Waldir, um bravo!
Madrugada dois de abril de 1964 os golpistas entravam por uma porta com Supremo e tudo e Waldir e Darcy saíam por outra para dois dias depois ma
Madrugada dois de abril de 1964 os golpistas entravam por uma porta com Supremo e tudo e Waldir e Darcy saíam por outra para dois dias depois madrugada também embarcarem num teco-teco em direção ao Uruguai para longo exílio.
Waldir Pires partiu ontem, 22 de junho, noutra madrugada. Talvez seja o caso de acompanhar expressão atribuída a Guimarães Rosa, de que tanto gosto: as pessoas não morrem, ficam encantadas. É, o velho guerreiro, e bote guerreiro nisso, tornou-se um ser encantado aos 91 anos – completaria 92 no dia 21 de outubro.
No dia 14, lancei o primeiro volume de Waldir Pires, biografia dele, e tivemos todos os que estávamos no Palácio Rio Branco, no Centro Histórico de Salvador, cidade-paixão dele por ter lhe dado a chance de conhecer o mar aos 15 anos, tivemos todos a chance de abraçá-lo, cantar o inesquecível jingle de sua campanha de 1986 eu quero ver um tempo novo de crescer e construir a Bahia vai mudar trabalhando com Waldir, muitas lágrimas pelo reencontro, emoção à flor da pele, ele numa cadeira de rodas, fragilizado. As filhas Ana Cristina, Lídia e Vivian, o filho Chico, ainda relutaram em levá-lo ao lançamento, mas ele bateu pé: queria ir de qualquer jeito.
Premonição, sabe-se lá o quê, que são territórios insondáveis, ainda mais para materialistas como eu. Talvez soubesse ser o último momento para estar junto do povo, dos amigos, da Bahia, estar na política pela qual foi apaixonado desde a mais tenra juventude. Insistiu, e foi. Depois de tanto aplauso, abraços ternos e cuidadosos pela fragilidade, quis falar, e falou: eu amo todas e todos vocês, a voz fraca, bem fraca, mas possível de ser ouvida. Sua última palavra, seu último discurso, ao povo da Bahia, o povo que o amou perdidamente, e a quem ele amou desde sempre.
Dele falo longamente na biografia. Destaco aqui sua fidelidade ao País, sua noção de que era essencial um projeto de desenvolvimento nacional que possibilitasse condições dignas a todos. Vem de uma geração do pós-guerra, quando todas as esperanças de um mundo mais justo se abriam, esperanças que ele cultivou durante toda a vida, pelas quais sempre lutou, sem esmorecer. Foi secretário de Estado no início dos anos 50, deputado estadual em 1954, federal em 1958, professor da UNB e Consultor-Geral da República do governo Goulart até que sobreviesse o golpe militar de 1964.
Foi um sustentáculo do governo das reformas de base, o corajoso governo de Goulart. São façanhas dele – façanhas é expressão de Darcy Ribeiro ao referir-se à passagem de Waldir pela Consultoria-Geral da República – os decretos de nacionalização das minas de ferro, do monopólio da importação de petróleo, da encampação das refinarias, da defesa da soberania nacional contra interferências norte-americanas. E, sobretudo, elaborador dos dois mais significativos projetos pensados por Goulart: a reforma agrária com a democratização do acesso à propriedade e ao uso da terra e a implantação da Lei de Remessa de Lucros que disciplinaria as multinacionais, proibindo que investimentos em cruzeiros gerassem dólares exportados. A revogação desses decretos e leis foi a principal exigência norte-americana aos golpistas de 1964, especialmente a da Lei de Remessa de Lucros.
Foi de Waldir toda a formulação e estratégia para que se chegasse ao fechamento do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), vinculado a articulações golpistas e suborno de parlamentares. Nascido em 1959, ligado diretamente à CIA, era dirigido pelo publicitário Ivan Hasslocher, e publicava a revista mensal Ação Democrática, cujos 200 mil exemplares eram distribuídos de graça. Foi numa fazenda de Goulart, numa manhã de agosto de 1963, que se deu a conversa entre o presidente e Waldir que definiu os últimos passos para o fechamento da organização, concluído no dia 20 de dezembro do mesmo. Junto com o IBAD, foi fechada também a Ação Democrática Popular (ADEP), criada especialmente para captar e dirigir recursos para o financiamento de candidatos contrários ao governo, particularmente para os anticomunistas.
Mais tarde, depois de golpe, exílio, volta à luta, governador, deputado federal de 1999 a 2003, é peça chave no esforço para evitar a entrega da Base de Alcântara aos norte-americanos, ao ser designado relator do acordo que havia sido assinado pelo governo Fernando Henrique com esse propósito. Na prática, criava-se um enclave dos EUA em território brasileiro, pretensão demolida por Waldir em seu relatório, aprovado pelo Congresso Nacional. O governo do golpe de abril de 2016 está na fase conclusiva de entregar agora o Centro de Lançamentos de Alcântara ao Império, aceitando tudo que os americanos desejam.
Waldir foi, no governo Lula, ministro da Controlaria Geral da União, na prática construindo uma instituição que se tornou referência mundial. O combate à corrupção nunca, na visão de Waldir, devia ser algo vinculado a raízes udenistas, de natureza moralista, farisaica, mas ligado, sobretudo, à criação, no âmbito do Estado de Direito, de organismos sólidos, capazes de conter os eventuais apetites humanos pelo uso indevido do dinheiro público, sempre com a utilização da mais absoluta transparência. Assim ele agiu na CGU.
Nele, amalgamavam-se as noções de soberania, de nacionalismo no sentido amplo, de defesa rigorosa do Estado de Direito democrático, de um projeto econômico para o País que implicasse o enfrentamento de nossas abissais desigualdades, de defesa das liberdades, do protagonismo popular, um político avesso a quaisquer soluções autoritárias. Um exemplo para as novas gerações, um homem de esquerda, e uma luz para os dias de hoje, quando o Brasil está inteiramente entregue à sanha das grandes multinacionais e à lógica privatista-rentista.
De lá, das terras encantadas onde se encontra, ele nos acena e diz:
- Só são derrotados os que deixam de lutar!
Emiliano José é historiador e ex-deputado federal pelo PT da Bahia
Fonte: Conversa Afiada
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