Acreditando nas próprias falsas teorias
Para gerar um crescimento sustentado da economia, tem de haver um estímulo exógeno e permanente ao crescimento.
Autores burgueses liberais tendem a explicar os problemas que surgem sob o capitalismo não pelas tendências imanentes do sistema, mas pelo capricho de governos particulares. Deste modo eles podem continuar a acreditar nas suas próprias teorias falsas que embelezam o capitalismo, ao mesmo tempo que atribuem a culpa pelos problemas que este gera a uma mentalidade política sanguinária. Um desses exemplos de embelezamento é a apresentação do sistema como se o comércio internacional fosse benéfico para todos.
Receba os destaques do dia por e-mail
Séculos de colonialismo, que destruíram as economias dos países conquistados, causando pobreza, desemprego e subdesenvolvimento, ao impor-lhes uma relação comercial exploradora, não deveriam ter deixado margem para tal pretensão, mas o colonialismo, infelizmente, nunca figura na análise econômica burguesa.
Ora, um pressuposto óbvio, entre muitos, que está subjacente à crença de que o comércio internacional beneficia todos, é que todos os países experimentam o pleno emprego de todos os “fatores de produção” (incluindo o trabalho), tanto antes como após o comércio. O comércio apenas conduz a uma mudança no conjunto de bens que é produzido através da utilização plena de todos os fatores que também eram plenamente utilizados anteriormente; esta mudança implica, para cada país, uma maior especialização na produção dos bens em que tem uma “vantagem comparativa”. Por conseguinte, através do comércio, a produção mundial, considerando todos os países em conjunto, aumenta, e é isto que cria a possibilidade de todos os países beneficiarem do comércio. O pior que pode acontecer a qualquer país nesta situação é não ganhar com o comércio; mas não há absolutamente nenhuma razão para perder com ele.
Mas, longe de haver pleno emprego de todos os fatores antes e depois do comércio, o capitalismo por si só se caracteriza, como reconheceu um excepcional economista liberal burguês, John Maynard Keynes, por uma restrição quase perene da procura, isto é, por um estado perene de sobre produção, ou o que ele chamou de “desemprego involuntário”. Neste caso, o comércio torna-se essencialmente um instrumento de exportação do desemprego para o parceiro comercial, através de um excedente de exportação em relação a este; quanto mais forte for a restrição da procura e mais grave for a situação de desemprego, maior será a luta entre os países para exportar o desemprego de uns para os outros. Nesta luta, procurar-se-ia também exportar o desemprego para países que não fossem eles próprios capitalistas.
A ordem neoliberal, que envolve fluxos relativamente irrestritos de bens e serviços e de capital, incluindo o financeiro, através das fronteiras dos países, foi criada com base no argumento burguês de que o comércio era benéfico para todos, de modo que o neoliberalismo, sendo conducente ao comércio, era suposto beneficiar todos. Mas, após o colapso da bolha imobiliária americana, quando a economia mundial entrou numa crise prolongada de sobre produção (ou seja, experimentou uma séria restrição da procura), o jogo de proteção da própria economia contra as importações de bens começou a sério. A ideia era produzir internamente os bens que até então eram importados, aumentando assim o emprego interno em detrimento do emprego no estrangeiro (o que equivale a exportar desemprego para eles). E as mesmas economias metropolitanas que tinham feito o braço de ferro com o terceiro mundo para aceitar a ordem neoliberal, tomaram a iniciativa de se protegerem contra as importações, violando as regras dessa mesma ordem neoliberal. O país especificamente visado foi a China, que fora um exemplo brilhante de crescimento orientado para a exportação; essas exportações haviam sido conseguidas, em grande medida, sob a égide do capital metropolitano que se tinha instalado na China e que exportava de volta para a metrópole.
Economistas burgueses liberais ocidentais vêm o protecionismo contra os produtos chineses como sendo causado por uma sanha política em relação à China e atribuem a violação ocidental das regras neoliberais a essa sanha. Na realidade, porém, é a crise de sobre produção, que resulta das tendências imanentes do capitalismo, que está subjacente a esse protecionismo e não qualquer puro desejo político de punir a China. É bem possível que também exista esse desejo político, mas considerar que só isso está na origem do protecionismo no Ocidente é exonerar o capitalismo das suas contradições imanentes e perpetuar a fábula de que, se não fosse esse ato de vitimização, o comércio livre teria continuado e seria benéfico para todos.
