Sobre a socialização do capital
O que se observa agora é o capitalismo financeirizado, em que domina a lógica D – D’, lógica que subsumiu em si a lógica própria do capital industrial
É bem sabido que Karl Marx, já em meados do século XIX, contemplou o processo de socialização do capital, ou seja, a superação da forma “capital privado” pela forma “capital social”. No primeiro caso, a empresa capitalista típica figura como propriedade de certos indivíduos – personificações –, os quais se comportam como capitalistas industriais e/ou comerciais.
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Mas essa forma, em virtude da escala da produção e do tamanho exigido das unidades de produção e comercialização, começara já em sua época a ser substituída por outra mais adequada à expansão do próprio modo de produção. Eis que, no segundo caso, por necessidade intrínseca da atividade econômica, a empresa capitalista vem a ser, então, propriedade coletiva de personificações – indivíduos, famílias etc. – que estão forçados a se comportarem como capitalistas financeiros.
Aqui é preciso ver que o capital se torna social, inicialmente, por meio do surgimento da sociedade por ações. Como se sabe, o capital das empresas é constituído pelo capital próprio, que aumenta por meio da retenção de lucros, e pelo capital de terceiros, que se eleva por meio da obtenção de empréstimos de curto e de longo prazo. Ora, essa forma de expansão do capital investido na produção não se mostra totalmente adequada quando a massa de capital detido pela empresa precisa aumentar em grande medida, tanto em ritmo quanto em escala.
É a necessidade de obter crédito em grandes volumes que suscita o desenvolvimento da sociedade por ações; por meio de uma operação financeira, o capital próprio da empresa até então privada é repartido em partes alíquotas, as quais passam a ser representadas por signos que se tornam propriedade de supostos sujeitos ou personificações.
A sociedade anônima assim constituída tem o seu capital próprio dividido e representado por ações, que podem ser negociadas livremente num mercado apropriado. É aberta ou fechada dependendo se capta recursos junto aos poupadores em geral ou num grupo selecionado de investidores capitalistas; dentre esses investidores se incluem outras empresas, fundos, gestoras de ativos e governos além de indivíduos.
É assim que Karl Marx caracteriza a formação das sociedades por ações: “O capital que, como tal, tem como base um modo social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho, adquire, assim, diretamente a forma de capital social (capital de indivíduos diretamente associados) em oposição ao capital privado, e suas empresas se apresentam como empresas sociais em oposição a empresas privadas. É a suprassunção [Aufhebung] do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista” (Marx, 2017, p. 494).
Ora, para bem entender por que ocorre esse desenvolvimento, é preciso considerá-lo como momento lógico que se insere na apresentação de O capital. Assim como a mercadoria consiste na unidade da contradição entre o valor de uso e o valor, a empresa capitalista consiste na unidade entre o processo da produção de valor de uso e a geração de valor e mais-valia.
Ainda que a meta precípua da empresa seja a valorização do valor, para que isso ocorra é preciso que a demanda pelos valores de uso que ela produz venha de ser atendida de modo satisfatório; ora, isso implica que os requisitos técnicos e qualitativos da produção de valores de uso têm de ser respeitados, pelo menos até certo ponto. A existência e a permanência da empresa capitalista exigem, pois, a compatibilização desses dois fins, mesmo se a finalidade do lucro tem de prevalecer. O objetivo da produção capitalista é o lucro incessante e não a produção de bens que atendam às necessidades dos indivíduos sociais.
Dito de outro modo, a unidade entre produção e valorização tem de ser posta para que a contradição inerente à mercadoria possa subsistir, ou seja, para que a própria empresa subsista produzindo e vendendo mercadoria, sem entrar no caminho da contração, da decadência e até mesmo da falência. Para que isso ocorra, as personificações que estão no comando da empresa têm de atuar como administrador e como capitalista, uma dupla função que requer delas um duplo engenho; só assim, mediante essa compatibilização, a contradição intrínseca que atravessa, sob diferentes formas, o modo de produção como um todo, pode prosperar.
Contudo, esse modo de selar a contradição é subvertido pelo próprio avanço do capitalismo; eis que a constituição de empresas enormes que operam em múltiplos mercados requer uma nova forma de empresa. Assim, na passagem da empresa privada para a empresa social, a unidade imediata entre administração e acumulação de capital é rompida para ser articulada de outro modo. À medida que o capital se torna social, tal como aponta Marx, “o capitalista realmente ativo se converte em simples gerente, administrador de capital alheio, e os proprietários de capital em meros proprietários, simples capitalistas monetários” (Idem, p. 494).
