Imprensa no Brasil apoiou golpe no Chile e quis vender conteúdo, diz livro
Jornais brasileiros respaldaram a ditadura de Augusto Pinochet e fizeram campanha por apoio da opinião pública, mesmo antes do golpe que completou 50 anos segunda-feira (11). Também pediram dinheiro à ditadura em troca de reportagens favoráveis ao país.
É o que revela o livro "O Brasil contra a Democracia - A ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul", de Roberto Simon, que destaca como a operação para criar um apoio ao regime ditatorial contou com o trabalho da CIA e planos desenhados com o conhecimento do governo americano.
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A obra foi publicada no Brasil em 2021 e, agora, ganhou sua versão em espanhol. O novo lançamento ocorreu neste fim de semana, em Santiago, com as presenças dos ministros brasileiros Flavio Dino (Justiça) e Silvio Almeida (Direitos Humanos), no marco dos debates sobre os 50 anos do golpe militar de Pinochet.
No livro, o autor constata o papel da imprensa na relação entre regimes autoritários. Segundo ele, nos meses que antecederam o golpe, havia uma diferença profunda entre os jornais chilenos e brasileiros.
"Jornalistas chilenos podiam publicar o que quisessem, contra ou a favor de Allende, enquanto, no Brasil de Médici, a censura era implacável."
"Uma torrente de textos de opinião na grande imprensa brasileira pediam abertamente uma ruptura democrática chilena —a uma semana do golpe, por exemplo, leitores d'O Globo se depararam com um artigo de meia página assinado por Pablo Rodríguez, o líder do grupo de extrema direita Patria y Libertad (o jornal carioca se furtou a explicar quem era o autor)", constata Simon.
Como resultado de sete anos de pesquisas nos arquivos diplomáticos de diversos países, o livro revela que não se tratava de algo isolado e que havia até mesmo uma coordenação a partir de Washington.
"Atividades de propaganda continuam, com itens aparecendo em vários veículos [de imprensa] da América Latina", avisava a inteligência americana aos assessores da Casa Branca.
No mesmo documento, mais embaixo, sob rubrica "Ações", lia-se: "O Globo, do Rio de Janeiro, publicou um artigo de capa pedindo que Brasil e Argentina se unam para confrontar a situação do Chile".
O livro ainda conta com detalhes como os serviços secretos chilenos, já com o golpe instalado, passavam "orientações minuciosas a embaixadores e adidos sobre como se relacionar com a imprensa". Na imprensa brasileira, porém, o livro revela como os críticos da ditadura chilena eram raros e a relação de extrema proximidade entre os governos.
No Brasil, diz o livro, o embaixador chileno Hernan Cubillos tinha uma "tarefa mansa comparada à de seus colegas em Caracas ou Paris, Buenos Aires ou Washington".
"O embaixador [chileno] em Brasília, por exemplo, viu-se obrigado a esclarecer a Santiago que dois jornalistas brasileiros colocados no balaio de "inimigos" do Chile eram, na verdade, defensores impetuosos do golpe contra [Salvador] Allende. Um deles era Theofilo de Andrade, de O Cruzeiro."
Encontro entre diretor do Estadão e Allende
No livro, Simon destaca o papel de Júlio de Mesquita Neto, do jornal O Estado de S. Paulo, chefe da Comissão de Liberdade de Imprensa da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa). Do lado chileno, o principal associado à SIP era o Mercurio, jornal que se posicionara na linha de frente do combate à Unidade Popular de Allende. Já a presidência da entidade, naquele momento, era do brasileiro Manoel de Nascimento Brito, diretor do Jornal do Brasil.
De acordo com o autor, caberia especialmente a Mesquita levantar publicamente a SIP "contra a transformação socialista no Chile e em solidariedade à maior voz da imprensa chilena sob ataque do governo socialista".
"Para além da Sociedade Interamericana, O Estado e O Globo mantinham laços diretos com o Mercurio por meio da Latin, agência de notícias criada em 1970 com a parceria de vários jornais da América Latina, que passavam a compartilhar conteúdo", afirma o livro.
Matérias produzidas pelo diário chileno eram traduzidas e republicadas no Brasil e, na avaliação do autor, um "setor-chave da imprensa brasileira tornava-se uma caixa de ressonância de um diário envolvido nos primeiros planos do golpe contra Allende, e financiado pela espionagem americana".
Nas páginas de jornais como O Estado, porém, o Mercurio aparecia seguido do aposto "jornal independente do Chile". Ou então: "prestigioso órgão da imprensa democrática chilena, hoje labutando para sobreviver". As manchetes sobre a luta do diário contra a Unidade Popular eram "Allende restringe liberdade", "Imprensa ameaçada no Chile", "Imprensa chilena teme pelo futuro", "Aumenta pressão de Allende sobre toda imprensa livre".
