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Hugo Dionísio
Hugo Dionísio
Jurista, Técnico Superior em Segurança e Saúde do Trabalho (SST), Formador. Gabinete de Estudos da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN).

Traidores vivos e heróis mortos!

Há bastante tempo que os países do sul global perceberam quem manda de fato na UE

Publicado em 09/03/2023
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Depois das revelações de Seymour Hesh a propósito da autoria da operação de destruição do Nord Stream, muita informação tem corrido debaixo da ponte. Não que a comunicação social corporativa subserviente a Washington tenha tido a veleidade de dar a atenção que o assunto poderia suscitar, nada disso. A prova, contudo, de que Hersh está no caminho certo e sabe do que fala, é-nos oferecida, hoje, de bandeja, pelo New York Times, aquele que podemos classificar como sendo o verdadeiro órgão de comunicação central ao serviço do Comitê Nacional do Partido Democrata (NDC).

As revelações de Hersh, apontando com minúcia toda a operação, referindo as discussões havidas na cúpula do poder estado-unidense, não deixaram de gerar mau ambiente entre os "parceiros" e "aliados", nomeadamente, entre a Alemanha – vítima do ato de guerra e terrorismo industrial – e os EUA. Não me refiro, claro, a Sholz ou Berbock. O primeiro é marionete e a segunda é missionária evangelizadora da lavagem verde americana. Refiro-me a gente das forças armadas ou da indústria, muitos com a espinha dorsal suficiente para fazer sentir o seu desconforto junto dos enviados da Casa Branca.

Numa operação que faz transparecer – para quem o quiser ver – a forma como funciona hoje o jornalismo, que passou de "investigativo" a "justificativo", o NYT publica uma peça que visa sacudir a água do capote americano, apontando a autoria a um grupo "pró-ucraniano" de identidade convenientemente não divulgada. O próprio artigo é o exemplo concreto da inocuidade jornalística face ao poder instituído: milhares de caracteres justificativos de uma versão que não aponta um nome, um método, uma fonte de financiamento ou de logística. Nada vezes nada. São duas páginas de discurso redundante, inócuo, especulativo e genérico. Um exemplo concreto do "jornalismo de qualidade" quando se trata de criticar, denunciar, apontar ou responsabilizar o poder vigente. Pegar nisto ou num qualquer jornal do fascismo, tem o mesmo resultado: desinformação absoluta.

Os "jornalistas" do NYT dizem que uns tais de U.S. Officials, que nunca diz quem são, baseando-se num novo relatório da Inteligência, que também não dizem qual é, sugerem que um grupo "pro-ucraniano", que também não identificam e o qual ficamos sem saber se são ucranianos, indonésios ou guatemaltecos, terá sabotado, sem nunca dizer como, o pipeline. A explicação mais óbvia o NYT não a dá, e que reside no fato de este grupo ser da CIA e, por aí, se faz a ligação a todo o processo desvendado por Hersh.

Vejam bem: não basta fazerem-nos acreditar que os russos seriam capazes de bombardear uma central nuclear que têm na sua posse; que os russos sabotaram um pipeline que era seu e lhes rendia muito dinheiro; ainda nos querem fazer acreditar que um qualquer grupo "pró-ucraniano" teve o poder, a mestria, os fundos, a ciência e a capacidade de instalar toneladas de dinamite no fundo do mar, usando sofisticadíssimos meios e tudo isto se passando numa região extremamente vigiada pela OTAN e pela própria Rússia! É obra! Isto representa todo um novo nível de efabulação.

E porquê, um novo nível? Porque, até aqui, arranjavam versões inverosímeis, mas fornecendo culpados, bodes expiatórios e detalhes enviesados, como sucedeu na aldrabice hollywoodesca de Bucha, nas valas comuns de Kupyansk ou no voo MH17. Neste momento, sentem-se tão à vontade, que até fornecem versões sem culpados, sem detalhes e sem qualquer substância que possa apontar numa qualquer direcção. Ler esta comunicação social, é como levarmos porrada sem conseguirmos, sequer, identificar de onde veio. A isto chamam transparência, credibilidade e fact-checking. Claro, se não derem factos, acertam sempre!