Ora, antes que essa análise de Marx seja refinada, é importante notar que essa mudança, tal como ele observa, transforma o modo de apropriação do excedente gerado na produção mercantil. Os gerentes aparecem como assalariados e os capitalistas se tornam recebedores de dividendos e bonificações, ou seja, de ganhos que não passam de formas transformadas dos juros.
Marx apresentou essa mudança no seguinte trecho: “O lucro total [não retido] é recebido agora apenas na forma de juros, isto é, como simples remuneração à propriedade do capital, que, por sua vez, passa a ser inteiramente separada da função que desempenha no processo real de reprodução, do mesmo modo que essa função, na pessoa do dirigente, se encontra separada da propriedade do capital. [Por isso] a remuneração dos gerentes é, ou deve ser, mero salário para remunerar certo tipo de trabalho qualificado, cujo preço é regulado no mercado de trabalho, como o de outro trabalho qualquer” (Idem, p. 494).
Como é evidente, esse desacoplamento da administração da empresa da função de capitalista requer novas formas de compatibilização dos fins contraditórios inerentes à produção e à comercialização de mercadorias no modo de produção capitalista. Desde logo é preciso ver que Marx erra ao pensar que os gerentes possam ser considerados apenas como administradores dos processos que acontecem no interior das empresas.
Eis que a própria gerência das empresas vai se desdobrar em vários níveis de governança com atribuições diversas; assim, os administradores operacionais, que se orientam pelos requisitos da produção, vão ficar subordinados aos gerentes financeiros e às diretorias, que se guiam principalmente pela lógica da acumulação de capital. Ademais, se a remuneração dos primeiros pode continuar em princípio a ser regulada pelo mercado, os ganhos dos segundos tendem a ser atrelados de algum modo aos lucros e aos pagamentos dos acionistas.
De qualquer modo, avulta aqui a questão de saber como os proprietários do capital, que se distanciaram dos processos produtivos à medida que se formaram as corporações, exercem influência ou mesmo controlam as empresas das quais detêm partes, ou seja, quotas ou ações. Como seria de se esperar, isso ocorreu sob diferentes formas concretas, as quais estiveram enraizadas nas circunstâncias geográficas e históricas do capitalismo como sistema mundial.
Devido à complexidade das formas de exercício do poder financeiro sobre as atividades econômicas, ela tem sido abordada teórica e historicamente de modo extenso e detalhado; muitos autores se dedicaram a essa temática, mas se pode lembrar aqui de algumas obras valiosas e seminais que investigaram as conexões entre o capital monetário e financista e o capital industrial: O capital financeiro de Rudolf Hilferding (1910/1985), O capital financeiro hoje de François Chesnais (2016) e A queda e a ascensão do capital financeiro americano (2024).
Aqui, contudo, se tentará fazer apenas uma exposição condensada tal como aquela encontrada em Braun e Christopher (2024). E ela pode ser considerada como uma tentativa de fazer um apêndice póstumo ao que se encontra no capítulo 27 do Livro III de O capital.
Tal como foi indicado neste escrito, o poder financeiro se instala já no interior das empresas por meio da reserva para si de determinadas funções gerenciais. Porém, mesmo estando dentro, ele também vem de fora para dentro das empresas já que estas nunca deixam de estar constrangidas pela concorrência mercantil, mas também pelas demandas dos agentes que as financiam de algum modo.
Nesse sentido, o poder financeiro externo afeta as corporações de três modos entrelaçados: pela vinculação estrutural do capital industrial como o capital financiamento, pela via da necessidade de acesso a recursos financeiros adicionais ou ainda por meio de intervenção direta e instrumental na própria direção da empresa.
No primeiro caso, é preciso ver que as ações não são empréstimos, mas representam direitos de receber dividendos, bonificações e valorização precípua nos mercados acionários. Ora, se esses direitos, ou melhor, se as expectativas de ganhos que esses direitos criam estão sendo atendidas ou não – e em que proporção –, isso se reflete diretamente no preço das ações valoradas e comercializadas nos mercados acionários.
