O arcabouço ou a vida
Em um Estado monetariamente soberano, os verdadeiros limites para os gastos são dados pela plena utilização da capacidade produtiva doméstica.
A tragédia do Rio Grande do Sul não é tragédia localizada. É tragédia sistêmica de um país submetido por mais de três décadas a políticas de desmonte do Estado, de privatizações de empresas estratégicas, de disseminação da falácia de que o desenvolvimento pode ser conduzido pelo mercado, de que regras ambientais restringem o agronegócio, de que códigos reguladores são travas à modernização, de que a infraestrutura e decisões de investimento podem ficar nas mãos de oligopólios cujas sedes estão fora do país e de que a política atrapalha decisões que deveriam ser tomadas com base em critérios puramente técnicos.
Com mais de 90% de seus 497 municípios impactados pela fúria natural impulsionada pela ação humana, o Rio Grande viveu caos semelhante há poucos meses e viverá novos, pois as condições objetivas de devastação ambiental e alucinação privatista não mudaram. Qual a segurança para a indústria, para o comércio e para a realização de investimentos numa região que, a qualquer momento, pode enfrentar novamente uma hecatombe como a atual? Quanto custará, em termos materiais e humanos, reconstruir um estado com 11 milhões de habitantes, quarto maior PIB da Federação, larga história e definidor da vida nacional nos últimos dois séculos? Até aqui não existe a menor ideia do que deverá ser feito para reorganizar política, econômica e socialmente a região.
Os arautos do "mercado acima de tudo, iniciativa privada acima de todos" estão subitamente mudos, talvez à espera que as águas e as atenções baixem. Uma reconstrução com a liderança do mercado resultará em exacerbação de desequilíbrios regionais e sociais e visará inflar as arcas de especuladores.
Não nos esqueçamos que a assim chamada reconstrução do Iraque, após a invasão estadunidense de 2003, resultou em gordos ganhos por parte de empreiteiras e petroleiras que privatizaram quase tudo no país.
Mais uma vez, nas horas de crise, é o poder público o agente essencial da retomada. Durante a pandemia, vimos em todo o mundo que foram os Estados que socorreram empresas, bancos e famílias, destruindo o mito da inexistência de dinheiro e mobilizando plenamente os recursos disponíveis. Naquele momento, foram aplicadas as velhas lições de Keynes, mostrando que, em tempos de crise, a intervenção estatal é indispensável para se evitar o colapso econômico.
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Em um Estado monetariamente soberano, os verdadeiros limites para os gastos são dados pela plena utilização da capacidade produtiva doméstica. Restrições fiscais que deixam ociosos recursos que deveriam ser mobilizados para a reconstrução, para a prevenção de novos desastres e para a mitigação de mazelas sociais e ambientais são, além de autoimpostas, humanamente e ambientalmente inaceitáveis.
Planos ousados de investimentos por parte do poder público são incompatíveis com medidas do arcabouço fiscal, tão ao gosto da Faria Lima. Não é à toa que, ao mesmo tempo em que se anunciam verbas extraordinárias para o Sul, vozes do financismo multiplicam-se em editoriais, entrevistas e lobbies, alardeando o pior dos mundos caso a "gastança" não seja contida.
O pior dos mundos é o aqui e o agora, caso se bloqueiem grandiosos e contínuos investimentos públicos para socorrer a região e buscar uma transformação no modelo de desenvolvimento que traga melhores horizontes ao Brasil. Precisamos de um novo pacto nacional, um New Deal à brasileira. Ao contrário do que proclamava Margaret Thatcher, há duas alternativas aqui: o arcabouço ou a vida.
Gilberto Maringoni - Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
David Deccache - Doutor em economia (UnB), é assessor parlamentar na Câmara dos Deputados
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