A pandemia dos liberais
Armínio Fraga, Maílson da Nóbrega, Ricardo Paes de Barros, Alexandre Schwartzman, Monica de Bolle, entre outros cujos nomes nã
Armínio Fraga, Maílson da Nóbrega, Ricardo Paes de Barros, Alexandre Schwartzman, Monica de Bolle, entre outros cujos nomes não me recordo agora. Vai se tornando cada vez mais longa nos últimos dias a lista de economistas ditos “liberais” (guardadas as devidas diferenças de posição entre eles) que vêm se manifestando publicamente, nas redes sociais ou nos principais veículos de comunicação de massa, em favor das mais ostensivas medidas de atuação governamental no combate à pandemia do Sars-Covid19 e – também e principalmente – à contenção dos incalculáveis prejuízos materiais e sociais que já estão começando a ser provocados pelo rápido aumento no número de infectados e pelas medidas rigorosas de isolamento social impostas por grande parte dos governos estaduais.
Literalmente do dia para noite, e apontando para a iminência do colapso da produção e do emprego e um empobrecimento repentino e profundo da população, personagens há muito acostumados a prescrever medidas rigorosas de “austeridade” passaram a defender, às vezes até com aparente ardor, políticas tão exóticas para o seu receituário como a ampliação da cobertura e dos valores pagos pelo Bolsa Família, programas abrangentes de renda mínima universal, pacotes bilionários de resgate às pequenas e microempresas e todo tipo de iniciativas fiscais e monetárias fortemente expansivas, ainda que ao custo de aumento do chamado “déficit fiscal” e do endividamento público.
Numa outra virada impressionante e há pouquíssimo tempo inimaginável, assisti a bem mais de uma oportunidade nas quais comentaristas e convidados da Globonews desferiram contundentes ataques ao “superministro” Paulo Guedes, apontando a sua quase total inação diante da iminência de uma explosão de insatisfação popular e do risco crescente de desestabilização social. Tal tem sido a potência dessa nova força que dela nem mesmo o convicto Merval Pereira vem escapando.
Assim, não foram poucos nos últimos dias os meus momentos de espanto e graça diante da televisão. Um observador mais desavisado bem poderia crer que, na calada da noite, o canal tivesse sido tomado por algum editor-chefe de orientação social-democrata.
Sem dúvidas, é no mínimo curioso contrastar essas posições com as que esses mesmos agentes sustentavam há poucos dias. Afinal, se retrocedermos apenas um mês, vamos lembrar que em fevereiro, ainda antes que o vírus alcançasse o nosso território, o Brasil contava entre 11 e 12 milhões de desempregados e mais de 40% da sua força de trabalho (algumas dezenas de milhões de pessoas) em maior ou menor estado de informalidade, número que representava um recorde histórico.
Vamos também lembrar que o Brasil e, principalmente, o seu sofrido povo, já vinham em crise desde meados de 2014, sem que para ela tenha sido encontrada qualquer saída concreta. Vamos lembrar que, desde então, sob a justificativa de combatê-la, políticas ostensivamente defendidas por Fraga, Schwartzman e cia. foram impostas a ferro e fogo pelos governos Dilma, Temer e Bolsonaro e seus ministros Joaquim Levy, Henrique Meirelles e Paulo Guedes, entre outros.
Vamos lembrar que essas políticas vêm consistindo, por exemplo, num regime de “austeridade fiscal” aplicado sem cessar que vem depauperando cada vez mais serviços públicos essenciais como o SUS, a Previdência Social, as universidades e os órgãos públicos de pesquisa, exatamente as instituições agora misteriosamente enaltecidas pelos jornalistas globais e das quais se espera, nesse momento crítico, soluções rápidas e eficazes para a pandemia.