O pagamento periódico de dividendos está correlacionado com a cotação sempre flutuante que elas podem alcançar no jogo de ganha-perde que acontece nesses mercados; se esse pagamento diminui ou aumenta, diminui ou aumenta também, respectivamente, o preço que a ação pode alcançar. Ora, ações mal apreçadas pressionam as diretorias das empresas que as lançaram no mercado a elevar tanto a lucratividade quanto o retorno dos acionistas; eis que a assembleia destes últimos, que também ocorre periodicamente, pode destituí-los de seus postos.
Ora, as ações mal apreçadas dificultam também, em geral, a obtenção de novos recursos seja de curto prazo, junto aos bancos comerciais, seja de longo prazo, junto aos mercados acionários e de títulos (por exemplo, por meio do lançamento de debêntures). E tais capturas são necessárias tanto para as operações contínuas de toda empresa, inclusive daquelas constituídas como sociedade anônima abertas ou fechadas, como para a sua eventual expansão.
Tomar recursos no mercado se mostra necessário quando a empresa investe no aumento da capacidade de produção com base em recursos que superam aqueles provenientes dos lucros retidos. A aproximação entre o capital industrial e o capital de finança, para além dos nexos postos pelo financiamento, ocorre também porque as empresas industriais necessitam de serviços prestados pelas empresas do ramo das finanças.
No terceiro caso apontado, o poder financeiro deixa ser tácito para se tornar interveniente: assim, ele não apenas condiciona o gerenciamento da empresa que subjuga, mas interfere diretamente em sua administração, visando, obviamente, obter não só o máximo lucro possível, mas também a máxima participação admissível nesse lucro. É o que tem de acontecer quando ocorre uma espécie de fusão entre o capital de financiamento e o capital industrial, arranjo que Rudolf Hilferding chamou capital financeiro.
Na situação histórica por ele examinada (Alemanha no começo do século XX), o poder da finança estava concentrado em grandes bancos cujo capital próprio estava em parte investido em empresas monopolistas produtoras de mercadorias por meio de propriedade direta ou da posse de parte importante das ações. “Chamo de capital financeiro” – diz – “o capital bancário (…) que (…), em realidade, encontra-se transformado em capital industrial” (Hilferding, 1985, p. 219).
Mas o entrelaçamento do capital de finança com o capital industrial pode acontecer de um modo mais sútil e por meio de outros arranjos que não aquele descrito por Rudolf Hilferding. Davis (2008), por exemplo, registra o surgimento nos Estados Unidos, depois de 1980, das grandes empresas gestoras de ativos que concentram, por meio de fundos mútuos, a propriedade acionária de milhões de pessoas. Essas empresas, segundo anota em seu escrito, conseguiram prosperar de modo extraordinário ao longo das décadas seguintes, tornando-se proprietárias de posições acionária em centenas de companhias ao mesmo tempo.
Seria de se esperar que as gestoras de ativos venham a se tornar também as gerenciadoras das empresas que dominam detendo a propriedade de suas ações? Davis sugere que isso não acontece: “esses fundos” – diz ele – “são reticentes em exercer o poder” diretamente sobre a gestão das firmas, pois “preferem exercer o poder de saída ao invés do poder de voz” (Davis, 2008, p. 11). Mesmo se esse último não está excluído, é bem verdade que uma forma distinta de capital financeiro evoluiu nos Estados Unidos. Eis que se observa aí a ocorrência de uma forma historicamente especifica de junção do capital monetário com o capital industrial e o capital comercial.
Na verdade, como explica Maher e Aquanno (2024), essa ingerência se tornou desnecessária e, talvez mesmo, prejudicial, pois o que se observa agora não é mais o capitalismo industrial clássico, que era governado stricto sensu pela lógica D – M – D’, mas o capitalismo financeirizado, em que domina a lógica D – D’, lógica essa que subsumiu em si a lógica própria do capital industrial. À medida que o prosperou a financeirização no correr do pós-guerra, a preocupação das personificações, que vivem e pelejam sempre numa concreticidade aparente e circunscrita da sociedade (Kosik, 1969, p. 59-68), mudou de enfoco: se antes se centrava na dinamização da produção industrial, agora ela passou a se centrar na conservação do capital fictício acumulado e em sua valorização financeira.
