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As ameaças tarifárias de Trump podem desestabilizar a economia global
As políticas protecionistas de Trump ameaçam desequilibrar radicalmente a balança de pagamentos e as taxas de câmbio em todo o mundo
Na década de 1940, foi lançada [nos EUA] uma série de filmes com Bing Crosby e Bob Hope, começando com Road to Singapore em 1940. O enredo era sempre similar. Bing e Bob, dois golpistas falantes e rápidos ou parceiros de dança e música, se encontravam em apuros em algum país, e Bing sempre dava um jeito de sair dessa, vendendo Bob como escravo (em Marrocos, em 1942, onde Bing promete comprá-lo de volta) ou comprometendo-o a ser sacrificado em alguma cerimônia pagã, e assim por diante. Bob sempre concordava com o plano, e sempre havia um final feliz de Hollywood, onde os dois escapavam juntos – com Bing sempre ficando com a garota.Nos últimos anos, vimos uma série de encenações diplomáticas semelhantes entre os Estados Unidos e a Alemanha (representando a Europa como um todo). Poderíamos chamá-las de Road to Chaos (Caminho para o Caos). Os Estados Unidos venderam a Alemanha ao destruir o Nord Stream, com o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz (o personagem desastrado de Bob Hope), concordando com isso, e com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, interpretando o papel de Dorothy Lamour (a garota, sendo o prêmio de Bing nos filmes da Road), exigindo que toda a Europa aumente os seus gastos militares com a OTAN além da exigência de Biden de 2%, para uma escalada de Trump para 5%. Para piorar a situação, a Europa deverá impor sanções ao comércio com a Rússia e a China, obrigando-as a realocar suas principais indústrias nos Estados Unidos.
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Portanto, ao contrário dos filmes, isso não terminará com os Estados Unidos correndo para salvar a Alemanha ingênua. Em vez disso, a Alemanha e a Europa como um todo se tornarão ofertas sacrificiais no desesperado, mas fútil, para salvar o Império dos Estados Unidos. Embora a Alemanha talvez não termine imediatamente com uma população emigrante e em diminuição, como a Ucrânia, a sua destruição industrial já está em andamento.
Trump disse ao Fórum Econômico de Davos, em 23 de janeiro: “Minha mensagem para todos os negócios do mundo é muito simples: Venham fabricar seus produtos nos EUA e nós lhes daremos alguns dos impostos mais baixos de qualquer nação na Terra.” Caso contrário, se continuarem tentando produzir em casa ou em outros países, seus produtos serão taxados com tarifas ameaçadas de 20%.
Para a Alemanha, isso significa (minha paráfrase): “Desculpem, mas os preços de energia de vocês quadruplicaram. Venham para os EUA e terão preços quase tão baixos quanto pagavam à Rússia antes que seus líderes eleitos nos deixassem cortar o Nord Stream.”
A grande questão é quantos outros países serão tão submissos quanto a Alemanha enquanto Trump muda as regras do jogo: a Ordem Baseada em Regras dos Estados Unidos. Em que momento uma massa crítica será alcançada e mudará a ordem mundial como um todo?
Pode haver um final feliz de Hollywood para o caos que se aproxima? A resposta é não, e a chave está no efeito sobre a balança de pagamentos das tarifas e sanções comerciais ameaçadas por Trump. Nem Trump nem os seus conselheiros econômicos entendem o dano que a sua política está ameaçando causar ao desequilibrar radicalmente a balança de pagamentos e as taxas de câmbio em todo o mundo, tornando inevitável uma ruptura financeira.
A restrição da balança de pagamentos e a agressão tarifária de Trump
Os primeiros dois países que Trump ameaçou foram os parceiros dos EUA no acordo de NAFTA: México e Canadá. Trump ameaçou aumentar as tarifas dos EUA sobre as importações desses dois países em 20% caso não obedeçam às suas exigências políticas.
Ele ameaçou o México de duas maneiras. Primeiro, o seu programa de exportação de imigrantes ilegais e permissão de vistos de trabalho temporários para a mão de obra mexicana sazonal trabalhar na agricultura nos EUA e em serviços domésticos.
