Siga a AEPET
logotipo_aepet

Mero superávit comercial não pode guiar a parceria Brasil-China, diz Robert Lawrence Kuhn

"É preciso inovar para superar a assimetria das relações comerciais com Pequim"

Publicado em 16/09/2022
Compartilhe:

A partir da próxima edição, o norte-americano Robert Lawrence Kuhn une-se à equipe de colunistas de Carta Capital. Banqueiro de investimentos, estrategista com doutorado em neurociências, Kuhn tornou-se um dos principais estudiosos de China, experiência acumulada desde a sua primeira viagem ao país, em 1989, a convite da Comissão Estatal de Ciência e Tecnologia. "Fui fisgado desde o momento em que cheguei", recorda. "Suspeitei então que a economia, a política, a diplomacia e a cultura chinesas logo passariam a ter grande importância para o mundo."

Bem relacionado na cúpula do Partido Comunista, agraciado com a Medalha da Amizade da Reforma da China, uma das maiores honrarias do país, o especialista terá o desafio de, quinzenalmente, oferecer aos leitores da revista uma visão mais realista e menos preconceituosa do país que caminha a passos largos e decididos para se tornar a maior economia do planeta.

Dois de seus livros serão em breve lançados no Brasil pela Autonomia Literária: Como os Líderes Chineses Pensam e Como a China Superou a Pobreza. Na entrevista a seguir, Kuhn detalha os objetivos da Nova Rota da Seda, fala dos desafios chineses para superar os Estados Unidos e manda um recado aos brasileiros: é preciso inovar para superar a assimetria das relações comerciais com Pequim.

Carta Capital: O mundo vive aparentemente uma quadra de decadência do Ocidente e ascensão do Oriente. Como um norte-americano que conhece profundamente a China, qual a sua avaliação a respeito do fenômeno? Estamos às portas de uma nova ordem mundial?

Robert Lawrence Kuhn: O PIB per capita chinês aumentou cerca de cem vezes, ou seja, 10.000%, desde o início dos anos 1970. Em todas as áreas de importância global, especialmente na economia e no comércio, e cada vez mais na ciência e na tecnologia, a China está entre os líderes. Mas os chineses enfrentam hoje fortes ventos contrários: envelhecimento e retração demográfica, desequilíbrios industriais, dívida elevada, degradação ambiental, tensões internacionais, fuga de capitais e restrições ideológicas em uma economia de mercado. Embora a China aposte na inovação interna como prioridade nacional, é uma questão em aberto se a sociedade será capaz de nutrir e sustentar uma inovação de classe mundial. Quanto ao declínio do Ocidente, não há dúvida. Os EUA continuam, porém, a ser o lugar onde os melhores e mais brilhantes procuram estar. Como disse um sofisticado estudioso chinês, saberemos que os EUA estão em declínio quando as pessoas pararem de fazer fila para obter vistos nas embaixadas norte-americanas.

Como a Nova Rota da Seda se diferencia das estratégias ocidentais de inserção internacional?

A Iniciativa do Cinturão e Rota da China (BRI), apresentada pelo presidente Xi Jiping, está na base da política externa. A BRI aproveita a experiência inigualável do país e as vantagens competitivas na construção de infraestrutura: ferrovias, estradas, portos, aeroportos, usinas de energia, telecomunicações. Não há nada mais importante para as nações em desenvolvimento do que a infraestrutura. Deixe-me traçar a história da BRI e o desenvolvimento do nome. Em 2014, veio "o Novo Cinturão Econômico da Rota da Seda", calcado na expansão terrestre: a China focada na Ásia Central e em busca de conexão com a Europa. O segundo, em 2015, é a "Rota da Seda Marítima do Século XXI", sobre a água: uma aproximação do Sudeste Asiático, Oriente Médio, África e Europa. Essas duas Rotas da Seda foram então combinadas na estratégia de desenvolvimento econômico "One Belt, One Road", que então mudou seu estranho nome em inglês para "Belt and Road Initiative" (o original chinês de "One Belt, One Road" soa fluente e é mantido).