Mas o resultado e função imediatos deste tipo de jornalismo "justificativo", bem veiculado através de infindáveis "bots" nas redes sociais, também ao dispor dos mesmos poderes, está bem materializado na ilusão com que o comum dos mortais olha para a realidade – por mais contraditória – que o circunda.

Uma blogger ucraniana, no The Guardian, questionou a União Europeia: A União Europeia quer os ucranianos como parceiros vivos ou heróis mortos?

Sendo difícil acreditar, ao dia de hoje, que ainda haja quem acredite que esta guerra não foi cuidadosamente planeada, preparada e provocada, poderíamos apontar, entre muitos outros documentos, a um vídeo de 2016, os senadores Lindsey Graham e John MCcain discursaram perante Petro Poroshenko e militares ucranianos – o primeiro ministro oligarca saído do golpe fascista de 2014 –, prometendo uma vitória "rápida" sobre a Federação Russa. Ora, se a Rússia, à data, não estava em guerra com a Ucrânia ... 2+2...

Assim, a resposta correta, a dar à "articulista" do Guardian, é que, a UE, em especial, não quer saber se os "heróis" estarão mortos ou vivos. Primeiro não compete à UE sabê-lo. Como disse certa vez Joe Biden a Scott Ritter, no Senado, por causa das armas de destruição em massa que este último nunca encontrou e, por isso mesmo, referir que a guerra seria um erro: "It's above your pay grade" (está acima do teu nível de decisão).

Se à UE não compete saber ou definir se os ucranianos terão de estar mortos ou vivos para que a parceria avance, já para os EUA, aqueles que decidem realmente estas coisas, arrisco-me a dizer que preferem os "heróis mortos". Um "herói morto" não chateia, não se revolta, não critica e pode ser usado como instrumento de propaganda. Todos os objectivos determinados para a Ucrânia contam com uma proporcional parcela de vivos e mortos, em quantidades calculadas para a sua prossecução.

Já a pergunta, em si, demonstra toda a ilusão vendida. Quanto mais informação surge que prova a minuciosa preparação do conflito e a "mão invisível" dos EUA por detrás do mesmo, mais sectários são os posicionamentos de quem, à falta de argumentos e com receio de ver cair o edifício de mentiras sobre o qual construiu o seu posicionamento, opta por uma abordagem "futebolística": eu estou deste lado, tu estás daquele, e não vale a pena conversar.

Mas a ilusão sobre as "boas intenções" do diabo ocidental, não são exclusivas do malogrado país construído a régua e esquadro. De acordo com informação veiculada recentemente e desclassificada ao abrigo do "Freedoom of Information Act", as inúmeras mensagens (cables) trocadas entre as embaixadas dos EUA e da Rússia, bem como entre Ieltsin e o staff de Bush Sr., demonstram que os governantes russos acreditavam piamente nas "boas" intenções, ao ponto de proporem acabar – como aconteceu de facto – com todos os mísseis balísticos que tivessem MIRV (um míssil poder atingir vários alvos), e propondo um tratado que apenas incidia sobre os silos terrestres, deixando de foram os dos submarinos, âmbito no qual os EUA tinham ampla vantagem. Ieltsin acreditava mesmo – ou pelo menos dava-o a entender – que os EUA iam investir na economia russa e ajudar o país a recuperar-se.

Mas se a ilusão – não confundir com sonho – constitui uma das mais importantes armas das elites americanas, para a qual contam com poderosíssimos órgãos de comunicação e propagação de mensagens, capazes de criar realidades tão alternativas como a que os apresenta como defensores do mundo livre e da democracia, é também justo dizer que, se os russos caíram na esparrela, no final do século passado, se os ucranianos caem nela, especialmente, a partir do início deste século... Já os europeus ocidentais, devem pertencer a uma raça especial....