Ele sugeriu deportar a onda de imigração latino-americana para o México, alegando que a maioria veio para os Estados Unidos pela fronteira mexicana ao longo do Rio Grande. Isso ameaça impor um enorme custo social para o México, que não possui um muro em sua própria fronteira sul.
Há também um grande custo na balança de pagamentos para o México, e de fato para outros países cujos cidadãos procuraram trabalho nos Estados Unidos. Uma fonte importante de dólares para esses países tem sido o dinheiro enviado por trabalhadores que mandam o que podem de volta para as suas famílias. Isso é uma fonte importante de dólares para as famílias na América Latina. Deportar imigrantes removerá uma fonte substancial de receita que tem sustentado as taxas de câmbio de suas moedas em relação ao dólar.
Impor uma tarifa de 20% ou outras barreiras comerciais sobre o México e outros países seria um golpe fatal para as suas taxas de câmbio ao reduzir o comércio de exportação que a política dos EUA promoveu desde o governo Carter para promover a terceirização do emprego nos EUA, utilizando a mão de obra mexicana para manter os salários americanos baixos.
A criação do NAFTA sob Bill Clinton levou a uma longa fila de fábricas maquiadoras logo ao sul da fronteira EUA-México, empregando mão de obra mexicana de baixo custo em linhas de montagem montadas por empresas dos EUA para economizar nos custos com mão de obra. Tarifas privariam abruptamente o México dos dólares recebidos para pagar os pesos a essa força de trabalho, além de aumentar os custos para as suas empresas-mãe nos EUA.
O resultado dessas duas políticas de Trump seria uma queda na fonte de dólares do México. Isso forçaria o México a tomar uma decisão: Se aceitar passivamente essas condições, a taxa de câmbio do peso se depreciará. Isso tornará as importações (precificadas em dólares a nível mundial) mais caras em termos de pesos, o que levará a um salto substancial na inflação doméstica.
Alternativamente, o México pode colocar a sua economia em primeiro lugar e afirmar que a interrupção do comércio e dos pagamentos causada pela ação tarifária de Trump o impede de pagar as suas dívidas em dólares aos detentores de títulos.
Em 1982, o default do México em seus títulos tesobono denominados em dólares desencadeou a bomba da dívida da América Latina. As ações de Trump parecem estar forçando uma reprise disso. Nesse caso, a resposta compensatória do México seria suspender o pagamento dos seus títulos em dólares dos EUA.
Isso pode ter efeitos de longo alcance, porque muitos outros países da América Latina e do Sul Global estão passando por pressões semelhantes nas suas balanças de comércio e pagamentos internacionais. A taxa de câmbio do dólar já tem subido contra as suas moedas como resultado do aumento das taxas de juros pelo Federal Reserve [banco central dos EUA], atraindo fundos de investimento da Europa e de outros países. Um dólar em alta significa preços mais altos para importações de petróleo e matérias-primas denominadas em dólares.
O Canadá enfrenta uma pressão semelhante na balança de pagamentos. Seu equivalente às plantas maquiadoras do México são as suas fábricas de autopeças em Windsor, do outro lado do rio de Detroit. Na década de 1970, os dois países concordaram com o Auto Pact, alocando quais plantas de montagem trabalhariam na produção conjunta de automóveis e caminhões dos EUA.
Bem, “concordaram” pode não ser o verbo apropriado. Eu estava em Ottawa na época, e os funcionários do governo canadense estavam muito ressentidos por terem sido designados para a parte mais desfavorável do acordo automotivo. Mas ele ainda está em vigor hoje, 50 anos depois, e continua sendo uma grande contribuição para o balanço comercial do Canadá e, portanto, para a taxa de câmbio do seu dólar, que já tem caído em relação ao dólar dos EUA.
