fiscalização ambiental na mineração e refino. | ||||||
| 2016 | Mining Quotas | Mantidas cotas de mineração e separação de terras raras nos níveis de 2015. | ||||||
| 2016 | Industry Development Plan | MIIT publicou o plano de desenvolvimento da indústria de terras raras (2016–2020). | ||||||
| 2023 | Revisão do Catálogo de Tecnologias | MOFCOM/MOST atualizaram o catálogo: tecnologias de mineração e refino de ETR exigem licença prévia. | ||||||
| 2024 | Entrada em vigor do Catálogo | Definidas 24 tecnologias proibidas e 111 restritas à exportação. | ||||||
| 2025 | Licenças para exportação de ETR e ímãs | Impostas novas licenças de exportação para elementos e ímãs de terras raras. | ||||||
| 2025 | Primeiras licenças concedidas | Emitidas permissões específicas para fabricantes chineses de ímãs permanentes. | ||||||
| 2025 | MOFCOM Anúncios n.º 61/62 | Expansão dos controles: inclui novos elementos e tecnologias de refino e magnetos. | ||||||
| Siglas: MOC = Ministry of Commerce; MOF = Ministry of Finance; MIIT = Ministry of Industry and Information Technology; MOFCOM = Ministry of Commerce; MOST = Ministry of Science and Technology. | ||||||||
Nos últimos anos, a disputa global por minerais críticos intensificou-se. A União Europeia e os Estados Unidos criaram programas para reduzir a dependência da China, enquanto esta reforçou em 2025 seus controles de exportação, estendendo as licenças obrigatórias a produtos que contenham mais de 0,1% de elementos de terras raras (Baskaran, 2025). O resultado é um novo mapa de alianças em torno da transição energética, em que o Brasil, por sua localização, diversidade geológica e posição diplomática, ocupa um lugar potencialmente decisivo.
A recente ofensiva norte-americana para superar o estrangulamento no suprimento de terras raras – intensificada no governo Trump e ampliada sob a nova política de minerais críticos – cria uma janela de oportunidades para o Brasil. De um lado, Washington busca parceiros fora do eixo asiático; de outro, o Brasil amplia sua inserção internacional nos BRICS e fortalece parcerias bilaterais com China, Índia e África do Sul, além de manter laços com países ocidentais. Essa convergência abre espaço para que o país atue como ponte diplomática e produtiva, articulando o Sul Global às economias industriais do Norte. Se associar essa diplomacia a uma estratégia de inovação e industrialização, o Brasil poderá exercer papel de liderança na transição energética mundial – um poder fundado em ciência e soberania.
