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Quentin Ravelli

Uma mina de ouro para os laboratórios farmacêuticos

As crises econômicas são tão seletivas quanto as epidemias: em meados de março, enquanto as Bolsas afundavam, as ações do la

Publicado em 23/09/2020
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As crises econômicas são tão seletivas quanto as epidemias: em meados de março, enquanto as Bolsas afundavam, as ações do laboratório farmacêutico americano Gilead subiram 20%, após o anúncio dos testes clínicos do Remdesevir contra a Covid-19. As do Inovio Pharmaceuticals saltaram 200% logo após o anúncio de uma vacina experimental – a INO-4800. As da Alpha Pro Tech, fabricante de máscaras de proteção, subiram 232%. As ações da Co-Diagnostics subiram 1 370% graças a seu kit de diagnóstico molecular para a síndrome respiratória aguda grave causada pelo coronavírus 2 (SARS-CoV-2), responsável pela pandemia de Covid-19.

Como explicar que no meio da tormenta seja possível enriquecer, mesmo que faltem máscaras de proteção, inclusive para os médicos e paramédicos e que os testes de triagem permaneçam inacessíveis em muitos casos depois de três meses da epidemia? Por que esses testes estão no centro do debate mundial, da Coreia do Sul aos Estados Unidos, passando pela Alemanha, Austrália e pela Lombardia, mas continuem sendo cuidadosamente evitados na França, onde o diretor-geral de saúde, Jérôme Salomon, não admite seu uso em massa até "a saída do confinamento"?

De modo contrário aos anúncios do governo, longe de ser uma guerra contra um vírus, cuja única arma seria a quarentena, a batalha preocupa nossa organização econômica e social. Trata-se de uma crise de nossa política de saúde, de pesquisa e produção, na qual a indústria farmacêutica desempenha um papel crucial e que é, entretanto, cuidadosamente mantida fora do debate público.

Depois de algumas semanas, a pandemia do coronavírus tem revelado as falhas de um modelo social baseado na ideia da rentabilidade econômica da saúde, justificando os cortes orçamentários cada vez mais constrangedores para o pessoal e para os pacientes. Na França, com a saturação das unidades de terapia intensiva e dos serviços de urgência, há meses já há uma luta aberta no coletivo Inter-Urgências para a obtenção de mais recursos, tendo os cuidadores de fazer escolhas dramáticas entre a aplicação de cuidados vitais, cuja lista se reduz cada vez mais, e aqueles que serão sacrificados, sempre mais numerosos.

Em alguns casos, como na Alsácia, tudo se resume em definir quem será mantido vivo e quem irá morrer. Todavia, como explicar que, em 22 de março último, já se contavam 271 mortos no Grande-Leste (da França), enquanto que a dois passos dali, do outro lado do Reno, no Baden-Wurtenberg (na Alemanha), onde a população é duas vezes maior e a epidemia foi mais precoce, só havia 23 mortos, ou seja, mais de 10 vezes menos?

Uma das respostas a esta pergunta está na posição política ocupada pela indústria farmacêutica em nossos sistemas de saúde. É ela quem produz as ferramentas para detectar o vírus, para nos vacinar contra ele ou para fazer o tratamento. A França tem uma evidente falta de kits de testagem – como a tecnologia de reação com a polimerase em cadeia (PCR) que identifica o vírus através da amplificação de seu DNA – embora esses sejam fáceis de fabricar. Diversas empresas se lançaram nesse imenso mercado que surgiu como um vulcão: Abbott, Qiagen, Quest Diagnostics, Thermo Fischer, Roche, BioMérieux ... A técnica é de baixo custo – da ordem de 12 euros por um kit vendido por 112 euros na França, dos quais 54 euros ficam por conta dos pacientes. Porém, ela pode ser parte de acordos tarifários proibitivos, em um contexto de monopolização do mercado entre algumas grandes empresas, como o Abbott ou o Roche, que vendem aos laboratórios regionais as plataformas tecnológicas a preços extorsivos (1).