Claro, o Canadá não é o México. A ideia de suspender o pagamento dos seus títulos em dólares é impensável, em um país amplamente administrado por seus bancos e interesses financeiros. Mas as consequências políticas serão sentidas em toda a política canadense. Haverá um sentimento anti-estadunidense (sempre fervendo sob a superfície no Canadá) que deverá pôr fim à fantasia de Trump de fazer do Canadá o 51º estado dos EUA.
Os fundamentos morais implícitos da ordem econômica internacional
Há um princípio moral ilusório básico em ação nas ameaças de tarifas e comércio de Trump, que fundamenta a narrativa ampla pela qual os Estados Unidos procuraram racionalizar a sua dominação unipolar da economia mundial. Esse princípio é a ilusão de reciprocidade, que sustenta uma distribuição mútua de benefícios e crescimento – e, no vocabulário estadunidense, está envolto em valores democráticos e falácias sobre mercados livres, prometendo estabilizadores automáticos sob o sistema internacional patrocinado pelos EUA.
Os princípios de reciprocidade e estabilidade foram centrais para os argumentos econômicos feitos por John Maynard Keynes durante o debate no final da década de 1920, sobre a insistência dos EUA para que os seus aliados europeus na guerra pagassem pesadas dívidas pelas armas compradas dos Estados Unidos antes de sua entrada formal na Primeira Guerra Mundial.
Os aliados concordaram em pagar, impondo reparações à Alemanha e transferindo o custo para o perdedor da guerra. Mas as exigências dos Estados Unidos sobre os seus aliados europeus, e por sua vez sobre a Alemanha, estavam muito além da capacidade de serem atendidas.
O problema fundamental, explicou Keynes, era que os Estados Unidos estavam aumentando as suas tarifas contra a Alemanha em resposta à desvalorização da sua moeda, e então impuseram a tarifa Smoot-Hawley contra o resto do mundo. Isso impediu a Alemanha de ganhar a moeda forte para pagar os aliados e para que eles pagassem os EUA.
Para que o sistema financeiro internacional de serviço da dívida funcionasse, Keynes salientou, uma nação credora tem a obrigação de fornecer aos países devedores a oportunidade de levantar dinheiro para pagar, exportando para a nação credora. Caso contrário, haverá colapso cambial e austeridade paralisante para os devedores.
Este princípio básico deveria estar no cerne de qualquer projeto de como a economia internacional deve ser organizada, com checks and balances para prevenir tal colapso.
Os opositores de Keynes – como o monetarista francês anti-alemão Jacques Rueff e o defensor do comércio neoclássico Bertil Ohlin – repetiram o mesmo argumento que David Ricardo apresentou em seu depoimento de 1809-1810 diante do Comitê de Bullion da Grã-Bretanha. Ele afirmou que o pagamento de dívidas externas cria automaticamente um equilíbrio nos pagamentos internacionais. Esta teoria econômica descartável forneceu uma lógica que permanece como o modelo básico de austeridade do FMI até hoje.
De acordo com a fantasia dessa teoria, quando o pagamento do serviço da dívida reduz preços e salários no país devedor, isso aumentará suas exportações ao torná-las menos caras para os estrangeiros. E, supostamente, a recepção do serviço da dívida pelas nações credoras será monetizada para aumentar os seus próprios preços (segundo a Teoria Quantitativa da Moeda), reduzindo assim as suas exportações.
Essa mudança de preços deveria continuar até que o país devedor, sofrendo uma saída monetária e austeridade, fosse capaz de exportar o suficiente para pagar os seus credores estrangeiros.
Mas os Estados Unidos não permitiram que as importações estrangeiras competissem com os seus próprios produtores. E, para os devedores, o preço da austeridade monetária não era mais produção exportadora competitiva, mas disrupção econômica e caos.
O modelo de Ricardo e a teoria neoclássica dos EUA eram simplesmente uma desculpa para uma política de credor linha-dura. Os ajustes estruturais ou a austeridade foram devastadores para as economias e governos sobre os quais foram impostos. A austeridade reduz a produtividade e a produção.
