Quem poderá frear o poder das corporações globais?

Elas violam, sistematicamente, os direitos humanos e a natureza

Publicado em 12/04/2019
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Vivemos um tempo de capitalismo extremo, em que as grandes empresas ganharam peso superior ao da maioria dos Estados. Por um conjunto de mecanismos de captura do poder, elas deixam aos governos nacionais e seus cidadãos margem de manobra cada vez mais reduzida em defesa de seus direitos. Com sede num país e filiais em vários outros – aquele geralmente no Norte e estes amiúde no Sul –, as multinacionais conseguem, através de um arcabouço jurídico que as favorece, escapar de acusações e não indenizar funcionários e comunidades locais prejudicadas mundo afora. Exemplo maior é a Vale, ainda sem condenação pelos desastres socioambientais provocados no Brasil.

É nesse contexto, e depois de 40 anos de demandas da sociedade civil, que a ONU negocia um Tratado de Direitos Humanos como instrumento internacional vinculante, ou obrigatório, para regular as atividades de corporações transnacionais que violem direitos humanos também fora de seu país de origem. E desta vez as negociações estão abertas não apenas às corporações, mas também a organizações não governamentais – algumas das quais trabalham há décadas nesse tema.

A negociação do tratado teve início depois da adoção pelo Conselho dos Direitos Humanos da ONU, em 2014, de uma resolução apresentada pelo Equador e África do Sul, e permitirá expor abusos que ficam sem julgamento.

“Hoje as corporações dispõem do seu próprio aparato jurídico, como o International Centre for the Settlement of Investment Disputes (ICSID) e instituições semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e outros. Tipicamente, irão atacar um país se este impuser regras ambientais ou sociais que o mundo corporativo julga desfavoráveis, e processá-lo por lucros que poderiam ter tido”, ensina o professor Ladislau Dowbor, estudioso do assunto.

As queridinhas da ONU

O maior obstáculo para a adoção do presente Tratado é a presença das corporações dentro da própria ONU. Desde a década de 1990, uma cultura de “parceria” e integração do setor privado na elaboração das regras e tomada de decisões foi sendo crescentemente incorporada ao sistema das Nações Unidas. O símbolo desse estreitamento de relações é o Pacto Global, lançado em 2000 pelo secretário-geral Kofi Annan, de caráter voluntário e endossado por milhares de multinacionais nada exemplares, que traçou 10 princípios relacionados a direitos humanos, trabalhistas, meio ambiente e combate à corrupção.

O Pacto Global se beneficia do rótulo da ONU sem impor nenhuma obrigação às empresas parceiras, afirmam os ativistas. “Estudo do Global Policy Forum foca diretamente o fato dos interesses corporativos terem adquirido uma influência desproporcional sobre as instituições que redigem as regras globais. O documento apresenta ‘a crescente influência do setor empresarial sobre o discurso político e a agenda’, questionando ‘se as iniciativas de parcerias permitem que o setor corporativo e os seus grupos de interesse exerçam influência crescente sobre a definição da agenda e o processo decisório político dos governos’”, observa Dowbor.

O poder das transnacionais agigantou-se também diante da falta de interesse de muitos Estados, ávidos por impostos, em defender os Direitos Humanos. Vide a pactuação entre as políticas europeias e as multinacionais do velho continente, aqui para construir uma represa, lá para abrir uma mina, acolá para desenvolver uma indústria exportadora explorando a força de trabalho.

No Brasil, decreto assinado por Rodrigo Maia, presidente da República em exercício, e publicado pelo governo federal em 21 de novembro de 2018, fragiliza o cumprimento dos direitos humanos por empresas nacionais e multinacionais, previstos na Constituição e em documentos internacionais adotados pelo país.

Soma-se a isso o fato da ONU depender de recursos das corporações para financiar suas agências e eventos – seja o patrocínio de conferências sobre clima ou parceria entre agências da ONU e a Microsoft de Bill Gates; seja a doação de 1 bilhão de dólares pelo empresário Ted Turner para a criação, em 1998, da “Fundação das Nações Unidas”, que se tornou uma plataforma de captação de recursos de multinacionais para agências da ONU e tem hoje como parceiros Nike, Shell e Disney.

Escândalos se acumulam

Atendendo pela primeira vez a uma velha demanda da sociedade civil, o Grupo de Trabalho Intergovernamental criado em 2015 para dar início à elaboração do Tratado foi ouvir in loco as comunidades atingidas pelas corporações. Pavel Sulyandziga e Dante Pesce, membros do GT, visitaram o Brasil entre 7 a 16 de dezembro daquele ano – logo em seguida ao rompimento da barragem do Fundão, em Minas Gerais, controlada pela Samarco, empreendimento conjunto das maiores multinacionais de mineração do mundo: a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton.

