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Celso P. de Melo

Terras raras e parcerias: o Brasil entre a dependência e a cooperação estratégica

O redesenho das cadeias de suprimento de terras raras abriu espaço para novas alianças estratégicas, que o Brasil poderia explorar

Publicado em 07/11/2025
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“O problema do Brasil nunca foi a falta de riquezas,
mas o modo como as riquezas são organizadas.”
Ignácio Rangel (1963)

As chamadas terras raras – um conjunto de dezessete elementos químicos essenciais para a fabricação de motores elétricos, turbinas eólicas, painéis solares, ímãs permanentes, semicondutores e dispositivos militares – tornaram-se um eixo de poder geopolítico no século XXI. A disputa pelo controle de sua extração, refino e beneficiamento atravessa hoje o campo da ciência, da economia e da defesa, reorganizando alianças e redesenhos estratégicos entre nações.

Detentor de amplas reservas e de uma matriz energética limpa, o Brasil enfrenta novamente o dilema entre permanecer exportador de matérias-primas ou construir um projeto nacional de industrialização tecnológica. Isso implica articular toda a cadeia produtiva – da prospecção ao produto final – e dominar quatro tecnologias essenciais: abertura química, separação elementar, metalurgia de ligas e fabricação de ímãs e componentes. É nessas etapas, mais do que na mineração, que se concentram o conhecimento, o valor agregado e a autonomia tecnológica.

O domínio dessa cadeia requer não apenas reservas geológicas, mas também competência científica, tecnologia de refino e planejamento industrial de longo prazo. A China, que desde os anos 1990 consolidou o controle de cerca de 80% do mercado global, demonstrou como a combinação entre Estado, empresas e pesquisa pública pode transformar minerais estratégicos em instrumentos de hegemonia. Ao submeter a exportação desses elementos e das tecnologias associadas a rígidos mecanismos de licenciamento (Mancheri, 2019), Pequim transformou as terras raras em instrumento de poder geopolítico, ao regular licenças, definir cotas e condicionar o acesso de rivais às suas cadeias de valor (ver Tabela 1).

Já o Brasil, por outro lado, que possui reservas expressivas de monazita e bastnasita em Araxá (MG), Catalão (GO), Carajás (PA) e na costa nordestina, carece de uma política integrada que una geologia, química fina, metalurgia e engenharia de materiais. A ausência de coordenação entre universidades, empresas e governo reproduz a lógica de dependência, com uma falta de continuidade em políticas públicas que perpetua o padrão denunciado por Ignácio Rangel: a abundância de recursos sem organização estratégica (Rangel, 1963).

Tabela 1 – Diversas políticas relacionadas aos elementos de terras raras (ETR) implementadas pela China desde 2015.
Ano Política / Medida Descrição resumida
2015 Anti-Crime Ação conjunta de oito ministérios contra mineração ilegal e contrabando de terras raras.
2015 Export Quotas MOC cancelou a gestão das cotas de exportação de terras raras.
2015 Resource Tax Reforma do imposto sobre recursos de terras raras, de quantidade para preço.
2015 Export Tax MOF cancelou o imposto de exportação sobre terras raras.
2015 Industry Regulation MIIT regulamentou empresas de utilização abrangente de terras raras no sul da China.
2016 6 Giants Integration As seis grandes empresas integraram atividades de mineração e óxidos.
2016 Reserve Policy Lançada a política de reservas comerciais e estatais de produtos de terras raras.
2016 Environment Protection Oito equipes enviadas a províncias para fiscalização ambiental na mineração e refino.
2016 Mining Quotas Mantidas cotas de mineração e separação de terras raras nos níveis de 2015.
2016 Industry Development Plan MIIT publicou o plano de desenvolvimento da indústria de terras raras (2016–2020).
2023 Revisão do Catálogo de Tecnologias MOFCOM/MOST atualizaram o catálogo: tecnologias de mineração e refino de ETR exigem licença prévia.
2024 Entrada em vigor do Catálogo Definidas 24 tecnologias proibidas e 111 restritas à exportação.
2025 Licenças para exportação de ETR e ímãs Impostas novas licenças de exportação para elementos e ímãs de terras raras.
2025 Primeiras licenças concedidas Emitidas permissões específicas para fabricantes chineses de ímãs permanentes.
2025 MOFCOM Anúncios n.º 61/62 Expansão dos controles: inclui novos elementos e tecnologias de refino e magnetos.
Siglas: MOC = Ministry of Commerce; MOF = Ministry of Finance; MIIT = Ministry of Industry and Information Technology; MOFCOM = Ministry of Commerce; MOST = Ministry of Science and Technology.

 

Nos últimos anos, a disputa global por minerais críticos intensificou-se. A União Europeia e os Estados Unidos criaram programas para reduzir a dependência da China, enquanto esta reforçou em 2025 seus controles de exportação, estendendo as licenças obrigatórias a produtos que contenham mais de 0,1% de elementos de terras raras (Baskaran, 2025). O resultado é um novo mapa de alianças em torno da transição energética, em que o Brasil, por sua localização, diversidade geológica e posição diplomática, ocupa um lugar potencialmente decisivo.