Em 1944, quando Keynes tentava resistir à demanda dos EUA por subordinação ao comércio externo e à moeda na conferência de Bretton Woods, ele propôs o Bancor, um arranjo intergovernamental de balanço de pagamentos, que pedia que as nações credoras crônicas (nomeadamente os EUA) perdessem a sua acumulação de reivindicações financeiras sobre os países devedores (como a Grã-Bretanha se tornaria).
Esse seria o preço a ser pago para evitar que a ordem financeira internacional polarizasse o mundo entre países credores e devedores. Os credores teriam que permitir que os devedores pagassem ou perderiam as suas reivindicações financeiras de pagamento.
Keynes também enfatizou que, se os credores querem ser pagos, precisam importar dos países devedores para lhes fornecer a capacidade de pagar.
Esta era uma política profundamente moral, e tinha o benefício adicional de fazer sentido econômico. Ela permitiria que ambas as partes prosperassem, em vez de ter uma nação credora prosperando enquanto os países devedores sucumbiam à austeridade, impedindo-os de investir, modernizar e desenvolver as suas economias, aumentando os gastos sociais e os padrões de vida.
Sob Donald Trump, os Estados Unidos estão violando esse princípio. Não há um arranjo do tipo Bancor de Keynes em vigor, mas existem as duras realidades do "America First" [Primeiro os EUA] na sua diplomacia unipolar.
Se o México quiser salvar a sua economia de ser mergulhada em austeridade, inflação de preços, desemprego e caos social, terá que suspender os seus pagamentos sobre dívidas externas denominadas em dólares.
O mesmo princípio se aplica a outros países do Sul Global. E, se agirem juntos, terão uma posição moral para criar uma narrativa realista e até inevitável sobre as condições prévias para que qualquer ordem econômica internacional estável funcione.
Assim, as circunstâncias estão forçando o mundo a romper com a ordem financeira centrada nos EUA. A taxa de câmbio do dólar dos EUA vai disparar no curto prazo, como resultado da imposição de tarifas e sanções comerciais por Trump.
Essa mudança na taxa de câmbio irá pressionar os países estrangeiros com dívidas em dólares da mesma forma que o México e o Canadá estão sendo pressionados. Para se protegerem, eles devem suspender o serviço da dívida em dólares.
Essa resposta ao atual fardo da dívida não se baseia no conceito de dívidas odiosas. Ela vai além da crítica de que muitas dessas dívidas e seus termos de pagamento não estavam no interesse dos países sobre os quais essas dívidas foram impostas em primeiro lugar. Ela vai além da crítica de que os credores devem ter alguma responsabilidade ao julgar a capacidade de seus devedores de pagar – ou sofrer perdas financeiras se não o fizerem.
O problema político do excesso de dívidas em dólares no mundo é que os Estados Unidos estão agindo de uma maneira que impede os países devedores de ganharem o dinheiro para pagar dívidas externas denominadas em dólares americanos.
A política dos EUA, assim, representa uma ameaça a todos os credores que denominam as suas dívidas em dólares, tornando essas dívidas praticamente impagáveis sem destruir suas próprias economias.
A suposição da política dos EUA de que outros países não responderão à sua agressão econômica
Trump realmente sabe o que está fazendo? Ou a sua política desgovernada está simplesmente causando danos colaterais para outros países?
Eu penso que o que está em jogo é uma contradição interna profunda e básica da política dos EUA, semelhante à diplomacia dos EUA na década de 1920. Quando Trump prometeu aos seus eleitores que os Estados Unidos deveriam ser o "vencedor" em qualquer acordo internacional de comércio ou finanças, ele está declarando guerra econômica ao resto do mundo.
Trump está dizendo ao resto do mundo que eles devem ser perdedores – e aceitar esse fato com graça como pagamento pela proteção militar que os EUA fornecem ao mundo, caso a Rússia possa invadir a Europa ou a China envie o seu exército para Taiwan, Japão ou outros lugares.
A fantasia é de que a Rússia teria algo a ganhar ao ter que apoiar uma economia europeia em colapso, ou que a China decidiria competir militarmente em vez de economicamente.