Também seguindo os preceitos defendidos por aqueles senhores e reverberados incessantemente por seus porta-vozes globais, foram aprovadas pelos últimos governos reformas trabalhistas e previdenciárias abrangentes que reduziram significativamente os direitos dos brasileiros como um todo e rebaixaram as condições de vida de amplos setores da população, os tornando mais vulneráveis às intempéries como uma inesperada pandemia.
Da mesma forma, e ainda de acordo com as suas posições, foram instituídos rígidos limites constitucionais, válidos a princípio por nada mais nada menos do que 20 anos, à ampliação dos gastos públicos reais, levando os investimentos governamentais aos níveis mais baixos da nossa história e impedindo, entre outras coisas, a construção e manutenção da infraestrutura hospitalar, científica e tecnológica que agora está se mostrando mais vital do que nunca.
Diante disso, cabe perguntarmos: o que teria mudado para esses personagens em tão curto espaço de tempo? O que justificaria uma mudança tão radical de posição em questão de uma ou duas semanas? Por que o desemprego, a pobreza e o desamparo de milhões de brasileiros em fevereiro eram, ao que tudo indica, meros dados “normais” da realidade e, repentinamente, parecem ter deixado de sê-lo?
Afinal, qual é, para eles, o nível tolerável de sofrimento da população brasileira? Quais são os critérios ou limites acima dos quais as suas convicções no seu receituário podem ser deixadas de lado em nome de medidas que aliviem o sofrimento da população? Por que consideram aceitável que o funcionamento “normal” do que chamam de “economia” produza tal massa gigantesca de excluídos, quase sempre abandonados à própria sorte, mas agora advogam pelas mais amplas e decisivas medidas governamentais de mitigação da pobreza e do provável desespero popular diante da iminência do desabastecimento em massa?
Não creio, contudo, que toda essa confusão deva nos enganar. Vale, afinal, lembrarmos uma das mais celebradas afirmações liberais, proferida por ninguém menos que Margaret Thatcher: “There is no such thing as society” – grosso modo, não existe sociedade.
Fossem de fato humanistas os motivos por trás das suas novas posições, aqueles senhores e seus porta-vozes sempre as teriam defendido. Nesse caso, não haveria diferença se os brasileiros desamparados somassem mil, 10 mil, 20 mil, 50 milhões ou 100 milhões: sanar as suas necessidades seria um objetivo central da sua visão de mundo e, portanto, as suas prescrições sempre teriam sido outras.
Assim, o que os preocupa de fato nesse momento é que a comoção social que essa pandemia parece estar na iminência de provocar cause tal desorganização da sociedade e da produção no Brasil nos próximos meses que torne muito mais custosa, ou mesmo inviável, qualquer recuperação posterior da “economia” brasileira.
Dessa forma, na hora em que essa sociedade que supostamente não existe ameaça colapsar, os liberais, ao mudarem radicalmente de orientação, não apenas admitem implicitamente que sim, ela existe, como reconhecem também que não há nem pode haver “economia” dissociada dela e que, portanto, os governos devem agir com todos os meios à sua disposição para mantê-la minimamente coesa e estável.
Nesse momento, a subordinação da sociedade a essa tal “economia” que em circunstâncias “normais” eles defendem – uma posição inteiramente política que lamentavelmente a moderna disciplina acadêmica da Economia busca representar como ciência supostamente neutra – cai por terra.
Em suma, essa séria pandemia que agora nos ameaça vai passar. Esperamos que o faça com o menor custo humano e material possível. Resta saber se, depois dela, o Brasil conseguirá se livrar de outra, ainda mais grave e que o atinge já há muito tempo. Trata-se daquela que caracteriza a visão de mundo desses liberais extremistas e que aflige a todas as sociedades que, tal qual hoje se passa com a nossa, caem sob o seu jugo: a pandemia da sociopatia.
Daniel Kosinski é doutor em Economia Política Internacional, pesquisador da UFRJ e membro do Instituto da Brasilidade.
Fonte: Monitor Mercantil
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