Em uma análise a posteriori, a CIA atribuiria ao seu "Projeto Mercurio" um "papel significativo" na destruição do governo da Unidade Popular.
O livro ainda revela como Mesquita escreveu uma carta a Allende atacando o "processo de totalitarização" que atingia os jornais "livres" do Chile. "Prova do cerco eram as decisões do governo de aumentar em 50% os salários de jornalistas e de tabelar os preços de anúncios publicitários. As medidas espremeriam os lucros da imprensa, alertou Mesquita, talvez a ponto de sufocá-la", disse.
Mesquita, em nome da SIP, voltou a escrever a Allende, criticando o "instrumento com que se pode diminuir a liberdade de pensamento" no país.
A entidade da imprensa transformava suas reuniões periódicas em atos de solidariedade ao Mercurio e repúdio à Unidade Popular.
Um uma dessas reuniões na capital chilena, em outubro de 1972, Allende convidou o diretor do Estadão e outros sete integrantes da Sociedade Interamericana para uma conversa em sua casa. "A liberdade de expressão será garantida no Chile", prometeu aos representantes de grandes veículos da imprensa latino-americana. "Mesmo que o Estado assuma o controle da indústria de papel, não será limitada à distribuição da matéria- prima aos jornais. Tenho consciência da dignidade do meu cargo", sublinhou.
Simon, porém, destaca a contradição que Mesquita vivia.
"O dono do jornal estava em uma luta brava contra a censura imposta pela ditadura brasileira. Ainda assim, o alvo prioritário da SIP e de sua comissão para liberdade de imprensa era Santiago — mesmo que houvesse muito mais liberdade de expressão no Chile da Unidade Popular do que no Brasil de Médici", disse.
Após se encontrar com Allende, Mesquita fez um duro discurso, no fechamento da convenção da SIP, contra a prática da censura por governos latino-americanos. O Estado tentou noticiar o discurso usando um despacho da Associated Press, mas foi censurado. Mil exemplares de sua primeira edição do dia 11 de outubro acabaram confiscados pelos militares.
Simon relata como a relação chegou a envolver propostas comerciais concretas. "Em uma ocasião, mesmo a linha que separava o jornalismo simpático ao regime chileno da crua publicidade pró-Pinochet, ditada por Santiago, ameaçou se desvanecer", disse o autor.
"Segundo documentos secretos da diplomacia chilena, em meados de 1975 o diretor da sucursal de O Globo em Brasília, Arnaldo Nogueira, procurou Jaime Valdés [adido chileno] com uma proposta de negócios. [O embaixador do Chile no Brasil] Cubillos reportou a seus superiores em Santiago que o jornal do Rio queria vender matérias ao regime chileno, com pautas definidas e reportagens revisadas por "amigos" da ditadura de Santiago".
De acordo com os documentos, a oferta dividia-se em duas alternativas. A primeira era publicar um caderno especial de 36 páginas sobre o novo Chile, ao custo de exatos US$ 248 mil (quase US$ 1,2 milhão de em valores atuais, corrigindo-se pela inflação nos Estados Unidos).
O documento revela que o embaixador não considerava essa a melhor opção, pois "esgota numa só ocasião o impacto publicitário, carece do fator subliminar que é desejável para penetrar diretamente no público e, por isso mesmo, está sujeita a todos os receios e suspicácias do leitor frente a qualquer suplemento especial".
"O outro caminho possível seria pagar quase US$ 6 mil por reportagens individuais. Um pacote com vinte matérias sairia por menos de US$ 120 mil (US$ 530 mil atuais)", explicou.
Segundo o livro, a embaixada em Brasília decidiria a época da viagem dos jornalistas — a preferência era por agosto e setembro, de modo a coincidir com o segundo aniversário do golpe —, e O Globo enviaria um repórter e um fotógrafo, cujo deslocamento dentro do Chile ficaria a cargo do governo Pinochet.
Conforme descreve o livro, as pautas seriam estabelecidas pelo governo chileno e antes da publicação todo o material deveria ser revisado pela embaixada. Santiago, porém, julgou que a operação custaria caro demais para os cofres chilenos e o projeto não prosperou. Afinal, não haveria necessidade de pagar algo que já estava acontecendo, sem qualquer acordo financeiro.
O que dizem Globo e Estadão
Em nota. o Grupo Globo disse desconhecer "o teor dessa pesquisa e se sente impedido de opinar em profundidade".
"A serem verdadeiros os documentos e se estiverem bem contextualizados (destacando por exemplo as imposições draconianas que a imprensa sofria no período), desde já o Grupo Globo pode assegurar que aquelas atitudes não estão alinhadas com os princípios e valores que vem praticando há décadas. Como já foi dito num editorial sobre o golpe de 1964, "a História é o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se enriquece ao reconhecê-los'.
Procurado, o jornal O Estado de S. Paulo não comentou os questionamentos da coluna.
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