O caso Lula: de pretores e de vigiles
Queiram ou não os personagens que estrearam o espetáculo, o julgamento em segunda instância do presidente Lula será apresentado, nos livros d
Queiram ou não os personagens que estrearam o espetáculo, o julgamento em segunda instância do presidente Lula será apresentado, nos livros de história, como um dos mais didáticos, sórdidos e mais bem acabados exemplos de como se procede à mais cínica manipulação da opinião pública, com a estruturação, ao longo do tempo, de uma série de mitos e inverdades e a construção, peça a peça, de um castelo de cartas que não se sustenta pela busca do equilíbrio para a superação da gravidade, mas no mais imoral aproveitamento do ódio, da hipocrisia e da mentira para a distorção do direito e da realidade com objetivos claramente políticos.
Como se sabe, desde quando foi inventado na China, junto com o papel, ou - há controvérsias - pelos árabes, séculos mais tarde (quem sabe como uma evolução pertencente ao legado cultural dos antigos egípcios) o baralho não serve apenas para o jogo, e – como acontece com o Tarot – para a interpretação e adivinhação do destino.
Essa invenção lúdica, gráfica, tátil, também se presta, em momentos de recolhimento, solidão ou devaneio, à construção de delicadas estruturas que, por desafiar perigosamente as leis da física, costumam ter – como uma bolha de sabão ao vento - uma existência - e uma consistência - tão frágil quanto efêmera.
As raízes do resultado do julgamento do Presidente Lula, com uma sentença já anunciada, da qual até as pedras já tinham há meses conhecimento, são tão fracas, moralmente, quanto cartas de baralho montadas umas sobre as outras diante uma janela aberta.
Elas devem ser procuradas nas fantasias jurisprudenciais do julgamento do mensalão e nas suas filhas diletas, as famigeradas jornadas de junho de 2013, que abriram as portas para a consolidação da degeneração do arcabouço jurídico brasileiro, da própria governabilidade e da Democracia, e para a emersão do fascismo, do canal fétido do esgoto da História ao qual havia sido degredado pelas memoráveis campanhas da redemocratização da década de 1980, ao primeiro plano do panorama político brasileiro.
O castelo montado pelos desembargadores para a condenação de Lula, com o evidente intuito de impedir a sua candidatura à presidência da República, repetem as fantasias jurídicas que foram enfiadas goela abaixo da sociedade brasileira no julgamento da AP 470, mas que não tiveram, naquele momento, força suficiente para contribuir decisivamente para a derrubada do Presidente da República.
A base da estapafúrdia torre de cartas montada pela turma de desembargadores do TRF-4, parte de uma série de acusações no atacado, quase genéricas, para uma absurda, evidente, descarada, criminalização da atividade política, do pleno exercício do mandato de Presidente da República e do regime democrático de presidencialismo de coalizão.
Assim como no caso do “mensalão”, procura-se lançar contra Lula, mais uma vez, os fedorentos eflúvios da malfadada teoria do Domínio do Fato, por aqui distorcida e retorcida, como já afirmou o seu criador, o jurista alemão Claus Roxin.
Só que, desta vez, o nefasto gênio do mal, apedeuta, sapo barbudo, nine-fingers, cachaceiro, como a ele se referem seus “equilibrados” adversários, não foi acusado apenas de ter conhecimento de crimes cometidos.
Ele teria também, a partir do estabelecimento de uma coalizão política formada para chegar ao poder – como se faz costumeiramente em qualquer democracia – dado origem de forma premeditada e pessoal a uma quadrilha.
Uma perigosíssima ORCRIM que teria como objetivo nomear diretamente bandidos para “assaltar” a Petrobras, por meio da formação de um cartel de empresas de engenharia que devolvia parte do sobrepreço estabelecido nos contratos, em forma de financiamento de campanha para partidos e candidatos e do pagamento de propinas pessoais a corruptos escolhidos.
Para sustentar essa acusação, citam-se afirmações e números genéricos.
Foi criado um “clube”, teria dito um delator“, para o PT era reservado “um por cento de propina”, teria dito outro.
Haveria uma “conta-corrente” informal, segundo um terceiro, mas não se indicam bancos, valores, movimentações.
Fazendo largo uso, em seus votos, os desembargadores, de uma longa lista de dedo-duros e de extratos de seus “depoimentos”.
Ignorando, ou fingindo ignorar, descarada e olimpicamente, o fato de que o Supremo Tribunal Federal já afirmou claramente em mais de uma ocasião que a mera palavra de delatores não serve isoladamente como prova para condenar ninguém.