Eis o que dizem esses dois autores sobre o modo de funcionamento do capitalismo no Ocidente, em particular, nos Estados Unidos: observa-se, por um lado, “a crescente significância da lógica financeira nas operações da própria corporação industrial” e, por outro, a “emergência de um Estado autoritário” que se encarrega da gestão do risco sistêmico (dando suporte, por exemplo, aos grandes bancos e aos grandes fundos que não podem falir), seja por meio da política de austeridade no âmbito fiscal seja por meio da política em prol da finança no âmbito monetário, uma política que é dita independente porque independe dos interesses mais amplos da sociedade (Maher e Aquanno, 2024, p. 97).
As próprias corporações tornaram-se crescentemente semelhantes às instituições financeiras à medida que os executivos corporativos de cima passaram a alocar volumes crescentes de investimento não somente nas operações internas, mas também [nos mercados financeiros em geral e] em firmas subcontratadas que oferecem trabalho barato, especialmente na periferia do sistema global. Desse modo, o processo em andamento da financeirização das empresas não financeiras facilitou a globalização da produção. (Maher e Aquanno, 2024, p. 97).
Mesmo se essa nota tem origem num escrito de Karl Marx, ela acaba apresentando em grandes traços um capitalismo que difere em certa medida daquele observado no miolo do século XIX. Eis que a socialização do capital não criou qualquer base concreta para a socialização da produção, ou seja, para ir além do capitalismo; diferentemente, propiciou uma enorme difusão do capital acionário e do capital portador de juros, assim como do capital fictício. Eis que a captura de valor se dá tanto na esfera da produção quando da circulação mercantil na forma de dividendos, juros como parte do lucro e juros aparentes decorrentes de empréstimos improdutivos, respectivamente.
Desse modo, o mundo do capital de finança ampliou-se frente ao mundo do capital industrial; ao mesmo tempo, as formas fetichistas que lhe são inerentes – as ações, os títulos etc. que parecem valer como tais, além de ter capacidade de gerar valor – ganharam uma dimensão formidável. Mais do que isso, recursos naturais, forças de trabalho, habitações etc., por estarem ou poderem estar associados a fluxos de recebimentos, passam a ser tomados como capital de finança. Assim, além de terem expressão em dinheiro, parecem também que capazes de gerar mais dinheiro por si mesmos.
Se tais formas de objetividade já existiam em seu tempo, tendo sido registradas por ele registrada como insanas (Marx, 2017, cap. 29), elas ainda não haviam ganhado o mundo com veio acontecer já no século XX. As questões “capital humano”, “empreendedorismo” e “neoliberalismo”, portanto, não podem ser apreendidas apenas nos “discursos” (Nunes, 2024).
Eis que agora se tem um capitalismo globalizado em que prepondera o capital de finança, em que prosperam formas diversas de capital financeiro, em que o Estado, como capitalista coletivo, atua para reduzir o risco das crises e, em especial, de uma crise de grandes proporções que possa enfraquecê-lo até o ponto em que possa ser superado. Enquanto isso não acontece, segue em ocaso; ademais, como se tornou financeirizado, segue junto o rentismo. Não se pode mais, portanto, ter o primeiro sem o segundo como pensam muitos que sonham ainda com um futuro keynesiano. Eis que o próprio Keynes, como se sabe, sonhou bem acordado com uma “eutanásia dos rentistas” que viria por certo (segundo ele) como o desenvolvimento do próprio capitalismo.
Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos (CEFA Editorial).
Referências
Braun, Benjamin e Christophers, Brett – Asset manager capitalism: an introduction to its political economy and economic geography. Economy and Space, 2024, vol. 56 (2), p. 546-557.
Chesnais, François – Finance capital today. Corporations and banks in the lasting global slump. Leiden/Boston: Brill, 2016.
Davis, Gerald F. – A new finance capitalism? Mutual funds and ownership re-concentration in the United States. European Management Review, 2008, vol. 5, p. 11-21.
Hilferding, Rudolf – O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
Kosik, Karel – Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
Maher, Stephen e Aquanno, Scott – The fall and rise of American finance – From J. P. Morgan to BlackRock. Londres/Nova York: Verso, 2024.
Marx, Karl – O capital. Crítica da Economia Política, Tomo III. São Paulo: Boitempo, 2017.
Nunes, Rodrigo – As declinações do “empreendedorismo” e as novas direitas. IHU, 20 de agosto de 2024.
Fonte(s) / Referência(s):
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