Afinal, colonizados de fato desde o Plano Marshal, o qual, a troco de dinheiro para a reconstrução, impôs uma série de condicionalidades que visaram – e conseguiram – fomentar uma lógica governativa liberal pró-americana; alvo de instalação de uma série de bases militares e de políticas diversas de condicionamento económico, industrial e militar, aplicadas sob a capa do "livre comércio" e "livre concorrência"... Ainda hoje, a esmagadora maioria dos povos europeus está convencida das "boas intenções" do diabo americano. Mesmo que, tais "boas intenções" se repercutam numa Europa cada vez mais insignificante no mundo, mergulhada numa profunda crise económica e cujos estados membros foram desprovidos de qualquer resquício de soberania.

Se uma parte importante do povo, na sua ingenuidade, impreparação e vítima da ferocíssima máquina manipuladora, insiste em não se libertar da caverna e olhar para o mundo com os seus próprios olhos, o mesmo não se pode dizer de quem está de fora. Já há bastante tempo que os países do sul global perceberam quem manda de fato na UE. Vejam-se as imagens da Berbock – ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha – a chegar à India e a ser recebida apenas por três pessoas, nenhuma do governo indiano. Teve direito ao oficial militar de serviço no aeroporto, ao assistente de bordo e ao embaixador alemão em Nova Delhi. A Índia já não está para fazer fretes e participar em fantochadas...

Aliás, esta postura "missionária", típica do funcionário corporate, sedento de agradar aos administradores de uma qualquer empresa, é bem visível na postura da Ursula. Dorme no gabinete e trabalha de dia e de noite. Nada decide, só executa... Mas há que levar as ordens a sério! Afinal, a sua vida toda dependeu de fazer o que o chefe manda.

Assim, parece-me que, no final, não será só a Ucrânia que fornecerá os seus "heróis mortos". A própria Europa, à beira da hecatombe económica de vítima de um cuidadosamente planeado suicídio, arrastada para uma guerra em nome de uma ilusão criada junto dos povos, que apresenta União Europeia e EUA como parceiros ao mesmo nível, também acabará por ter a sua quota de "heróis mortos" para fazer parceria com a Ucrânia.

Com a inflação a subir – na Inglaterra os alimentos subiram 20% –, o número de insolvências a subir em flecha em todos os sectores – que "satisfação" ver o Eurostat apresentar o gráfico adornado com uma bandeira ucraniana... É razão para perguntarmos quanto tempo ainda durará a ilusão! Agora adicionem ao drama energético, um drama de carência dos mais básicos produtos do dia a dia, em preparação avançada pelos EUA, a pretexto da necessidade de sancionar a China, por esta fazer, supostamente, o que os EUA fazem quando lhes apetece: mandar armas para onde lhes interessa!

Dizendo o embaixador americano para a China que "nós é que somos os líderes do Indo-pacífico", numa espécie de "a minha **** é maior do que a tua", não deixa de ser curioso que a China "autocrática" vai crescer já 5,5% em 2023 e a actividade industrial atingiu máximos desde 2012. É razão para perguntar, que raio de tirania esta que apresenta níveis de dinamismo económico de fazer corar de vergonha um ocidente que anda, há 100 anos, a propagar a teoria – e para azar nosso, a prática – de que só existe dinamismo económico com a sua versão de "democracia".

Algo não bate certo aqui... E ter 5000 anos de história vale de muito nestas coisas das ilusões. Já por aqui, na era da infantilidade política, como no caso russo dos anos 90, no ucraniano de agora, também, na Europa, não serão os traidores como Ieltsin, Zelinsky ou Ursula que figurarão entre os "heróis mortos" ... Adivinhem quem serão? Os nossos filhos!

"Louve-se" a comunicação social do fact-checking que está aqui para nos iludir do contrário e de que os culpados são os outros que se defendem, como nós o deveríamos fazer!

Hugo Dionísio - Jurista, Telegram: https://t.me/canalfactual

O original encontra-se em canalfactual.wordpress.com/ 

Este artigo encontra-se em resistir.info

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