Trilhões, bilhões, juros e o pente fino da Fazenda
Revogação do Teto de Gastos da era Temer foi condicionada à introdução das novas regras de austeridade.
A reiterada obsessão manifestada – dia sim, outro também – pelo ministro Fernando Haddad com a implementação da austeridade fiscal extremista vai criando um conjunto amplo de problemas para a agenda governamental.
A adesão unilateral aos diagnósticos e às propostas do campo do financismo provoca consequências sérias e danosas para qualquer programa de natureza desenvolvimentista do governo.
Afinal esta era uma das grandes esperanças depositadas pela maioria da população brasileira ao confiar um terceiro mandato para o presidente Lula em outubro de 2022.
Ao convencer o seu chefe a respeito da importância de apresentar um roteiro baseado na adoção do bom mocismo e na incorporação do receituário neoliberal como diretriz de ação do governo, o responsável pela pasta da Fazenda impõe a lógica da paralisia da administração pública federal.
Trata-se de travar qualquer iniciativa que envolva a necessidade de recursos orçamentários que estejam fora da órbita da contenção exigida pelo Novo Arcabouço Fiscal.
Essa foi a intenção subjacente ao desenho da Lei Complementar 200/23, concebido por Haddad em estreita articulação com o presidente do Banco Central (BC) nomeado por Bolsonaro e com alguns presidentes da banca privada.
A revogação do Teto de Gastos da era Temer foi condicionada à introdução das novas regras de austeridade.
Mais à frente, o ministro da Fazenda convenceu o presidente da República a respeito da necessidade de se buscar a mítica meta de “zerar o déficit primário em 2024”.
Essa procura tresloucada por um objetivo praticamente impossível de ser alcançado em termos de política econômica faz do Brasil um país singular.
Afinal, ao impor uma trajetória que caminha contra a corrente daquilo que se pratica na grande maioria dos países, seu governo se compromete de moto próprio com uma rigidez de austeridade fiscal que já foi há muito tempo abandonada pelas próprias nações mais desenvolvidas.
O arcabouço é um calabouço fiscal!
Ora, ao colocar em movimento as diferentes peças das políticas públicas nesse tabuleiro de xadrez mal ajambrado, parece que só existe mesmo a saída do auto-xeque.
Essa é a explicação para as sucessivas tentativas de trazer para a pauta do Palácio do Planalto algumas medidas visando a retirada de pisos constitucionais para despesas com saúde e educação, além da desindexação dos benefícios previdenciários em relação ao salário mínimo.
Ao incorporar para si a lógica austericida de que os orçamentos da área social são fontes de “gastança generalizada”, os responsáveis pela economia no governo patrocinam uma verdadeira contaminação financista em um mandato que pretendia realizar 40 anos em 4 e fazer mais e melhor do que havia feito entre 2003 e 2010.
Ocorre que a narrativa da necessidade de instaurar a austeridade para receber da turma da Faria Lima a certificação de um governo efetivamente marcado pela responsabilidade fiscal se converte em um verdadeiro tiro no pé de Lula.
Tanto é que o presidente foi convencido a promulgar a Lei nº 14.973/24, que contém dispositivos claramente contrários aos interesses da grande maioria da população.
Por exemplo, estão presentes ali elementos que autorizam a cassação de direitos previdenciários sem as necessárias etapas prévias de averiguação e defesa de envolvidos em supostas irregularidades na concessão de tais direitos.
No entanto, toda esta parafernália antidemocrática e que pode estar na base de medidas autoritárias e redutoras de direitos só veio à tona em razão da cruzada de Haddad em prol de uma austeridade perdida.
O ministro precisa levar em frente cortes nos orçamentos deste ano e do próximo para que seja possível cumprir a meta de zerar o déficit primário.
Como as promessas pouco sérias de elevação da receita não foram efetuadas, só lhe restou a opção de cortar nas políticas sociais.
Afinal, reconhecer o equívoco da estratégia e encaminhar alguma proposta de aceitar um déficit em 2024 e 2025 não lhe passa pela cabeça de forma alguma. O que diria a turma do financismo face à tal confissão de irresponsabilidade?
Cortes nos pobres e bilhões para juros
A única certeza é de que a solução apresentada pelo andar de cima é sempre a mesma. Cortar na carne dos pobres.
E lá vem o governo Lula implementar cortes nos valores – ditos “extravagantes” pelos escribas a mando da finança – recebidos pelas famílias que são contempladas pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Uma loucura! Trata-se de um valor mensal de um salário mínimo atribuído a famílias que contem com pessoas portadoras de deficiência ou que tenham 65 anos ou mais de idade sem nunca ter contribuído para a previdência social.
