Ideias para adiar o fim do mundo
“IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO” é um conjunto de cinco artigos.
Os quatro primeiros tratam dos aspectos fundamentais do ESTADO, hoje descartados do debate político pela invasão ideológica do neoliberalismo. Eles tratam da SOBERANIA, da CIDADANIA, da DEFESA DOS DIREITOS e da VOCALIZAÇÃO, como explicitadas no curso das exposições. No último é apresentada uma perspectiva do fim do mundo, se ele ficar sob o domínio das finanças, é um “1984”, de George Orwell, adaptado ao século XXI e às tecnologias contemporâneas, contrapomos então o título geral para SEM ESTADO: MANTENDO O RUMO DO FIM DO MUNDO.
“IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO”: SOBERANIA
O mineiro Ailton Alves Lacerda, nascido em 1953, índio da etnia crenaque, conhecido internacionalmente como Ailton Krenak, escreveu o livro cujo título (“Ideias para Adiar o Fim do Mundo”) copiamos para este artigo.
A questão de Ailton é sobretudo ambiental, que viu desde criança na região do Rio Doce, provocada pela mineração, pelo desrespeito que o capital sempre demonstrou pelo trabalho. Mas trata igualmente das questões de uma sociedade desigual e discriminatória.
Do livro que inspirou o título deste artigo (Companhia das Letras, Editora Schwarcz, SP, 2019):
“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência de vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar”.
Os temas desenvolvidos por Krenac, nós costumamos tratar de forma mais abrangente como os da Soberania e da Cidadania, que são, a nosso ver, os objetivos do Estado Nacional.
A questão ambiental é uma das que envolve a questão da energia, esta que é fundamental para Soberania. A questão identitária deve ter solução na construção da Cidadania. No entanto há um elemento que interliga estas questões, que denominamos vocalização, porém é mais facilmente encontrado como um dos aspectos da aplicação da teoria da informação, da comunicação social.
Energia, como os recursos naturais, não é igualmente distribuída pelo mundo. Vejamos como são consumidas, pelas fontes de energia primária, de acordo com a publicação de mais de 70 anos: a “BP Statistical Review of World Energy”, da empresa British Petroleum (BP).
Atualmente a BP tem como os cinco maiores acionistas as empresas financeiras estadunidenses: State Street, BlackRock, Dimensional Fund Advisors, Fisher Investments, e a seguradora israelense Menora Mivtachim (fonte: investopedia.com).
Para o ano de 2020, os consumos de energia assim se concentram, em exajoules EJ (medida de energia, no Sistema Internacional de Unidades):
- o maior consumo vem das energias fósseis, 463,24 EJ, dos quais 174,20 do óleo, 151,42 do carvão e 137,62 do gás natural, ao todo 83,15% da energia consumida no mundo vêm das fontes fósseis;
- a segunda maior fonte primária é a hídrica, 38,16 EJ, 6,84%;
- a terceira são as renováveis, 31,71 EJ e, por último a nuclear, 23,98, respetivamente 5,69% e 4,30% dos 557,09 EJ totais daquele ano.
Na estatística da BP Review, as energias renováveis computadas são do vento (energia eólica), do Sol (energia solar) e da biomassa, geotermal e outras, tais como das marés. A energia eólica representa mais da metade da geração das renováveis (190/350), seguida pela solar (120/350).
O Brasil tem situação ímpar neste cenário. Se houvesse governo autônomo, se pudéssemos comemorar não os 200 anos de alguma independência política, mas os 92 da Revolução pela Soberania Brasileira, em 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder e dele foi duas vezes afastado pelas forças estrangeiras e dos traidores brasileiros, certamente teríamos hoje o País Soberano e Cidadão.
Examinemos a questão da energia brasileira em relação às fontes primárias.
O Brasil consumiu, em 2020, 12,1 exajoules. A principal fonte foi o óleo (petróleo), 4,61 EJ (38%), seguida da hidroeletricidade, 3,52 EJ (29%), correspondendo a mais de dois terços do consumo energético. Porém a situação privilegiada não se esgota somente nestes valores equilibrados. O Brasil é autossuficiente em petróleo, com as reservas do pré-sal e as demais existentes em nosso território. Se administradas pelo interesse nacional e não do “mercado”, teremos reservas provadas para quase um século, incluindo o gás natural.
