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Fabio Reis Vianna

Uma crise sistêmica

Para os Estados Unidos, o Oriente Médio precisa se manter desestabilizado

Publicado em 09/11/2023
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Inventado por Theodor Herzl, primeiro presidente da Organização Sionista Mundial, e nascido em meio ao turbilhão de ideologias nacionalistas impulsionadas pelas tensões oriundas da crise sistêmica global da segunda metade do século 19, o sionismo viria a ser a outra face da moeda da ultrajante perseguição que os judeus sofriam no então Império Austro-Húngaro.

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Macabra ironia da história em que países outrora pertencentes àquele carcomido império – Hungria, República Tcheca e Polônia (onde judeus eram estigmatizados e perseguidos; o que influenciaria inclusive o movimento nacionalista judaico que levaria a invenção do próprio sionismo) – tenham estado ao lado de Israel em recentes votações na ONU a respeito da conflagração entre Israel e Palestina.

O mesmo nacionalismo antissemita alastrado no leste europeu do século 19 viria a ser o estopim para a criação do nacionalismo judaico de Herzl; irmãos siameses que hoje se encontram na mesma trincheira da extrema-direita global.

Já em franco processo de decadência, o velho Império Habsburgo foi a alegoria mais bem representativa do fim de um período histórico que invariavelmente se daria de maneira trágica, dado o caldo de cultura de ódio que seria o estopim da Primeira Guerra Mundial e onde o panorama maior de uma crise sistêmica global se daria ao lado do vertiginoso aumento da competição interestatal.

Neste cenário, a Europa, mesmo que não tenha interesse ou relação direta com o que está ocorrendo no Oriente Médio, é o começo e o fim de todos os problemas: não por acaso os ânimos entre europeus não parecem nada calmos.

Maior afetado da crise desencadeada pela invasão russa à Ucrânia, o Velho Continente se vê novamente em meio a uma turbulência que pode afetar diretamente a sua economia e estabilidade interna.

Protestos violentos na França, país com imensa população muçulmana, e a dura reação do governo socialista espanhol ao assédio indevido da embaixada israelense em Madrid são sinais inequívocos de divisão interna no seio da União Europeia, tanto em meio à sociedade, quanto entre os próprios Estados-membros.

A questão Israel–Palestina, que sempre se limitou a ser um conflito regional, ganha proporções até pouco tempo inimagináveis em razão da conjuntura global peculiar.

Isto se explica, pois aproveitando-se do impasse global aprofundado pela guerra na Ucrânia – fruto do acirramento da disputa hegemônica entre o Ocidente (representado pelos Estados Unidos), a Rússia e a China – Netanyahu, irresponsavelmente, reaviva a sanha expansionista de Israel e inicia mais um capítulo da escalada de competição e instabilidade global iniciada com a crise do coronavírus em 2020.

Por trás de questões locais, portanto, descortinam-se mais uma vez os tentáculos de uma crise sistêmica com camadas bem mais profundas e que a olhos nus parecem pouco compreensíveis.

Neste sentido, seria um erro crasso de análise imputar ao presidente dos Estados Unidos a escolha, ou não, de decidir o momento eleitoral oportuno para entrar em uma guerra, ou começar uma escalada militar.

Os Estados Unidos precisam da guerra infinitamente para se manterem no topo de um sistema interestatal que é hierárquico, competitivo e bélico desde o princípio. E mesmo se formos analisar pelo mero aspecto eleitoral, a própria sociedade americana funciona na lógica da guerra e sempre se une a favor do presidente de plantão quando a narrativa indica o inimigo externo comum.

Nesta linha de raciocínio, os próprios discursos recentes de Biden sinalizam para uma repetição de outros momentos em que o poder americano, se vendo numa encruzilhada histórica, é empurrado para um salto expansionista eminentemente militar.

O problema agora é que, pela primeira vez desde que assumiu a condição de potência mundial no pós-Segunda Guerra, os Estados Unidos se veem confrontados diretamente por outras potências questionadoras das regras impostas e tuteladas por ele mesmo.

Ao longo da história do sistema mundial, todas as potências hegemônicas – sem exceção – em algum momento iniciaram guerras mesmo em situações de paz pela simples necessidade de seguir expandindo seu poder e evitar o surgimento e fortalecimento de competidores. Espanha, França e Inglaterra fizeram isso entre os séculos 15, 18 e 19.

Se olharmos o que está ocorrendo no Oriente Médio sob a ótica da longa duração – ou seja, sem entrar no mérito das razões locais do conflito – perceberemos que o que está acontecendo dialoga com o interesse direto do atual hegemon de que não haja qualquer pacificação regional que favoreça os interesses do seu competidor-adversario direto: a China.

Para os Estados Unidos, o Oriente Médio precisa se manter desestabilizado, e o acordo Arábia Saudita–Irã não pode prosperar.

E mais, desde o início da incursão russa em território ucraniano – uma demonstração de poder sem precedente em desafio ao sistema de regras imposto pelos anglo-saxões há mais de 200 anos – o hegemon se vê “obrigado” a fazer o mesmo, sob pena de se ver desmoralizado perante aliados, competidores e vassalos deste sistema interestatal por ele mesmo liderado.

Talvez tenhamos esquecido disso, pois foi há muito tempo atrás e nenhum de nós estávamos vivos naquela altura, mas o que está acontecendo na Palestina hoje não diz respeito apenas à finanças, armas ou energia; nem mesmo a uma mera questão religiosa.

Trata-se de um reflexo da metástase do estado de guerra hegemônica já em estágio de alastramento global: a disputa pelo poder global em seu estado bruto; onde as potências grandes e médias forjam alianças e enquadram seus eventuais vassalos em uma preparação permanente para a guerra do agora e do porvir.

Fabio Reis Vianna é mestre em Relações Internacionais e Estudos Europeus pela Universidade de Évora, Portugal; professor e analista político internacional.

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