E para assegurar o enquadramento, a renda desta família não pode ser superior a ¼ de um salário mínimo per capita.
Pois são exatamente estes “privilegiados” que passam a ser os criminalizáveis da vez e que receberão uma operação pente fino, com o intuito de acabar com essa “gastança absurda” (sic).
O argumento vergonhoso é de que o governo precisa cumprir a meta do arcabouço e, para tanto, necessita arranjar de onde cortar R$ 26 bilhões do orçamento para zerar o déficit primário.
Ocorre que as verdadeiras cifras são outras. Afinal, já foi dito que governar é estabelecer prioridades.
Ao que tudo parece indicar, aquelas que Haddad estabelece não levam em conta a realidade econômica e financeira do setor público como um todo.
Não há um único movimento em direção à busca de fontes de recursos localizados no topo da pirâmide da desigualdade ou no corte de despesas com esse pessoal que vive às custas da farra financista do Estado brasileiro.
Apenas no mês de julho passado, o Tesouro destinou ao pagamento de juros da dívida pública mais de R$ 80 bi – algo equivalente ao triplo do que se pretende cortar em direitos sociais ao longo do ano todo.
A área econômica afirma a todo momento que não há recursos e que por essa razão se faz necessária uma política de austeridade fiscal para buscar o equilíbrio nas contas públicas. Mentira!
Os recursos existem e estão à disposição do governo. Tanto é que ao longo dos últimos 12 meses foram transferidos R$ 870 bi a título de despesas financeiras para o cumprimento da obrigação de juros aos detentores de títulos da dívida pública.
O detalhe é que tais gastos são classificados como “não-primários” e, portanto, não entram no cálculo do superávit primário. Mera tautologia metodológica.
O fato concreto é que os valores existem: eles saíram da contabilidade do Tesouro Nacional e foram depositados nas contas dos setores privilegiados, os verdadeiros responsáveis pela gastança, aqueles que vivem às custas da farra fiscal em favor do financismo. Vamos a alguns exemplos de dimensão trilionária.
Recursos existem e são trilionários
A famosa Conta Única do Tesouro Nacional junto ao Banco Central apresenta, em sua última divulgação, um saldo credor superior a R$1,7 trilhão. Trata-se de recursos consolidados que o governo mantém para realizar operacionalmente todas as suas despesas.
Mas o discurso oficial sempre se “esqueceu” da existência de tal fonte e criou normas para que não houvesse apuração sistemática do montante que sempre termina por desnudar o argumento falacioso da “falta de recursos”.
A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) é o órgão encarregado de apurar e cobrar as dívidas tributárias não pagas ao governo federal.
Em geral, trata-se de um enorme estoque de valores devidos e sonegados por pessoas físicas e pessoas jurídicas. No entanto, o percentual mais expressivo é atribuído a grandes conglomerados empresariais.
O total da chamada Dívida Ativa da União é estimado em R$ 2,9 trilhões.
Ao contrário do pente fino prometido contra os mais pobres, o que se faz neste caso é o lançamento de generosos planos anuais de negociação de tais montantes (os conhecidos REFISs), com anistia de parte das dívidas e parcelamento dos valores não pagos em 15 ou 20 anos sem cobrança de juros.
Ainda no que se refere à prioridade na alocação dos gastos orçamentários, vale recordar o impacto macroeconômico de longo prazo provocado pela rubrica financeira, ou seja, pelo cumprimento dos serviços da dívida pública em nosso País.
O governo sempre reafirma que não tem recursos, mas paga pontualmente os valores relativos aos juros dos títulos da dívida pública.
Desde que a série passou a ser apurada e divulgada de forma sistemática pelo Tesouro Nacional, o montante impressiona pelo seu volume. Entre janeiro de 1997 e julho de 2024, por exemplo, foram alocados R$ 10 trilhões a esse título.
E ainda tem gente subordinada a Lula que aponta o dedo para os gastos do BPC como sendo os responsáveis pelo suposto desequilíbrio nas contas públicas.
Mas o governo insiste em reproduzir o discurso e as políticas preconizadas pelo financismo. Deixa de lado a busca de recursos junto ao grande capital e aos grupos do topo da concentração de renda e de patrimônio para alcançar melhores resultados fiscais.
Mas mantém-se impiedoso e rigoroso na busca de soluções que apenas agravam a já difícil situação dos mais pobres e dos mais desfavorecidos.
Uma completa inversão de valores democráticos e republicanos, além de se converter em um caminho perigoso para a própria popularidade do presidente da República.
*Paulo Kliass é mestre em Economia pela USP e doutor pela UFR – Sciences Économiques – Université de Paris 10 e pós doutorado em economia na Université de Paris 13. Integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
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