Com visitas a Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Mariana, Altamira e Belém, seu relatório inclui, além do desastre socioambiental da Vale, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e as obras para as Olimpíadas de 2016. Mostra preocupação com os assassinatos no campo e os conflitos por invasão de Teritórios Indígenas e tentativas de retomada das terras ancestrais indígneas e quilombolas. Menciona o assassinato e ameaças sofridas por ativistas de DH (29 dos 116 mortos em 17 países em 2014, conforme relatório Global Witness). Fala da tentativa de mudar a definição de trabalho escravo e não mais tornar públicas a listas das empresas envolvidas.

A pesquisadora Patricia Feeney cita dois casos famosos: o envolvimento da ITT e outras empresas norte-americanas no golpe do Chile, que derrubou o presidente Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, e os subornos pagos pela empresa Lockheed a oficiais japoneses em troca de contratos militares.

Já o relatório “Impunidade ‘made in EU’”, publicado em outubro de 2018 pelo Observatório das Multinacionais, traz 16 estudos de caso sobre violação dos Direitos Humanos (DH) por multinacionais europeias tais como Shell, Syngenta ou Volkswagen. No Brasil, detalha o desastre da Samarco em Minas Gerais, destacando que “os governos nacional e local favoreceram a empresa ao promover mudanças na legislação”; e o greenwashing para esconder o impacto sobre comunidades indígenas e violação de direitos trabalhistas na construção da barragem da hidrelétrica de Jirau. Traz ainda estudos de caso sobre a construção de grandes barragens na Etiópia; a produção têxtil deslocada para fábricas no Paquistão; e a exportação de agroquímicos na Índia, causando poluição, conflito social, corrupção, instabilidade política. Produzidos por iniciativa de organizações europeias e duas organizações da Argentina e Zâmbia, são lições cruciais para as atuais negociações na ONU.

40 anos de ativismo

As denúncias sobre o impacto gerado na vida de indivíduos e do ambiente por multinacionais começaram nos anos 1970 , dando início a movimentos em prol da regulação internacional das empresas. Uma comissão do Conselho econômico e social da ONU foi então encarregada de desenvolver um código de conduta obrigatório para as multinacionais – o qual, após muitas idas e vindas, acabou sendo desmantelada nos anos 1990.

“Nas décadas de 70 e 80, boicotes foram realizados contra agentes econômicos como forma de ativismo, em particular com relação a empresas e bancos que apoiavam economicamente o regime do apartheid na África do Sul. Durante este período, também foram alvo de boicotes empresas que forneciam equipamentos militares a regimes responsáveis por violações sistemáticas de direitos humanos (HANLON, 1990)”, informa Patricia.

Nos anos 1990, uma nova onda de protestos espalhou-se pelo mundo, particularmente Europa e Estados Unidos. “No final da década de 90, foram realizados grandes protestos em todo o mundo. A marcha de 100 mil pessoas em Seatle em protesto contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), acusada pelos ativistas de ser um organismo criado com o intuito de aumentar a mobilidade e influência das empresas no âmbito global, constitui o melhor exemplo desse tipo de ativismo”, observa ela.

Em 2003, o Subcomitê das Nações Unidas para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos propõe a criação de um marco legal obrigatório para o controle das atividades das multinacionais. Mais uma vez a pressão de empresas e governos ocidentais fez com o que projeto fosse abandonado em favor de ações voluntárias, com a adoção em 2011 dos “Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos” (UNGP).

O atual tratado internacional sobre grandes empresas e direitos humanos é, portanto, uma nova etapa numa luta que vem sendo travada há décadas. Seus promotores esperam que desta vez, diante do acúmulo de escândalos, a pressão dos grupos da sociedade civil e opinião pública permita superar as oposições: nada menos que o mundo dos negócios de Estados Unidos e os governos da Europa, entre outros menos poderosos.

“O fato de que o projeto de tratado continue avançando, apesar da oposição aberta ou inteligente de atores poderosos, mostra que o sistema da ONU ainda tem algum poder”, considera Olivier Petitjean, do Observatório das multinacionais.

O relatório “Impunidade made in Europe” está disponível em francês, inglês e espanhol. Os estudos de caso estão disponíveis em inglês.

Fonte: Outras Palavras

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