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Roberto Requião

As tentações da conciliação

Terceiro artigo da série "E agora, Brasil?", do ex-governador do Paraná, Roberto Requião

Publicado em 21/03/2023
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Nós, à esquerda, no centro, progressistas, nacionalistas, socialistas, sociais-democratas da velha cepa, mulheres e homens humanistas temos, às vezes, certo constrangimento em falar das classes sociais, dos interesses de classes. O outro lado, não.  O espírito de classe dos dominantes é agudíssimo. O que, vez ou outra, atrapalha-os e os leva a exageros e bisonhices são a truculência, a incivilidade, a ignorância córnea, a ganância desmesurada, a imbecilidade dos cultores do pato amarelo.

Talvez por causa dessa falta de convicção sobre a divisão da sociedade em interesses que se opõem, antagônicos, cedemos com frequência ao impulso da conciliação, do pacto de classes.

Agora, por exemplo, neste exato momento, parece haver um movimento sutil, piscadelas do lado de lá para o lado de cá, para que  se busquem convergências, na perspectiva deste governo soçobrar ou quando ele não for mais útil para a frente de interesses  que o elegeu e sustentá-lo- e às suas esquisitices tornar-se mais prejudicial que as vantagens que possa  gerar.

A continuar essa esbórnia, haverá de chegar um momento em que os setores mais atilados e menos broncos da reunião de propósitos que elegeram o tal não vão querer correr mais riscos. É uma farsa que se repete ciclicamente e, intermitentemente, sempre há quem, do nosso lado, que se disponha subir ao palco e prestar-se a coadjuvante da encenação.

Mas que convergências temos com os golpistas de 2016, com os fomentadores e financiadores do ex-capitão? Com os que, em pouco menos de três anos, desmantelaram o Brasil?

Nessa barafunda toda, nessa voragem destruidora do neoliberalismo, do arrivismo, dos milicianos ouviu-se do lado de lá alguma voz, digamos, mais sensata?

A mídia empresarial, que domina o mercado de opinião, por um momento fugidio que fosse, abriu espaço para o contraditório?

A reforma trabalhista, a fixação de um teto de gastos, o encolhimento de recursos à educação, saúde, saneamento, habitação e agora a reforma da Previdência que tira mais um pedaço do lombo lanhado dos brasileiros; a desindustrialização e  a desnacionalização da nossa economia; a entrega do petróleo, das terras, do ar e do  mar territorial; o desemprego e o avanço da pobreza; a violência que mata mais de 65 mil brasileiros anualmente, quase todos negros de tão pobres; a desfaçatez dos donos da dívida interna, a voracidade dos rentistas; os lucros dos bancos.

Diante disso tudo, alguma voz discordante no camarote dos donos da festa? Alguma manifestação de solidariedade ou mesmo alguma esmola que fosse (figurativamente, diga-se) para minorar a dor dos trabalhadores, dos mais pobres, do empresariado nacional produtivo?

Então, conciliar o quê e com quem?

Há ainda quem busque ou sugira que se busque contato com os militares. Pois é, temos agora vivandeiras à esquerda que anseiam por um golpe a favor. Conversar com quem nos quarteis? Se Villas Boas, Heleno, Mourão são as referências, estamos ferrados.

É preciso que se relembre, e ainda mil vezes volte a se lembrar, no que deu o último grande pacto que, a duras penas, a fórceps, com sofrimentos, teimosia e paciência celebrou-se há 31 anos, há apenas três décadas: a Constituição Cidadã de 1988.

Foi a nossa primeira Carta democrática e civilizadora, que passou a incluir no universo da Lei Magna os trabalhadores, os mais pobres, os desvalidos, as mulheres, as crianças, os mais velhos, os cuidados com a saúde e a educação de nosso povo, a empresa nacional, a soberania e o desenvolvimento nacional.  Exaustivamente negociada com os representantes das classes dominantes, a Constituição de 88 parecia representar um marco, o partir do qual o país iria se lançar com força em direção à modernidade, a relações econômicas, políticas e sociais avançadas, humanizadas. Só que não.

A nossa burguesia -ou o que isso represente- nunca se conformou com o conteúdo progressista e nacionalista da Constituição. E a sabotagem começou no momento seguinte à sua promulgação, quando deixaram ser regulamentados itens fundamentais para que a Constituição fosse de fato Cidadã.