Especialmente quando, como no caso em pauta, todos os que acusaram o ex-presidente em seu depoimento foram, com certeza, por isso mesmo, generosa e inequivocamente beneficiados pelo Judiciário e o Ministério Público, com a diminuição de suas penas pela “justiça”, como no caso de Leo Pinheiro, de dez para três anos em regime semi-aberto, por exemplo.
A turma do TRF-4 classifica como crime de formação de quadrilha indicações políticas, absolutamente normais, de nomes para ocupar cargos de diretoria e de confiança em empresas, ministérios e autarquias.
Nomeações feitas de comum acordo com partidos, e muitas vezes, com a prévia aprovação de outras instâncias como o Congresso Nacional, e até mesmo de conselhos de administração de empresas mistas, com ações em bolsa, compostos de representantes indicados por seus investidores.
Ora, o que o TRF4 está criminalizando, ao condenar Lula não com provas, mas com um ataque direto a atividades de caráter político-administrativo, são PRERROGATIVAS INERENTES ao cargo de Presidente da República.
Se Sarney nomeava livremente cargos de diretoria, e havia, com autorização da justiça, financiamento privado de campanha para os partidos que o apoiavam devidamente registrado e aprovado pelo TSE.
Se Collor nomeava livremente cargos de diretoria, e havia, com autorização da justiça, financiamento privado de campanha para os partidos que o apoiavam devidamente registrado e aprovado pelo TSE.
Se FHC nomeava livremente cargos de diretoria, e havia, com autorização da justiça, financiamento privado de campanha para os partidos que o apoiavam devidamente registrado e aprovado pelo TSE.
Se todos eles faziam indicações políticas para cargos de primeiro, segundo, terceiro escalão, também na Petrobras e em outras estatais, de comum acordo com partidos a eles coligados e seus partidos sempre foram financiados pelas mesmas empreiteiras envolvidas com a Operação Lavajato, que atendem o mercado brasileiro de obras públicas desde a época do regime militar, e, há 20 anos, os sucessivos governos do PSDB em São Paulo.
Por que no caso de Lula as indicações são automaticamente tratadas como criminosas e as doações de campanha, devidamente registradas à época na Justiça Eleitoral, foram retroativa e automaticamente transformadas pelo Ministério Público e pelo juiz Sérgio Moro em propina, com base apenas na declaração de delatores?
Ao aceitar essas acusações silenciosamente, a Justiça Eleitoral, responsável pela homologação dessas doações à época, a julgar pelas teses da Lavajato, corroboradas pela Segunda Instância de Porto Alegre, não estaria aceitando a hipótese de ter sido conivente, ou no mínimo, passada para trás, durante anos, anteriormente?
Por que Lula está sendo condenado a 12 anos de regime fechado quando outros presidentes antes dele não foram sequer investigados?
Ou tudo isso está acontecendo com o ex-presidente da República porque Lula está sendo acusado – mesmo tendo expandido a economia, o crédito, a agricultura, o PIB, a renda per capita, o salário mínimo e apoiado, por meio do BNDES, algumas das maiores empresas do país nos últimos 15 anos - de “ser comunista”?
Ou por estar disparado na frente nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República?
O que pretendiam o juiz e os procuradores da operação Lavajato e os desembargadores do TRF-4?
Que Lula deixasse de formar uma coalizão para disputar e vencer uma eleição para o governo federal porque poderia ser absurdamente acusado pela criação de uma “organização criminosa”?
Que ele, na Presidência da República, deixasse de governar, ou seja, de negociar com partidos a indicação de cargos para empresas e diretorias, porque correria o risco – também absurdamente – de ser condenado, por causa disso, por formação de quadrilha?
Que ele tivesse, como é o caso das falcatruas de bandidos como Nestor Cerveró, Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef – que já se encontram confortavelmente tomando uísque na poltrona de suas casas por obra e graça da mesma “justiça” que o condenou a 12 anos - conhecimento de tudo o que fazem, cotidianamente, os servidores que ocupam os 757.158 cargos da administração federal ou os mais de 80.000 funcionários da Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima?
Onde estão, perguntamos – e a nação e o mundo também o fazem – as malas de dinheiro e as contas na Suíça do ex-presidente Lula?
Onde está o ato de ofício que ele teria praticado em troca de corrupção?
Foi ele ou foi sua mulher Marisa Letícia, que assinou o contrato de compra das cotas de um apartamento cuja propriedade lhe atribuem agora?
Por que ela, mesmo depois de morta, teve o seu pedido de absolvição negado pelo mesmo tribunal que acaba de condenar Lula, e não pode ter o seu comportamento separado do comportamento do marido, e a mulher de Eduardo Cunha, viva (até demais) que se badalava a tripa forra na Europa e Dubai com os milhões de dólares recebidos de propina por seu conjugue, foi considerada inocente e absolvida pelo mesmo juiz que condenou implacavelmente Lula?