Qual é o objetivo de Pequim?

A BRI não é caridade. A China diz buscar um ganha-ganha. O país beneficia-se do acesso a matérias-primas, negócios para suas grandes empresas de construção e, mais importante, do desenvolvimento de novos mercados para seus produtos. O sucesso da China é bom porque garante a continuidade da BRI. Recentemente, Xi Jiping apresentou a Iniciativa de Desenvolvimento Global da China, baseada na plataforma de infraestrutura da BRI e que aborda as desigualdades globais, com foco no alívio da pobreza, segurança alimentar, resposta e vacinas à Covid-19, financiamento do desenvolvimento, mudanças climáticas, desenvolvimento, industrialização, conectividade e economia digital. A iniciativa de desenvolvimento global e a BRI se combinam para implementar a visão de Xi Jiping de construir uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade.

Como a China vê suas relações com a América Latina? Qual o papel do Brasil?

A América Latina, em geral, e o Brasil, em particular, são altamente importantes para a estratégia econômica de longo prazo dos chineses. Há mais de uma década acompanho o BRICS de perto, do ponto de vista da China, e posso testemunhar o quanto Pequim o leva a sério. Não se pode ignorar a resposta competitiva chinesa ao buscar aumentar seus negócios no hemisfério ocidental, domínio dos EUA na velha ordem, assim como Washington persegue uma estratégia no Indo-Pacífico com aliados e outros Estados independentes da China. Conclusão: os chineses aumentarão seu compromisso com o Brasil e cabe aos brasileiros moldá-los de acordo com seus interesses de longo prazo.

Uma marca da Iniciativa do Cinturão e Rota tem sido a oferta de investimentos em infraestrutura, desenvolvimento comercial, industrial e tecnológico em troca muitas vezes de commodities e bens de baixo valor agregado. A partir das parcerias na Nova Rota da Seda, como o senhor avalia os potenciais de cooperação entre Brasil e China? A China pode ser uma aliada para a reconstrução econômica brasileira?

Certamente. As parcerias entre o Brasil e a China são naturais, há um enorme potencial de negócios. Começa com a infraestrutura, que a China constrói e financia e que o Brasil precisa e pode ser digna de crédito. Reconhece o comércio substancial e crescente. A relação deve levar em conta, porém, a assimetria entre as duas nações. Quase todas as exportações do Brasil para a China são matérias-primas e commodities: soja, minério de ferro e petróleo bruto respondem sozinhos por cerca de três quartos, segundo os dados de 2020. Adicione a carne bovina congelada e o porcentual passa de 80%. Por outro lado, as exportações da China para o Brasil são quase inteiramente de bens manufaturados, com sofisticação crescente na cadeia de valor: telefones, equipamentos de transmissão, semicondutores, circuitos integrados. Embora o Brasil tenha uma balança comercial favorável, a assimetria, obviamente, não ajudará o Brasil a desenvolver tecnologias e produtos do século XXI. A boa notícia é que os líderes da China estão cientes desse problema estrutural e trabalharão para resolvê-lo. Não será fácil. Ter um pensamento inovador é necessário para as empresas e o governo brasileiros.

Fonte: Carta Capital

Receba os destaques do dia por e-mail

Cadastre-se no AEPET Direto para receber os principais conteúdos publicados em nosso site.
Ao clicar em “Cadastrar” você aceita receber nossos e-mails e concorda com a nossa política de privacidade.
Melissa Cambuhy
Compartilhe:
guest
0 Comentários
Feedbacks Inline
Ver todos os comentários

Gostou do conteúdo?

Clique aqui para receber matérias e artigos da AEPET em primeira mão pelo Telegram.

Continue Lendo

Receba os destaques do dia por e-mail

Cadastre-se no AEPET Direto para receber os principais conteúdos publicados em nosso site.

Ao clicar em “Cadastrar” você aceita receber nossos e-mails e concorda com a nossa política de privacidade.

0
Gostaríamos de saber a sua opinião... Comente!x