A arrogância está em ação nesta fantasia distópica. Enquanto o hegemônico mundial, a diplomacia dos EUA raramente leva em consideração como os países estrangeiros responderão. A essência da sua arrogância é assumir simplificadamente que os países se submeterão passivamente às ações dos EUA sem qualquer retaliação. Isso tem sido uma suposição realista para países como a Alemanha, ou aqueles com políticos-clientes dos EUA no poder.
Mas o que está acontecendo hoje tem um caráter sistêmico. Em 1931, foi finalmente declarada uma moratória sobre as dívidas inter-aliadas e as reparações da Alemanha. Mas isso aconteceu dois anos após a crise da bolsa de 1929 e as hiperinflações anteriores na Alemanha e na França.
De maneira semelhante, na década de 1980, as dívidas da América Latina foram reduzidas por meio dos títulos Brady. Em ambos os casos, as finanças internacionais foram a chave para o colapso político e militar geral do sistema, porque a economia mundial havia se tornado financeiramente auto-destrutiva.
Algo semelhante parece inevitável hoje. Qualquer alternativa viável envolve a criação de um novo sistema econômico mundial.
A política interna dos EUA também é igualmente instável. O teatro político do “America First” de Trump, que o elegeu, pode acabar levando a sua gangue a ser derrubada, à medida que as contradições e consequências da sua filosofia operacional sejam reconhecidas e substituídas.
A sua política tarifária acelerará a inflação de preços nos EUA e, ainda mais fatalmente, causará o caos nos mercados financeiros dos EUA e no exterior. As cadeias de suprimento serão interrompidas, interrompendo as exportações dos EUA de tudo, desde aeronaves até tecnologia da informação. E outros países se verão obrigados a tornar as suas economias independentes das exportações dos EUA ou do crédito em dólares.
Talvez, sob uma perspectiva de longo prazo, isso não seja algo ruim. O problema é no curto prazo, à medida que as cadeias de suprimento, os padrões comerciais e a dependência sejam substituídos como parte da nova ordem econômica geopolítica que a política dos EUA está forçando outros países a desenvolver.
Trump baseia a sua tentativa de romper os vínculos e a reciprocidade do comércio e finanças internacionais na suposição de que, em uma bagunça caótica, os EUA sairão por cima. Essa confiança fundamenta a sua disposição de retirar as interconexões geopolíticas de hoje.
Ele pensa que a economia dos EUA é como um buraco negro cósmico, ou seja, um centro de gravidade capaz de atrair todo o dinheiro e o excedente econômico do mundo para si. Esse é o objetivo explícito do America First. Isso é o que torna o programa de Trump uma declaração de guerra econômica ao resto do mundo.
Não há mais uma promessa de que a ordem econômica patrocinada pela diplomacia dos EUA fará os outros países prósperos. Os ganhos do comércio e do investimento estrangeiro devem ser enviados para os EUA e concentrados lá.
O problema vai além de Trump. Ele está simplesmente seguindo o que já estava implícito na política dos EUA desde 1945.
A auto-imagem dos EUA é que eles são é a única economia do mundo que pode ser completamente autossuficiente economicamente. Eles produzem a sua própria energia, também a sua própria comida, e fornecem essas necessidades básicas para outros países, ou têm a capacidade de fechar a torneira.
Mais importante ainda, os Estados Unidos são a única economia sem as restrições financeiras que limitam outros países. A dívida dos EUA está na sua própria moeda, e não houve limite para sua capacidade de gastar além de suas possibilidades, inundando o mundo com dólares em excesso - que outros países aceitam como suas reservas monetárias, como se o dólar fosse ainda tão bom quanto o ouro.
Por trás de tudo isso está a suposição de que, quase com o estalar de dedos, os Estados Unidos podem se tornar tão industrialmente autossuficientes quanto eram em 1945. Os EUA são o Blanche duBois do mundo, em Um Bonde Chamado Desejo de Tennessee Williams, vivendo no passado, mas sem envelhecer bem.