Como pode a “justiça”, a priori, afirmar que as obras e benfeitorias feitas no triplex não seriam integralmente pagas por Marisa Leticia posteriormente, caso tivesse resolvido continuar com o apartamento, a preço de mercado, quando da entrega da escritura ou das chaves, se o negócio tivesse sido definitivamente concluído e a propriedade não tivesse também sido penhorada pela justiça para pagamento de dívidas da construtora/incorporadora?
Ou agora, além de impedir, previamente, a execução de crimes, como a divisão pré-crime da polícia de Los Angeles do filme de ficção científica Minority Report, a “justiça” brasileira passou também a possuir poderes absolutamente divinatórios – acima de qualquer margem de dúvida?
É claro que Lula cometeu erros – alguns deles políticos e estratégicos- nos últimos anos.
Mas nenhum que justificasse a absurda interferência em curso, de fora para dentro, no processo político nacional, voltada para mudar o rumo da História e o destino do país.
O resultado do julgamento do TRF-4, da forma como se deu, oficializa a constatação de que vivemos em um país em que o ódio atropela a justiça e cospe na cara da lei.
O site Conjur ouviu destacados juristas sobre o julgamento.
Vamos às suas considerações:
Lenio Streck, jurista e professor:
O julgamento apenas reforça a tese de que, no Brasil, moral vale mais do que o direito. O relator chegou a ir além do que decidiu Moro. Foi mais morista que Moro. Veja: Moro disse que havia “atos de ofício indeterminados”. Só que o relator disse não ser necessário haver prova de atos de Lula em relação aos contratos mencionados na denúncia. Como explicar isso? Como explicar a incompetência de Moro depois de ter dito que não houve dinheiro da Petrobras envolvido? Ora, a denúncia do MPF cita a Petrobras 423 vezes. A questão: o que é Direito no Brasil? Isso sem falar no uso do domínio de fato. De novo. Minha pergunta: como ensinar direito depois deste julgamento?
Marcelo Turbay Freiria, advogado:
A decisão significou um grande retrocesso jurisprudencial no que se refere ao ato de ofício no crime de corrupção. Enquanto a Suprema Corte Norte americana reformou recentemente, com um debate consistente e sofisticado, justamente um dos precedentes que a sentença de primeiro grau citou para subsidiar a condenação, o Brasil parece preferir soluções simplistas e superficiais.
Sobre a sustentação oral do MPF:
Eduardo Kuntz, advogado:
Ao concluir a sustentação oral valendo-se da "nova premissa" de que é obrigação da defesa provar a sua inocência, infelizmente, demonstra que não existem efetivamente provas. Buscam firmar com indícios crimes que deixam vestígios. A exceção está virando dogma.
Fernando Hideo Lacerda, advogado:
A fala do procurador partiu de uma visão maniqueísta, que enxerga o mundo a partir de uma guerra entre os heróis do sistema de justiça aliado à mídia contra os vilões representados pela defesa e todas as manifestações críticas do mundo acadêmico nacional e internacional. Não há um jurista sério que defenda os fundamentos jurídicos da sentença. Bem por isso, todas as falas da acusação desviaram o foco para a questão ideológica.
No mundo da pós-verdade patrocinada pelo interesse econômico, importam menos os fatos do que as crenças, preconceitos e convicções.
Diante da inexistência de provas, sustenta-se a hipótese acusatória apenas em contratos rasurados irrelevantes, notícia do jornal O Globo e a palavra de um delator informal. Aliás, a verdadeira corrupção é extrair declarações de um corréu que negocia delação premissa, mediante o oferecimento de benefícios ilegais referentes à sua liberdade.
Por sua vez, a Defesa foi clara ao demonstrar a incompetência do juízo de primeira instância, a suspeição do magistrado (que ficou clara pelo incômodo demonstrado na própria sentença pelo juiz), a falta de correlação entre a hipótese acusatória e a versão apresentada na condenação, o cerceamento de defesa diante da proibição de oitiva de Tacla Duran e a absoluta ausência de provas em um processo que começou com uma apresentação de power point.
Diz-se que “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”.
É somente nesse sentido que podemos compreender o desfecho da intervenção do procurador da república, ao citar Fiódor Dostoiévski sobre a existência de "homens de bronze". Se existe alguém que na contemporaneidade deve se lembrar de que todos os homens são de carne, essa classe é composta pelos membros do sistema de justiça !