Orientar as pesquisas a partir de uma visão geral da ciência, da medicina e da ecologia

Mesmo com essas limitações econômicas, como explicar que a França tenha realizado, até 20 de março passado, duas vezes menos testes por milhão de habitantes que o Irã ou a Áustria? Que com menos de 40 000 testes realizados, ela esteja bem atrás dos 316 644 da Coreia do Sul, dos 167 000 da Alemanha, dos 143 619 da Rússia ou dos 113 615 da Austrália(2) ? Na Coreia do Sul, pode-se testar pessoas sem que elas precisem sair do carro ou em cabines de vidro, onde os médicos colhem as amostras com luvas de borracha. A testagem sistemática, seguida de um acompanhamento de cada pessoa contaminada, permite quebrar as cadeias de transmissão ao isolar aqueles que estão doentes e não os demais. Em consequência, as medidas de confinamento podem ser bem menos restritivas, a taxa de mortalidade dos pacientes positivos é bem mais baixa e, sobretudo, o número de mortos é bem menos elevado que na França, malgrado a proximidade do foco infeccioso chinês. Se a testagem é um dos pontos fracos da luta francesa contra a epidemia, há ainda um outro ponto fraco nela: a dificuldade em obter os reagentes, os compostos químicos essenciais à testagem e que apontam a presença do vírus. Sobre esses muito pouco se sabe: de onde vem, nem para que servem, nem quanto custam realmente. Por que não revelar o segredo industrial, todos os segredos comerciais e todas as patentes sobre a composição desses reagentes tão preciosos para a saúde de milhões de seres humanos e dar a conhecer ao público a origem de suas matérias-primas, assim como seu modo de fabricação?

Além da testagem, a segunda arma essencial nesta guerra é a droga que poderia curar a infecção Covid-19. De acordo com um anúncio do governo chinês, o favipiravir – o princípio ativo do antigripal Avigan, produzido pela empresa japonesa Fujifilm – teria dado "muito bons resultados" contra o vírus, ao reduzir a duração da infecção. Um outro candidato, o Kevzara, um anticorpo monoclonal inibidor de receptores da interleukina 6, indicado contra a poliartrite reumatóide, analisado em parceria pelos laboratórios Sanofi e Regeneron, poderia reduzir a reação inflamatória pulmonar pelo vírus nos pacientes severamente afetados pela Covid-19. Essas reconversões de moléculas feitas com urgência são testemunhas da ausência de planejamento dos problemas de saúde e de uma febre oportunista que tem substituído uma política industrial.

Poderíamos dizer que é, por definição, impossível predizer uma pandemia e que a pesquisa está condenada a ser pega de surpresa. Este argumento não se sustenta: na falta de uma predição, podemos prever, orientar as pesquisas a partir de uma visão geral da ciência, da medicina e da ecologia. Essas pesquisas não podem ser executadas no curto prazo, tendo como imperativo a busca do lucro. Elas devem ser conduzidas no longo prazo em função das necessidades reais da população. No entanto, essas necessidades não correspondem estruturalmente a mercados solventes: 85% dos medicamentos são consumidos nos países que reúnem 17% da população mundial, e há mais pesquisa de medicamentos para a depressão e a obesidade do que para as doenças infecciosas, que são uma das principais causas de morte no mundo.

Quando surge a crise, a mudança leva a situações inteiramente anormais, donde então, surge a necessidade de uma terceira arma – as vacinas – já hoje sendo testadas em grande número. Donald Trump está propondo, por exemplo, comprar da empresa alemã CureVac todo o seu estoque de vacinas para utilizar "somente nos Estados Unidos", além de oferecer uma subvenção imediata de 80 milhões de euros à União Europeia, fazendo com que ocorresse uma recusa categórica da chanceler alemã Angela Merkel. Esta precipitação diplomática, acompanhada de segundas intenções eleitorais, reflete uma realidade industrial: como a pesquisa é feita essencialmente por motivações financeiras e para a obtenção de mais patentes, as grandes empresas farmacêuticas - o "Big Pharma" – reduzem seus investimentos nos domínios médicos essenciais, dos quais fazem parte as infecções, sejam elas bacterianas ou virais. Todavia, ainda nesse campo, o ritmo real das pesquisas não está adaptado: a empresa Moderna Therapeutics, tida como a primeira a desenvolver uma vacina, não poderá lançá-la no mercado antes de alguns meses – o que não impediu o andamento de suas ações para dar um salto após o anúncio de seu projeto.

Saber que está realmente infectado evitaria a incerteza, a ida às emergências e as medidas excessivas. O isolamento e o confinamento seriam aplicados com a progressão real do vírus e não segundo cálculos de riscos hipotéticos, induzindo a ações governamentais desmedidas. A vacinação em massa seria também uma medida simples de medicina democrática. Mas como isto pressupõe a prevenção e mesmo um controle das indústrias pelo Estado, está difícil pô-la em prática em um sistema capitalista baseado no lucro. Podemos até falar de discriminação de classes: se, em meados de março deste ano, dezoito deputados e dois ministros foram vacinados e gozam de boa saúde (exceto um deles), enquanto reservamos a vacinação para os casos mais graves para o restante da população, é claro que há desigualdades sociais na saúde. A vacinação tornou-se um privilégio de classe.