As fontes hídricas, gerenciadas com o mesmo interesse, como já descrevia para a Amazônia, o intelectual fluminense Euclides da Cunha, em “À Margem da História”, obra póstuma de 1909, poderia se transformar além de fonte de energia, em sistema de transporte, recurso para o saneamento básico, para irrigação, e promoção da urbanização do interior do Brasil.
Seria um recurso a mais para a energia renovável, da biomassa, que com a área já disponível e os recursos tecnológicos para agricultura, tiraríamos, definitivamente, o Brasil do mapa da fome e poderíamos ter metade de energia de fonte não poluente – as renováveis representam 16,7% (2,01EJ) – do consumo total. O gás natural contribui com 1,16 EJ (9,6%), o carvão 0,58 EJ (4,8%) e a energia nuclear 0,14 EJ (1,2%).
O Brasil tem insolação por todo território e o ano inteiro, ventos na costa de 7.491 quilômetros, ou seja, é país verdadeiramente abençoado em energia e também em riquezas minerais e aquíferas.
Ao que acresce ter desenvolvido tecnologia própria para o aproveitamento de todas estas fontes em suas empresas estatais.
Por decisão meramente ideológica, o neoliberalismo neopentecostal, que não encontra respaldo em qualquer condição objetiva, os governos, desde 1990, vem procurando atender interesses estrangeiros, principalmente das finanças apátridas e marginais, colocando a venda ou fechando ou reduzindo recursos para suas empresas estatais.
Longe de caminharmos no sentido da Soberania, regredimos ao da Colônia, da submissão. Observe que são dois os pilares que sustentam a Soberania no século XXI. A energia e a informação, no mais amplo significado, de hardware, software e segurança nacional.
O que fizeram os governos desde 1990:
a) Fernando Collor. O Plano Collor, um modelo neoliberal aplicado pela ministra Zélia Cardoso de Mello, abriu as portas para importações e privatizações, iniciando pela siderurgia.
b) Itamar Franco, que assume com a destituição de Collor, prossegue na privatização da siderurgia e acrescenta a Embraer e subsidiárias da Petrobrás na área da petroquímica (União, Poliolefinas, Oxiteno, Politeno, Coperbo, Ciquini, Polialden, Acrilonitrila) e dos fertilizantes (Ultrafértil e Arafértil). Seu ministro foi Fernando Henrique Cardoso.
c) Fernando Henrique Cardoso (FHC). Teve por ministros Rubens Ricúpero, Ciro Gomes e Pedro Malan. Em seu governo, medidas provisórias, leis, decretos e ações na área do Banco Central promoveram as condições para o maior programa de privatização e alienação do Estado Nacional jamais ocorrido, antes de Jair Bolsonaro, no Brasil.
Limitar-nos-emos aos que diretamente estão ligados às comunicações e à energia: todo Sistema Telebrás, Damatec, Light, Gerasul, Escelsa, Copene, Salgema, Petroquímica de Camaçari, Polibrasil, Polipropileno, Poliuretanos, Nitrocarbono, Estireno do Nordeste, Deten Química, Química do Recôncavo.
FHC também privatizou malhas ferroviárias, portuárias, docas e a maior mineradora do mundo, a Companhia Vale do Rio Doce. “O negócio CVRD tinha futuro tão promissor que, em 10 anos após a privatização, ela chegou à receita líquida de US$ 64 bilhões e ao lucro líquido de US$ 20 bilhões. Poucos meses antes de ser privatizada, a CVRD encontrou em Carajás reservas de ouro e cobre consideradas das mais importantes descobertas geológicas da história. Eram comparáveis com as do início do século XX no Canadá e na África do Sul” (Carlos Henrique Lopes Rodrigues e Vanessa Follmann Jergenfeld, “Desnacionalização e financeirização: um estudo sobre as privatizações brasileiras (de Collor ao primeiro governo FHC)” – Economia e Sociedade, Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, agosto/2019).
