A escalada sem volta
Segundo o renomado historiador francês Fernand Braudel, a história total, ou história global, deve cumprir requisitos mínimos
Segundo o renomado historiador francês Fernand Braudel, a história total, ou história global, deve cumprir requisitos mínimos onde tanto os elementos temporais, como os elementos espaciais, resultarão na amplitude necessária para compreender o objeto de análise organicamente e a partir de três dimensões subjetivas, quais sejam: o tempo, o espaço e a sua totalidade.
Sendo assim, podemos simplificar a percepção histórica “braudeliana” utilizando quatro conceitos que permeariam o tempo e o espaço histórico: numa escala, ainda em âmbito nacional; menor de tempo, haveria o evento histórico; em seguida, ampliando a conjuntura e já entrando ao nível internacional e secular a chamada longa-duração, e abrangendo todas as escalas anteriores, em uma amplitude máxima, aquilo que Braudel chamaria economia-mundo.
Levando em consideração os padrões de análise de Braudel ao observar a Europa em seu “longo século 13” (1150–1350) e seu “longo século 16” (1450–1650), poderíamos, a partir de uma teoria do poder, compreender os mecanismos daquilo que o intelectual brasileiro José Luís Fiori chamaria de acumulação de poder e sua intrínseca relação com o capital, a chamada acumulação de capital.
Nesta perspectiva, Fiori buscaria analisar o processo de formação das economias europeias, e mais à frente, do sistema mundial moderno – ou sistema interestatal capitalista – sob a ótica do poder e da guerra, tentando reconstruir suas relações originárias até chegar ao momento chave da centralização do poder e do capital que levaria à formação dos primeiros Estados territoriais e das primeiras economias nacionais.
Neste sentido, cabe sublinhar, no entanto, que na perspectiva de análise de Fiori, mesmo que possam ser confundidos eventualmente, os conceitos de sistema interestatal capitalista – utilizado pelo autor – e sistema mundial moderno, utilizados por autores como Giovanni Arrighi e Immanuel Wallerstein, se diferem na medida em que Fiori percebe o insuperável – segundo sua própria avaliação – papel dos Estados nacionais: o velho Estado nacional inventado tal qual conhecemos hoje por eles mesmos, os europeus, durante os “longos séculos” de expansão de seus capitais e suas moedas nacionais através de ondas explosivas ocorridas nos últimos quinhentos anos.
Dentro desta perspectiva, a disputa interestatal se fez de maneira contínua e ininterrupta com o intuito primordial de acumulação cada vez maior de poder e riqueza; sendo o motor desta competição implacável aquela que nunca, infelizmente, deixou de se fazer presente na história da humanidade: a guerra.
Passados longos meses desde o início da chamada operação militar que a Rússia perpetrou na Ucrânia, o presidente Vladimir Putin anuncia a possibilidade de uso de armas nucleares, ou qualquer outro meio de destruição em massa, caso a Rússia se veja ameaçada em sua integridade territorial.
Curiosamente, no mesmo dia da “ameaça” de Putin, o Fed americano “ameaça” aumentar os juros em 100 pontos, o que esfriaria ainda mais a economia global.
A arma de guerra da dívida pública, instrumentalizada pelos Estados Unidos, atual vencedor da última grande guerra hegemônica em 1945, se encontrando com a Rússia, a grande potência bélica desafiante da ordem internacional contemporânea. Um nada virtuoso encontro entre duas formas (em geral) complementares de acumulação de poder, o dinheiro e a arma.
Com a atual disparada nos preços do petróleo e do gás, estaríamos vivendo algo similar à crise do petróleo e do dólar do início dos anos 1970. Na época o ouro negro foi às alturas e os Estados Unidos usaram a arma dos juros para controlar os preços, sugar os recursos globais e deixar o mundo de joelhos.
A grande diferença é que hoje o mundo não-alinhado vive em estado de rebelião global contra a postura cada vez mais belicista e imperial dos Estados Unidos; ao mesmo tempo em que ocorre o alastramento de uma corrida armamentista, muitos países – e em especial a China – sorrateiramente se desfazem dos títulos da dívida pública americana, substituindo suas reservas por outros ativos como o bom e velho ouro.
Como numa luta de classes em esfera interestatal, a cimeira da Organização de Cooperação de Shangai (SCO), ocorrida recentemente em Samarcanda, no Uzbequistão, reuniu as principais potências eurasiáticas em rara harmonia a emular a contrariedade às regras geopolíticas e geoeconômicas desta divisão internacional do trabalho à nível global que há 500 anos espolia a periferia do mundo não-Ocidental.
Antigas civilizações orientais espoliadas no passado, desafiando as regras impostas de um jogo geopolítico ainda em andamento e que já está gerando resistência violentíssima dos atuais donos do mundo. Uma escalada sem volta, e como diria Braudel, onde as civilizações queimam-se a si mesmas em intermináveis e fratricidas guerras.
Fabio Reis Vianna é escritor e analista geopolítico.
Referências
BRAUDEL, F (2009) – Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: o tempo do mundo. Vol. 3. São Paulo: Martins Fontes.
FIORI, José Luís (2014) – História, Estratégia e Desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. São Paulo: Boitempo.
Fonte: Monitor Mercantil
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