Os impasses da pesquisa privada não são compensados pela pesquisa pública. Os cortes orçamentários agem sempre como guilhotinas sobre projetos pacientemente desenvolvidos. Em 4 de março último, o pesquisador Bruno Canard, especialista em replicação de "vírus de RNA" – um vírus cujo material genético é formado por ácido ribonucleico – como o coronavírus, explicou em uma palestra: "desde 2006, o interesse dos políticos pelo SRAS-CoV tinha desaparecido; ignorávamos se ele iria reaparecer. A Europa está desligada desses grandes projetos de antecipação em nome da satisfação do contribuinte. Assim, quando um vírus emerge, solicitamos aos pesquisadores que se mobilizem com urgência e encontrem uma solução para o dia seguinte. Junto com parceiros belgas e holandeses tínhamos enviado, há 5 anos, duas cartas de intenção à Comissão Europeia para dizer-lhe que era necessária uma antecipação" (3). Esse pesquisador pode reivindicar que "a ciência fundamental é nossa melhor segurança contra as epidemias"(4), e ele não pode deixar de constatar que alguns ramos da virologia e da bacteriologia são os primos pobres da pesquisa – sejam eles a pesquisa farmacêutica aplicada ou a microbiologia fundamental. O "apelo rápido" da Agência Nacional de Pesquisas, de 3 milhões de euros, pode parecer insignificante depois de anos de desinvestimento e de outras epidemias similares. Após o coronavírus responsável pela síndrome respiratória no Oriente Médio (MERS), em 2015, e o SARS de 2003, surgido na China (8096 pessoas infectadas em cerca de trinta países, causando 774 mortes), a Coreia do Sul finalmente reorientou suas políticas de saúde pública e lançou as bases de sua ação atual. Para que os governos tenham esses fatos na memória, é necessário que os traumatismos sejam fortes e repetitivos. E, mesmo nesses casos, muitas vezes é a amnésia que vence.

É toda esta política de fundo que o Estado procura fazer que seja esquecida, sublinhando a importância da saúde pública depois de tê-la sabotado de forma cuidadosa durante anos. Emmanuel Macron (presidente francês), o campeão de todas as categorias de privatização pôde dizer sem ficar ruborizado, perante 22 milhões de telespectadores, na quinta-feira, 12 de março: "o que esta pandemia tem revelado é que há bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado". A porta-voz do governo, Sibeth Ndyaie, por seu turno, disse desejar que o Estado financie os ensaios clínicos, realizados há décadas por laboratórios privados. O Estado francês parece ter resolvido bem tarde escutar o presidente da Lombardia, epicentro da epidemia na Europa: "ou escondemos os problemas embaixo do tapete ou removemos o tapete e lavamos o chão". A próxima etapa será, sem dúvida, uma mudança de direção de 180 graus: a apologia ao diagnóstico de Jerôme Salomon, depois de ter ignorado todas advertências, inclusive as da OMS – "testar, testar, testar", dizia Tedros Adhanom Ghreyesus. Tantas maneiras de reconhecer, de costas para a parede, quanto em busca de drogas e a saúde em geral, são questões que não deveriam ficar nas mãos do setor privado. Eles se esquecerão dessas belas palavras assim que se encerrar o confinamento. As multidões outras vezes reunidas, a amnésia política preparará as próximas crises da saúde pública.

Quentin Ravelli - Encarregado da pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS). Autor de "A estratégia da bactéria. Uma pesquisa no coração da indústria farmacêutica", Seuil, Paris, 2015. Versão longa do artigo na edição impressa.

(1) Comunicado de imprensa, Observatório da Transparência das Políticas dos Medicamentos, 18 de março de 2020.

(2) Esteban Ortiz-Espina e Joe Hasell, "Quantos testes de Covid-19 estão sendo realizados no mundo?", Our World in Data, 20 de março de 2020.

(3) Bruno Canard, "Coronavírus: a ciência não se move com urgência!", Universidade Aberta, 4 de março de 2020.

(4) Bruno Canard, "A ciência fundamental é nossa melhor segurança contra as epidemias", CNRS Le Journal, 13 de março de 2020.

Fonte: Le Monde Diplomatique

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