E agora, depois do golpe de 2016 e com a eleição do dito cujo a Carta desfigura-se intensivamente. O pacto foi picotado e jogado no lixo.
Então, senhoras e senhores que se adiantam e falam e sugerem uma frente única que apinhe no saco todos os gatos, inclusive os pardos, então, vamos conciliar, ajustar, acordar o quê com essa gente?
Por exemplo, o que vamos combinar com os bancos, com o mercado financeiro, com os rentistas, com as 20 mil famílias de agiotas que mantém o país de joelhos?

Uma coisa que sempre me encafifou foi essa fissuração de alguns luminares da esquerda ou do centro ou -em hipótese- progressistas, especialmente quando se candidatam à Presidência da República, com o mercado financeiro, com os banqueiros. Por que pedir benção ao satanás, ao senhor de nossas desgraças mais desgraçadas?

Em 1982, Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, Luciano Coutinho, João Manoel Cardoso de Mello, Luís Gonzaga Belluzzo elaboraram o documento “Esperança e Mudança”, assumido pelo PMDB como uma proposta de governo para o Brasil.

Nenhum outro partido político conseguiu, nesses 37 anos, produzir algo que se assemelhasse ao “Esperança e Mudança”. E vejam só: ao contrário de todos as propostas de governo que se seguiram, especialmente as de partidos ditos à esquerda, de esquerda, do centro, social democrata e afins, o documento de 1982 dá uma solene banana para o mercado, como destacou o cientista político Antônio Lassance em um texto para a revista do Ipea, por ocasião do 30º aniversário do documento.

Aquela proposta de governo não pede vênias ao mercado, não toma o seu pulso para verificar a temperatura, desconhece se ele está nervoso, agitado ou com dor de barriga.

Essa ideia de agradar o mercado, de conciliar com o mercado vem depois, quando a esquerda passou a escrever cartinhas dizendo que era boazinha, que não era o bicho papão, e pedia licença para ganhar uma eleição. E o mercado transformou-se no bovino intangível, tratado com mesuras, afagos e promessas de bom comportamento.

Por mais que se acenda outra vela ao povo, a tocha esbraseada para o mercado haverá de se sobrepor a todas as concessões a esse povo; embora, reconheça-se, três refeições diárias, casa, médico, escola, acesso ao consumo, chegada à universidade, cidadania, enfim (ou até mesmo andar de avião) representassem um grande avanço para um país ainda espiritualmente (e não só) escravocrata e possuidor da elite mais tacanha, cruel, impiedosa e ignorante sob a face de terra (caso não detenha esse título é uma competidora de respeito).

Firme-se e reafirme-se: o capital financeiro é o inimigo inconciliável, assim como os círculos de interesses que ele ecoa.

Pergunte-se ainda: por que à volta e meia da nossa história, à cada crise significativa erguem-se vozes clamando por união nacional, frente ampla, quando não vacuidões tipo “união dos patriotas” onde cabe de tudo, do padre ao dono do bordel?

Não é apenas porque somos fracos, sem força política, sem liderança, desorganizados, divididos. Isso conta, é ponderável.  Mas não só. Caso tivéssemos um projeto de poder (e um programa de governo), tática e estrategicamente bem definido, não tenderíamos às marias que vão com as outras a cada bulha conjuntural.

Se não sabemos a que porto chegar e se não arrolharmos os nossos ouvidos para encantos dos conciliábulos indecentes, licenciosos vamos continuar navegando às tontas, enquanto a Nação se desfaz e prolonga-se a estada de nosso povo no cativeiro.

Quer dizer: acima de tudo um projeto de poder e um programa de governo correspondente.

A nossa fraqueza e a nossa ineficácia emanam ainda da falta de confiança no povo. Falta de confiança que decorre de nosso afastamento do povo, da distância que nos separa, da nossa arrogância pequeno-burguesa, do nosso espírito putschista, de um vanguardismo suicida, sempre buscando atalhos que prescindam a participação popular, porque é difícil, trabalhoso descer às massas, integrar-se a elas, elevar seu nível de consciência e organização.

E agora? Agora, Brasil, conciliemos com interesses nacionais e populares.  Somente com eles.

 

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