MENDIGAR AO MEU VIZINHO
Estas tentativas frenéticas de exportar o desemprego através da prossecução das chamadas políticas “beggar-my-neighbour” caracterizaram o período da Grande Depressão da década de 1930. As despesas públicas para aumentar a procura agregada não foram tentadas durante grande parte da década de 1930 em lado nenhum, exceto nos países fascistas que se tinham armado para preparar a guerra. O New Deal de Roosevelt foi, sem dúvida, introduzido no início da década de 1930, mas foi prontamente interrompido no momento em que a economia dos EUA mostrou alguns sinais de recuperação, levando a um recomeço da crise. Só quando a guerra parecia iminente é que os países capitalistas liberais se lançaram nas despesas públicas com armamento. Mas, antes de se proceder a despesas públicas em grande escala, recorreu-se de forma generalizada à exportação do desemprego através de políticas de “mendigar ao meu vizinho”, com desvalorizações competitivas das taxas de câmbio que caracterizaram a maioria dos países depois de terem saído do padrão-ouro. Mas como toda a gente estava a tentar essas políticas de “mendigar ao meu vizinho”, não foi um grande êxito para ultrapassar a depressão num único país. No entanto, o protecionismo no terceiro mundo, especialmente na América Latina, lançou as sementes da industrialização substitutiva de importações nesse continente. A crise funcionou assim como o prenúncio da industrialização no terceiro mundo.
Assistimos mais uma vez a um protecionismo nas metrópoles, agora sob o pretexto de um ataque ao êxito das exportações chinesas. Mas não se trata de uma rivalidade geopolítica a estragar o maravilhoso regime de comércio livre que o neoliberalismo introduziu, como os economistas liberais nos querem fazer crer; pelo contrário, é o protecionismo, como resposta à crise, como meio de exportar o desemprego, que está a ser dirigido contra aquele que é talvez o país exportador mais bem sucedido do mundo. A rivalidade geopolítica fornece um álibi; os EUA podem argumentar que acreditam no comércio livre que apregoam, mas que têm de contar com realidades geopolíticas que os levam a impor medidas protecionistas contra a China. A verdade, porém, é o contrário; a coberto da rivalidade geopolítica, os EUA estão empenhados em exportar desemprego para a China através das suas medidas protecionistas.
É improvável que a China seja grandemente prejudicada pelo protecionismo americano; há já algum tempo que diversifica a sua produção, afastando-a da exportação para o mercado interno, antecipando precisamente a eventualidade de uma resistência ocidental e também para evitar o descontentamento do campesinato a nível interno. De fato, há alguns anos, tinha adotado um documento intitulado “Rumo a um campo socialista”, que previa um aumento das despesas do Estado nas zonas rurais da China.
Todo este episódio põe em evidência as armadilhas de uma estratégia de crescimento induzido pelas exportações no contexto atual: se um país, especialmente um grande país, conseguir atingir uma taxa elevada de crescimento induzido pelas exportações, mais cedo ou mais tarde irá suscitar a resistência das economias metropolitanas. Até agora, falámos de resistência apenas no contexto de uma crise de sobre produção. Mas mesmo quando não há uma crise de sobre produção acentuada, a persistência de um excedente de exportação em relação ao país imperialista líder por parte de um país exportador bem sucedido, que conduz a uma perda de postos de trabalho e a um maior endividamento do primeiro em relação ao segundo, também convidaria à resistência do país líder.
Mesmo antes da China, o Japão, que não representava um desafio geopolítico para os EUA, havia sofrido um destino semelhante: o seu grande êxito em conseguir um crescimento baseado nas exportações acabou por levar à resistência americana às exportações japonesas, fazendo baixar a taxa de crescimento do Japão. É possível argumentar que as atuais medidas americanas no contexto da guerra da Ucrânia também constituem um exemplo dessa resistência contra o êxito da Alemanha em alcançar um crescimento baseado nas exportações: a explosão do gasoduto Nord Stream, que torna quase impossível qualquer retomada do fornecimento de gás russo barato àquele país e, por conseguinte, aumenta os custos de produção da indústria alemã, elimina todas as perspectivas de reavivar o êxito das exportações alemãs num futuro previsível.
É claro que a simples redução das importações não é suficiente para gerar crescimento; aumenta o emprego e a produção, mas de uma só vez. Para gerar um crescimento sustentado da economia, tem de haver um estímulo exógeno e permanente ao crescimento. O aumento das despesas públicas, se financiado por um déficit orçamentário ou por impostos sobre os ricos, pode proporcionar esse estímulo; mas o capital financeiro globalizado opõe-se normalmente a ambas as formas de financiamento de despesas públicas mais elevadas. Por conseguinte, o principal país metropolitano terá de fazer muito mais do que apenas proteger a sua economia contra as importações para ultrapassar a crise.
Prabhat Patnaik é economista indiano
Fonte(s) / Referência(s):
Gostou do conteúdo?
Clique aqui para receber matérias e artigos da AEPET em primeira mão pelo Telegram.