O lugar do Brasil e da Petrobrás na nova geopolítica energética

Renda petrolífera aumentou com a guerra na Ucrânia, mas riqueza gerada em território brasileiro é distribuída em forma de dividendos.

Publicado em 28/10/2022
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Uma das principais transformações desencadeadas ao redor do mundo pela guerra na Ucrânia foi o reordenamento das relações comerciais de energia. Os Estados Unidos se beneficiaram com a exportação extraordinária de gás natural para a Europa, a Índia aumentou sua importação de petróleo da Rússia em cinco vezes desde o início do ano, e a China superou a Alemanha e já é a maior compradora do setor energético russo.

No atual xadrez geopolítico, o gás natural liquefeito (GNL) é peça importante para aqueles que têm infraestrutura de produção deste tipo de derivado. Não é o caso brasileiro, mas isso não impede a Petrobrás de lucrar com o conflito. A alta dos preços do barril de petróleo beneficiou a empresa. No segundo trimestre de 2022, a Petrobras registrou lucro líquido de 54 bilhões de reais, com alta de 26,8% em comparação ao mesmo período de 2021.

O professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), Eduardo Costa Pinto, lamenta o fato de haver pouco destaque sobre o motivo desse crescimento. “Até 1980, nós importávamos muito mais petróleo do que exportávamos. Hoje não, temos um superávit comercial graças à descoberta do Pré-sal. Esse é o fator estratégico. O petróleo com o preço mais alto aumenta a riqueza gerada no país.”

No mês de setembro, a Petrobrás produziu 4 milhões de barris de petróleo e gás por dia, dos quais 75% são provenientes do Pré-sal, de acordo com dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Os números são exorbitantes, mas o que poderia significar um impulso à industrialização em território brasileiro é transformado em partilha de dividendos para os acionistas da empresa. “Foram 236 bilhões de reais distribuídos entre o ano de 2021 e o primeiro semestre deste ano. Esse lucro poderia estar indo, por exemplo, para a construção de refinarias, para energia renovável e, inclusive, para a própria empresa no futuro. Geraria emprego e renda aqui, mas não,  [a Petrobras] adotou uma estratégia de distribuir praticamente todo o lucro”, completa o economista.

Em menos de dois anos, a Petrobrás distribuiu mais que o total da receita de vendas da empresa, cujo montante equivale a 170,96 bilhões de reais, 60 bilhões a mais em comparação ao segundo trimestre de 2021. Atualmente, a vantagem comparativa da renda do petróleo no Brasil é perdida, à medida que o acesso a fontes de energia a preços mais baixos, porque produzidas aqui, não significa oportunidade de desenvolvimento no país. O petroleiro e vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET), Felipe Coutinho, é categórico ao afirmar que os benefícios da conjuntura geopolítica não são (ou não deveriam ser) a mera exportação de produtos primários. “Nós não estamos aproveitando esses recursos para a nossa industrialização, então a limitação ou a proibição da exportação do petróleo cru é fundamental, porque o crescimento econômico exige o consumo de energia.”

Para o engenheiro químico, falar em desenvolvimento é falar também em crescimento do consumo de energia per capita no Brasil, e isso não é possível sem a limitação da exportação da produção de barris de petróleo pelos poços nacionais. “O Brasil tem um consumo per capita de energia muito baixo, a gente precisaria aumentá-lo em cinco vezes para chegar ao padrão europeu. Por isso usar nossos recursos aqui, e não exportá-los. Não é nenhuma invenção fazer isso, durante quase todo seu desenvolvimento capitalista, os Estados Unidos proibiram a exportação de petróleo, apesar da produção ser alta.”

O principal objetivo da Petrobras hoje, porém, é a venda dos ativos da empresa. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), de 2013 a agosto de 2022, a empresa vendeu 94 ativos, 80 no Brasil e 14 no exterior. Isso representa 59,8 bilhões de dólares, valor semelhante ao apresentado pelo então presidente da estatal, Aldemir Bendine, em 2015, em seu plano de privatização de ativos, ainda na gestão de Dilma Rousseff .

“Dos anos 1960 para cá, o investimento médio anual da Petrobras foi de 20 bilhões de dólares; de 2009 a 2014, o investimento médio anual foi de 50 bilhões. E agora, nos últimos anos, tem sido 8 bilhões de dólares, menos da metade da média histórica”, reitera Coutinho.

A venda dos ativos só é possível graças a uma emenda constitucional de 1995, do governo de Fernando Henrique Cardoso. A quebra do monopólio de pesquisa, refino e transporte do petróleo e do gás natural abriu a brecha que o mercado buscava para explorar atividades do setor. Na prática, todo o parque industrial construído ao longo dos 69 anos de existência da Petrobras está sendo leiloado. “A partir do momento que isso foi flexibilizado e o Supremo interpretou como constitucional, o que foi muito questionado na época, possibilitou essa desnacionalização tanto do petróleo quanto dos ativos”, relembra Coutinho.