A narrativa neoliberal auto-servil do império estadunidense
Para obter a concordância estrangeira em aceitar um império e viver pacificamente nele, é necessária uma narrativa reconfortante para retratar o império como se estivesse puxando todos para frente. O objetivo é distrair os outros países de resistirem a um sistema que na verdade é exploratório.
Primeiro a Grã-Bretanha e depois os Estados Unidos promoveram a ideologia do imperialismo do livre-comércio, depois que as suas políticas mercantilistas e protecionistas lhes deram uma vantagem de custo sobre outros países, transformando esses países em satélites comerciais e financeiros.
Trump retirou essa cortina ideológica. Parte disso é simplesmente o reconhecimento de que esta não pode mais ser mantida diante da política externa dos EUA-NATO e da sua guerra militar e econômica contra a Rússia e as sanções contra o comércio com a China, Rússia, Irã e outros membros dos BRICS.
Seria uma loucura para outros países não rejeitarem esse sistema, agora que a sua narrativa capacitadora é falsa para todos verem.
A questão é: como eles serão capazes de se colocar em uma posição para criar uma ordem mundial alternativa? Qual é a provável trajetória?
Países como o México realmente não têm muita escolha a não ser seguir sozinhos. O Canadá pode sucumbir, deixando o seu câmbio cair e os seus preços domésticos subirem à medida que as suas importações são denominadas em dólares de "moeda forte".
Mas muitos países do Sul Global estão sob a mesma pressão sobre a balança de pagamentos que o México. E, a menos que tenham elites-clientes como a Argentina – cujas elites são grandes detentoras dos títulos em dólares da Argentina – os seus líderes políticos terão que interromper os pagamentos da dívida ou sofrer uma austeridade interna (deflação da economia local), acompanhada de inflação dos preços das importações à medida que as taxas de câmbio das suas moedas cedem sob as tensões impostas por um dólar estadunidense em ascensão. Eles terão que suspender o serviço da dívida ou então serão destituídos do cargo.
Não são muitos os políticos de destaque que têm a liberdade de ação que tem a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, ao dizer que o seu Partido Verde não precisa ouvir o que os eleitores alemães dizem que querem. As oligarquias do Sul Global podem contar com o apoio dos EUA, mas a Alemanha certamente é uma exceção, quando se trata de estar disposta a cometer suicídio econômico por lealdade à política externa sem limites dos EUA.
Suspender o serviço da dívida é menos destrutivo do que continuar a sucumbir à ordem do America First de Trump. O que bloqueia essa política é político, junto com o medo dos centristas de embarcarem na grande mudança de política necessária para evitar a polarização econômica e austeridade.
A Europa parece com medo de usar a opção de simplesmente desafiar o truque de Trump, apesar de ser uma ameaça vazia que seria bloqueada pelos próprios interesses dos EUA entre a classe de doadores.
Trump declarou que, se outros membros da OTAN não concordarem em gastar 5% do seu PIB em armamentos militares (principalmente dos Estados Unidos) e a comprarem mais gás natural liquefeito dos EUA, ele imporá tarifas de 20% sobre eles.
Mas se os líderes europeus não resistirem, o euro cairá talvez 10-20%. Os preços domésticos subirão, e os orçamentos nacionais terão que cortar programas de gasto social, como apoio às famílias para comprar gás ou eletricidade mais caros para aquecer e alimentar as suas casas.
Os líderes neoliberais dos EUA saudam esta fase de guerra de classes nas exigências dos EUA sobre os governos estrangeiros. A diplomacia dos EUA tem sido ativa em enfraquecer tão profundamente a liderança política dos partidos trabalhistas e sociais-democratas na Europa e outros países que já não parece importar o que os eleitores querem.
É para isso que serve a National Endowment for Democracy (NED) dos EUA, junto com a sua mídia mainstream.
Mas o que está sendo abalado não é apenas a dominação unipolar dos EUA no Ocidente e a sua esfera de influência, mas a estrutura mundial do comércio internacional e das relações financeiras – e inevitavelmente, também as relações militares e alianças.
Originalmente publicado pelo Geopolitical Economy Report em 26 de janeiro de 2025
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