A recente ofensiva norte-americana para superar o estrangulamento no suprimento de terras raras – intensificada no governo Trump e ampliada sob a nova política de minerais críticos – cria uma janela de oportunidades para o Brasil. De um lado, Washington busca parceiros fora do eixo asiático; de outro, o Brasil amplia sua inserção internacional nos BRICS e fortalece parcerias bilaterais com China, Índia e África do Sul, além de manter laços com países ocidentais. Essa convergência abre espaço para que o país atue como ponte diplomática e produtiva, articulando o Sul Global às economias industriais do Norte. Se associar essa diplomacia a uma estratégia de inovação e industrialização, o Brasil poderá exercer papel de liderança na transição energética mundial – um poder fundado em ciência e soberania.

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Nesse cenário, o Brasil dispõe de uma vantagem rara: abundância mineral e matriz energética limpa. Contudo, sem domínio tecnológico interno, essa vantagem converte-se em vulnerabilidade. O desafio não é apenas extrair, mas refinar e transformar, de modo a capturar o valor agregado e construir autonomia industrial.

O redesenho das cadeias de suprimento de terras raras abriu espaço para novas alianças estratégicas, que o Brasil poderia explorar de maneira soberana e seletiva. O objetivo não seria reproduzir modelos de dependência, mas desenvolver parcerias simétricas, baseadas em coprodução tecnológica, intercâmbio científico e controle nacional das plantas industriais instaladas em território brasileiro. Qualquer acordo deve prever coparticipação científica efetiva e domínio compartilhado das etapas críticas de P&D, garantindo a presença ativa de pesquisadores e engenheiros brasileiros em todas as fases do processo.

A cooperação com a China oferece vantagens em capital e experiência industrial, mas também impõe riscos: o rígido controle chinês sobre tecnologias sensíveis – como separação líquido-líquido e magnetização (a etapa que transforma ligas em superímãs) – limita a transferência de know-how (Mancheri, 2015). Por isso, é essencial que eventuais parcerias sejam estruturadas com mecanismos claros de compartilhamento tecnológico e formação nacional de competências.

Ainda assim, há espaço para cooperação seletiva. A complementaridade geológica entre o Brasil e a China abre oportunidades estratégicas para cooperação e diferenciação tecnológica. Enquanto a China domina depósitos de argilas iônicas, ricos em terras raras leves (La, Ce, Nd, Pr), o Brasil concentra carbonatitos e areias monazíticas com proporções mais elevadas de elementos pesados (Gd, Dy, Tb, Y), de maior valor tecnológico (CGEE, 2013; MME, 2023; USGS, 2024). Essa diferença cria uma vantagem potencial: ao investir em refino seletivo, metalurgia de ligas e manufatura de componentes magnéticos e ópticos, o país pode ocupar nichos de alta complexidade industrial – como motores elétricos, turbinas e dispositivos ópticos – e deixar de ser mero exportador de concentrados para tornar-se fornecedor soberano de materiais críticos e tecnologia aplicada.

Parcerias para refino conjunto ou reciclagem poderiam ser desenvolvidas sob supervisão ambiental e regulatória brasileira, em zonas de processamento com controle nacional majoritário. Em linha com referência internacionais, uma planta piloto de separação de terras raras de 20–30 mil t/ano requer US$ 400–600 milhões em despesas de capital – valor coerente com avaliações econômicas preliminares em projetos comparáveis – e pode ser estruturada com financiamentos combinando instrumentos nacionais (BNDES/Finep/FNDCT) e multilaterais (como do Novo Banco de Desenvolvimento – NDB).

Com os Estados Unidos, há oportunidade de cooperação com soberania condicionada. O Critical Minerals Framework recentemente firmado com a Austrália (Australian Government, 2025), e os novos acordos de 2025 com Japão (White House, 2025) e Malásia (New Straits Times, 2025), mostram que Washington busca criar cadeias produtivas alternativas à hegemonia chinesa. O Brasil poderia inserir-se nesse movimento com cláusulas que garantam transferência tecnológica plena, copropriedade intelectual e controle acionário nacional, de modo a evitar nova dependência. Uma planta de ímãs de NdFeB, por exemplo, com capacidade de 10 mil toneladas anuais, exigiria cerca de US$ 700 milhões – investimento possível com apoio da U.S. International Development Finance Corporation (DFC), BNDES e FINEP.