Bruno Rodrigues, advogado:
Saudar a todos que assistem o julgamento à distância é uma inovação. Isso pode demonstrar uma preocupação com o televisionamento. Penso que os processos criminais não devem se sujeitar a essa exposição pública e, neste caso, a TV Justiça foi um retrocesso em matérias criminais.
Importante destacar que diversos países, dentre eles Portugal, proíbem a divulgação de matéria jornalística até o julgamento por um órgão colegiado
Sobre a tese do desembargador Gebran Neto de que as as provas materiais não são essenciais para constituir o crime de corrupção passiva:
Fernando Hideo Lacerda, advogado:
O ato de ofício não precisa ser praticado, mas isso não significa que ele não precise ser especificado e individualizado. Sempre será preciso que haja ao menos a representação mental de qual seria o ato de ofício.
Sobre a condenação por corrupção:
Ruy Samuel Espíndola, advogado:
A acusação é de que a OAS ofereceu vantagens indevidas a Lula enquanto ele ainda era presidente, mas ele só foi aceitar a oferta em 2014, já quatro anos depois do fim do mandato. Não poderia, portanto, ser condenado por corrupção. No máximo ele teria cometido o crime de advocacia administrativa, descrita no artigo 321 do Código Penal como “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração, valendo-se da qualidade de funcionário”.
Só que a pena para esse crime é de, no máximo, um ano, e a punição já estaria prescrita.
Sobre levar notícias em consideração no conjunto probatório:
Welington Arruda, criminalista:
Os equívocos foram para além dos autos quando, inclusive, o Relator disse ver com ressalvas o uso de notícias como provas, mas que elas serviriam para corroborar as versões e as provas apresentadas nas delações. Em São Paulo, por exemplo, quando um Juízo condenou Oscar Maroni por facilitação à Prostituição com base no Livro da Bruna Surfistinha, o Tribunal de Justiça disse que a fundamentação, naquele caso, o livro, não tinha sido objeto de ampla defesa e contraditório tampouco a autora do livro teria sido arrolada como testemunha e reformou a sentença absolvendo-o.
Imagino que no caso do ex-presidente, as notícias não deveriam ser levadas em consideração, na medida em que estas não transferem propriedades, tampouco têm validade jurídica para embasar ou mesmo corroborar qualquer condenação criminal. Vale lembrar que o aumento da pena do ex-presidente para mais de oito anos para o crime de corrupção passiva só ocorreu para evitar a prescrição retroativa, o que foi extremamente rechaçado pela comunidade jurídica quando o então ministro Joaquim Barbosa fez o mesmo na ação penal 470.”
Voltando ao que interessa:
Aqueles que comemoram, hoje, nas fileiras políticas, a confirmação da kafquiana condenação do ex-presidente da República em segundo turno, deveriam botar – tendo-as ou não – as barbas de molho.
Quem está no banco dos réus e está sendo cassado e condenado não é Lula, mas a Democracia Brasileira e o Estado de Direito.
A consolidação da jurisprudência inquisitorial da Operação Lavajato e do TRF-4, com a sagração de parte da mídia e a pilatista indiferença da Suprema Corte, cuja autoridade tem sido banalmente desafiada até por funcionários subalternos da polícia, poderá colocar sob suspeita, cassar e condenar, no futuro, qualquer representante eleito para o Executivo, pela mera formação de uma coalizão de partidos ou a indicação de funcionários para a ocupaçao de cargos de confiança na administração direta e indireta.
Funcionários com os quais terá de compartilhar a responsabilidade caso venham a cometer qualquer tipo de ilicitude.
A não ser que esse representante eleito tenha um perfil atípico.
Porque, afinal, ao tirar Lula da disputa presidencial, justamente por ele estar à frente nas pesquisas, a “justiça” brasileira, inquisitorial, seletiva e lavajatista, não está apenas celebrando o arbítrio ou consolidando o casuísmo.
Ela pode estar também ajudando a entregar, conscientemente - e disso se arrependerá no futuro - o país ao fascismo nas próximas eleições.
É preciso lembrar que o poder de fato, em países que se contam entre os que mais matam no mundo, com uma estrutura jurídica frouxa, primitiva, como a nossa – totalmente incapaz de defender a democracia - é exercido por quem tem as armas nas mãos, e não a balança – desequilibrada e torta - dos últimos tempos.
E as armas não estão com os pretores, senhores.
Elas estão nas mãos dos vigiles e dos centuriões, que em sua maioria já têm candidato – justamente aquele que será mais beneficiado pela surreal condenação de Lula no TRF-4 – para a presidência da República de 2018.
Fonte: blog do autor
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