Um grande golpe aplicado por FHC na Petrobrás, além da reorganização da Empresa, foi a venda de suas ações na Bolsa de Nova Iorque, de modo a sujeitar as decisões da empresa às leis dos Estados Unidos da América (EUA), quer nacional quer de seus estados, como estabelece a Constituição dos EUA, que já lhe causaram prejuízo de milhões de dólares estadunidenses (USD).
d) governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff promoveram a concessão de administração de rodovias e ferrovias. Houve também, na área da energia, das Hidrelétrica Santo Antônio, Usina Hidrelétrica de Jirau e da linha de transmissão Porto Velho (RO) – Araraquara (SP). Foram também entregues, a capitais privados e estatais de países estrangeiros, reservas de petróleo para exploração e produção.
e) a partir do golpe de 2016, com Michel Temer e Jair Bolsonaro, o estado nacional brasileiro, explicitamente nas palavras do presidente eleito, se subordina ao “mercado”. Com isso, o Brasil deixa de ser um Estado Nacional e passa a ser um órgão executor das decisões do sistema financeiro internacional, dos “gestores de ativos”, ou, como no título de livro do historiador e membro da Academia Brasileira de Letras, o cearense Gustavo Barroso, a ser “Colônia de Banqueiros”.
Porém, o que vem significativamente ocorrendo no Brasil, desde a sucessão do presidente Ernesto Geisel, é o progressivo afastamento dos governos de suas responsabilidades com o Estado Nacional e o povo brasileiro, sob o pretexto que o “governo é mau administrador”, e agindo no sentido de o comprovar, restringindo recursos, estabelecendo remunerações inadequadas, e designando pessoas desqualificadas, técnica e moralmente, para direções. Em outras palavras e de modo sintético, a Questão Nacional saiu da pauta política brasileira.
Soberania esteve tradicionalmente estabelecida para a autonomia decisória nos eventos ocorridos dentro dos limites do Estado Nacional e das consequência para seu povo.
Porém há realidades decorrentes do avanço das tecnologias, em especial daquelas derivadas da teoria matemática da comunicação, que nos levam a dar outra dimensão à Soberania do Estado.
O recente conflito bélico entre os EUA com suas colônias, unidas na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e a Federação Russa obriga-nos a rever o conceito de Soberania.
Transcrevemos do Portal Dinâmica Global (25/09/2022) sob título: “Toda a política imperial envolve um duplo ataque à Rússia e à Alemanha”, as afirmações de Zoltan Posner, do banco Credit Suisse: “Os momentos Minsky (referência à “crise” 2008-2010) são desencadeados por alavancagem financeira excessiva e, no contexto das cadeias de suprimentos, alavancagem significa alavancagem operacional excessiva: na Alemanha, US$ 2 trilhões em valor agregado dependem de US$ 20 bilhões em gás da Rússia”. Na mesma matéria:
“E o conceito de alavancagem operacional também se aplica no domínio militar: se Taiwan fabrica os chips para os mísseis, os EUA os enviam para autodefesa, mas precisam esperar pelos mísseis porque são necessários na Ucrânia ou não podem enviá-los para os EUA devido a um bloqueio marítimo e aéreo imposto pela China, os EUA estão operacionalmente mal equipados para apoiar uma guerra em duas frentes”.
Soberania, debaixo de alavancagens financeiras, bloqueios e sanções, nos remete ao filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte (“Fundamentos do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência”, 1796, tradução de José Lamego do original alemão para Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012) que considera a prevalência dos contratos e “logo que uma das partes ultrapasse, no mínimo que seja, os seus limites, o contrato fica anulado e abolida toda a relação jurídica por ele fundada”. Como colocar as alavancagens financeiras que destroem as economias além das fronteiras, os bloqueios comerciais, impedindo ou trazendo como consequência restrições à circulação de bens?
Estas são reflexões para a Soberania na época da cibernética, da informática, da revolução termonuclear.
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, presidente da AEPET.
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