A Austrália (Mcdonagh, 2025; Tewari, 2025) e a Malásia oferecem exemplos de políticas bem-sucedidas. A primeira consolidou a mineradora Iluka Resources como referência mundial com o projeto Eneabba, apoiado por cerca de US$ 1 bilhão do governo australiano, transformando rejeitos de monazita em fonte estratégica de terras raras [2]. A Lynas Rare Earths Limited, empresa australiana de capital aberto, opera em Kuantan (Malásia) a única refinaria completa de terras raras fora da China, acumulando experiência relevante em gestão de rejeitos radioativos (Mining.com, 2025; MarketScreener, 2025). O know-how em extração e separação permanece sob domínio exclusivo da empresa, sem participação significativa do governo malaio (Lynas Rare Earths Limited, 2025). Essa concentração tecnológica evidencia o desequilíbrio estrutural das parcerias em minerais estratégicos, nas quais a industrialização se mantém nos países detentores da tecnologia, enquanto os anfitriões assumem os riscos ambientais e logísticos (Asian News Network, 2025).

Mesmo assim, a cooperação técnica com esses países – voltada à certificação ambiental e treinamento técnico – poderia acelerar o domínio brasileiro sobre o refino químico e reduzir custos de implantação.

No plano interno, a criação de uma Empresa Brasileira de Terras Raras (EBTR), nos moldes da CBMM, de Araxá, representaria um passo decisivo. A CBMM, empresa privada de capital nacional, controlada pela família Moreira Salles, desenvolveu tecnologia própria para todas as etapas do ciclo do nióbio – da mineração ao refino e à fabricação de ligas metálicas – e hoje responde por mais de 80% do mercado mundial desse metal (Abraham, 2015). Seu sucesso resultou da combinação entre investimento privado em P&D e apoio estatal estratégico nas décadas de 1970 e 1980, quando o governo garantiu infraestrutura e regulação favorável por meio de instituições como CETEM, IPT e UFMG. O caso demonstra que gestão estável, reinvestimento tecnológico e coordenação público-privada podem transformar um setor mineral em vetor de alta tecnologia e soberania (CBMM, 2024).

Para coordenar o setor, uma possibilidade da criação de uma Agência Nacional de Minerais Estratégicos (ANME), com autonomia técnica e representação interministerial. O CETEM, o CNEN, o SENAI Terras Raras e universidades federais poderiam formar seu núcleo técnico-científico, enquanto um Conselho de Soberania Mineral garantiria transparência e controle público sobre decisões estratégicas.

Apesar de sua reconhecida riqueza mineral, o Brasil ainda carece de um levantamento detalhado de seu potencial: apenas ~27% do território está mapeado em 1:100.000, segundo o Plano Nacional de Mineração 2050 (MME, 2023). Na aerogeofísica, o Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM) registra cobertura de ~51% do território e 86–93% do embasamento cristalino (dependendo do recorte metodológico e do ano-base) (CPRM, 2014), e retomou em 2024 novos levantamentos para expandir essa base (SGB, 2024). Ampliar o Programa Geologia do Brasil (GeoBR/PlanGeo) e convergir ações regionais de ETR no Sul – as chamadas iniciativas “REE-Sul”, em torno de carbonatitos como os de Caçapava do Sul – é essencial para dimensionar reservas e guiar políticas de longo prazo com salvaguardas ambientais (UFSM, 2024).

A implantação de uma cadeia nacional de terras raras exigiria US$ 2 a 3 bilhões em dez anos, divididos em três fases: plantas piloto (anos 1–3), industrialização plena (anos 4–7) e produção final (anos 8–10) (IEA, 2023; MME, 2023). O financiamento poderia vir de uma combinação de diferentes fontes, como BNDES, Finep, CAF e NDB, com participação de empresas como Vale, CBMM, WEG e Embraer. Auditorias independentes e metas de nacionalização progressiva seriam indispensáveis para garantir transparência e soberania tecnológica.

Por fim, o Brasil poderia liderar um Consórcio Sul-Americano de Minerais Estratégicos, integrando-se a Argentina, Bolívia e Chile para criar uma frente comum em torno do lítio, cobre e terras raras. Essa integração regional reforçaria o poder de negociação e estimularia o desenvolvimento científico conjunto, evitando que o continente continue a exportar minerais brutos e importar dependência tecnológica.

A soberania sobre as terras raras depende da capacidade de o Brasil integrar ciência, indústria e diplomacia em um mesmo projeto de Estado. O exemplo da CBMM mostra que é possível transformar recursos naturais em poder tecnológico quando o conhecimento e o valor agregado permanecem sob controle nacional. Entre a dependência e a cooperação estratégica, o país deve optar pela autonomia produtiva – e fazer de suas riquezas o alicerce de um novo ciclo de desenvolvimento. Há um abismo entre mineração e inovação que só o conhecimento pode preencher; se souber atravessá-lo, o Brasil deixará de ser apenas dono das terras raras e se tornará senhor do próprio destino tecnológico.


[1]   Celso Pinto de Melo – Professor Titular Aposentado da UFPE – Pesquisador 1A do CNPq – Membro da Academia Brasileira de Ciências.

[2] De acordo com a Reuters (2022) e a Mining.com (2024), o governo australiano destinou entre US$ 750 milhões e US$ 1 bilhão à implantação e expansão da refinaria de Eneabba, operada pela Iluka Resources.

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