Dentre os ativos privatizados está a BR Distribuidora, que desde 2019 se chama Vibra Energia. Quem para nos postos de gasolina da ‘sociedade anônima de capital aberto’, porém, pode se confundir, pois a empresa ainda ostenta o símbolo BR. O ex-diretor do ativo e atual diretor da AEPET, Sylvio Massa, chama essa estratégia de publicidade enganosa. “A Petrobrás não é responsável hoje pela qualidade dos produtos que estão sendo colocados pela Vibra no mercado. Ela tem que assumir a responsabilidade de tirar o nome da Petrobras e colocar o nome dela.”

Ao contrário da França, que após a crise ucraniana decidiu estatizar totalmente sua empresa de energia, e da Alemanha, que vai investir 200 bilhões de euros no setor, o Brasil cede todos os ativos estratégicos para focar apenas em petróleo cru, ou seja, no retorno de curtíssimo prazo. Ao falar em transição energética, a estatal deveria assumir o protagonismo, pelo tamanho que tem, dos investimentos em energia eólica e solar, por exemplo. Para o doutorando em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC e pesquisador de geopolítica energética, Rafael Abrão, a infraestrutura vendida seria necessária nesse processo. “Os dutos e refinarias da empresa poderiam impulsionar a produção de energias renováveis, auxiliando o processamento da biomassa e o transporte de biometano e, futuramente, o processamento e transporte de hidrogênio verde. O conhecimento técnico avançado da empresa na produção de energia em alto mar poderia auxiliar o desenvolvimento da energia eólica offshore no Brasil. São diversas as possibilidades de participação da empresa”, pontua.

O dilema do gás

A rede completa de gasodutos da Petrobras também foi vendida, o que obriga a empresa a alugar os gasodutos [construídos pela própria empresa] de quem os comprou. Dois anos de aluguel equivalem ao preço pelo qual a iniciativa privada arrematou a rede. A privatização da rede afeta, inclusive, a garantia de abastecimento.

“Ficou esse caos completo, o preço dispara, 10% do salário mínimo vai para o botijão. Houve uma distorção completa no mercado com a ausência da Petrobras Distribuidora, que regulava mais ou menos esses fluxos”, complementa o economista Sylvio Massa.

A Petrobras saiu inteiramente da logística do gás, mas ainda detém Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGNs) e é responsável pela produção de subprodutos, como o GLP (gás de cozinha). O dilema da empresa hoje é o aumento da produção de gás associado, pois mais petróleo significa, consequentemente, mais gás natural, já que se trata do mesmo processo produtivo. A questão é o que fazer com todo esse gás. Ele pode ser reinjetado no poço, queimado, ou aproveitado. Com a saída do setor, a estatal demonstra não querer investir no uso do gás e, por isso, reinjeta grande parte dele.

A aposta do governo Bolsonaro é terceirizar para a iniciativa privada a responsabilidade pela infraestrutura de processamento. Um retrato disso é a Lei do Gás e o debate sobre o Brasduto. Em 2019, o ministro da economia Paulo Guedes chegou a afirmar que a abertura para o mercado seria um “choque de energia barata”, para reduzir o gás natural em até 40%. Para o economista e diretor do Ineep, Rodrigo Leão, existe uma expectativa de que haja empresas dispostas a investir em UPGNs e em gasodutos, por exemplo. “Hoje não tem clara e sinalizada uma expansão dos investimentos da infraestrutura do gás. A Petrobrás está saindo e não está claro quem vai substituir isso. É um desejo do governo baseado numa leitura de que o mercado vai atender a demanda.”

A luta pela frente

No dia 26 de setembro, a AEPET lançou o manifesto “O petróleo voltará a ser nosso e o Brasil voltará a crescer”. O documento alerta sobre os riscos de entregar o controle de ativos importantes para a população a empresas estrangeiras. Oito pontos são propostos como medidas fundamentais para retomar as rédeas da soberania energética caso o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seja eleito.

A AEPET ressalta a importância de inserir o Brasil na nova geopolítica energética, com soberania e controle da riqueza do petróleo. Entre as medidas, há pontos sobre o retorno do prejuízo dos últimos anos, como a reversão das privatizações de ativos, mas são propostos também avanços que não foram vistos nem em todo o período de gestão petista, como a restauração do monopólio e a limitação da exportação de petróleo cru. Felipe Coutinho, vice-presidente da organização, afirma que para recuperar todos os danos é preciso fazer mais. “São medidas necessárias para garantir nossa soberania, inclusive historicamente demonstrada com a instrumentalização do combate à corrupção através da Lava Jato, e o que a Petrobras sofreu por ter ações em Nova York e ser submetida a juízo e interesse antinacional e estadunidense.”

Fonte: Revista Ópera

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Beatriz Aguiar
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