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Felipe Maruf Quintas
Felipe Maruf Quintas
Felipe Maruf Quintas é Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
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Pedro Augusto Pinho
Administrador aposentado, foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e Consultor das Nações Unidas (UN/DTCD).

Brasil em tempo de crise – Governança Nacional Trabalhista

No mundo das sociedades conservadoras, os partidos políticos usam o pragmático argumento da lógica eleitoral para se firmarem como democraticamente representativos.

Publicado em 02/08/2023
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O Estado Nacional necessita de um intermediário para o permanente e necessário diálogo com todos os cidadãos, aqueles a quem cumpre proteger e de quem espera o trabalho, pois:

"A noção de que a humanidade requer a mediação na defesa de seus interesses é fundadora do pensamento moderno, já presente em Hobbes".
Ingrid Sarti, “Da outra margem do rio”, 2006

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Este intermediário é, na organização hodierna, o partido político. Há, pelo poder que mais governa os países, o poder econômico pelo lado do capital, a mística de que a democracia exige mais de um partido.

Neste último século, conhecemos ideologias autoritárias, quer em países que, sem negar a liberdade econômica, submetiam-na a estruturas corporativistas e monopartidárias – os fascismos; quer nos que centralizavam no Estado a responsabilidade pela produção e distribuição de bens e pela prestação de serviços – o marxismo-leninismo, autocompreendido como a vanguarda e as massas em único partido. A posição intermediária da socialdemocracia, como solução de compromisso para as disputas entre capital e trabalho, ao fim e ao cabo não logrou ultrapassar os limites definidos pelo primeiro. A eventual pluralidade de partido não significava mais opções do que maior ou menor distributivismo econômico dentro da estrutura de poder capitalista.

Existe também a influência da moral aplicada à política, que, na sua versão moralista, abstraída das condições práticas do poder, faz o sucesso de comentaristas que aproveitam a pouca, quando alguma, reflexão das populações para se eximir da própria incapacidade de descrever e interpretar ou denunciar interesses partidários.

Tem-se a definição clássica de partido político por Max Weber – “Uma associação que visa fim deliberado, seja a realização de um plano de ideais ou para conquistas materiais, seja no estreitamento do poder para uma pessoa, um conjunto ou categoria socioeconômica” (Economia e Sociedade, 1910).

No mundo das sociedades conservadoras, os partidos políticos usam o pragmático argumento da lógica eleitoral para se firmarem como democraticamente representativos. Os partidos que se caracterizariam como de esquerda agem do mesmo modo que os caracterizados como de direita, principalmente quanto aos meios, ou seja, quanto à organização do Estado que permitiria a mais fácil identificação dos objetivos e a participação popular. A concordância em relação às “regras do jogo” leva à convergência de métodos, já que, formalmente, o objetivo é o mesmo: o triunfo eleitoral pela conquista da maioria dos votos válidos.

Esta situação foi decorrente da disputa, no campo teórico e político, das ideias que surgiram no século 19, entre libertários e estatistas, como descreve, com rigor conceitual, após percorrer Marx, Proudhon, Bakunin, Kropotkin, a citada doutora Ingrid Sarti, sem considerar “os problemas da governabilidade, que constituem objeto de indagação de qualquer teoria democrática”.

Os partidos políticos, como elementos constitutivos dos Estados Nacionais, devem representar a cultura nacional e os níveis de consciência, de participação e de engajamento na integral capacidade de estruturação e de gestão do país, em prol de sua autonomia e desenvolvimento.

Na década final do século 20, duas situações mudaram radicalmente a construção que se elaborava, ao longo do século, de Estado e partido: a vitória do capitalismo financeiro, derrubando inclusive a referência do comunismo na eficácia política, e a emergência célere, abrangente, em todos os campos da vida, da digitalidade nas comunicações, e, como previa e propunha Norbert Wiener, tanto nos animais quanto nas máquinas.

Se os recursos digitais permitem a mais ampla participação, o controle pelos mecanismos financeiros, centralizadores e excludentes, afunilam as decisões num grupo de restritas e egoístas vontades. Não raro a ilusão da participação democrática encobre a manipulação das massas, ainda mais quando a “ágora” é controlada por grandes corporações financeiras, como no caso das redes sociais, braço fundamental das Big Tech.

Temos uma oligarquia, tal como definida por Platão: o governo dos mais ricos, dos que, em sua megalomania decorrente da riqueza sem virtude, se propõem até abandonar a Terra. As distâncias sociais se alargam ainda mais, a ponto de se assemelharem mais ao regime de castas que ao princípio das classes sociais proclamado pelos economistas clássicos.

Senhores e escravos lutam pelo domínio da unipolaridade, um único poder dominando todo mundo, pesadelo de ficção científica vivenciado principalmente no cotidiano ocidental.

Terremoto tecnológico e a questão nacional

Ingrid Sarti, citada, pergunta: “Como garantir que a participação (possibilitada pela tecnologia) seja um meio para mais ampla conquista de cidadania, portanto, de direitos?”

Definindo a nova arena de luta, não aceitando que as cartas e tabuleiros estejam marcados, define-se o local das disputas. É o que desenvolveremos aqui, não como solução, mas como projeto ao debate.

Professor Friedrich Müller, Universidade Heidelberg, (Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, 1997) expõe:

"Nem a todos os cidadãos é permitido votar. Nem todos os eleitores votam efetivamente. E que “povo” se esconde atrás dos efeitos informais sobre a formação da opinião pública e da vontade política “do povo”, efeitos que, por exemplo, as pesquisas de opinião ou todas as atividades individuais e sobretudo as atividades associativas e corporativas podem produzir na política?"

Em nossas palavras: se a sociedade é dominada pela pedagogia colonial?

Müller completa ao afirmar que o povo legitima quando "aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo" (normas e instituições).

O domínio das finanças apátridas no poder se faz também pelo controle das comunicações, no sentido do mecanismo wieneriano ou cibernético. Até o século passado, este mecanismo seria ainda fortemente eletromecânico, da televisão, do rádio e da comunicação impressa. Mas, na passagem dos séculos, 20 para 21, a comunicação eletrônica e virtual assumem a precedência dos meios, das mídias.

"Aparato criado pelo regime autoritário, e com ele completamente identificado, a TV Globo exerce o inesperado papel de protagonista das oposições, com isso ampliando um arco de alianças inesperadas. Na medida que legitimava o regime emergente, legitimava-se também junto à opinião pública."
Guimarães, Cesar & Vieira, Roberto A., “A televisão brasileira na transição (um caso de conversão rápida à nova ordem)”, Comunicação&Política III, 1986.

Embora já seja copiosa a literatura acadêmica e jornalística que tende a colocar o Sistema Globo de Comunicação, em especial seu canal de televisão aberta, como oposto a quem o empoderou (o regime militar de 1964), não concordamos com esta análise. O Sistema Globo sempre defendeu a elite financeira estrangeira e os que no Brasil estavam, de algum modo, a ela associados, ou seja, na oposição ao movimento nacional trabalhista.

Em 1964, foi a “revolução” de Castelo Branco com os Estados Unidos da América (EUA/CIA), na pós-1967, industrial nacionalista especialmente com Ernesto Geisel (1974-1979), dá-se então o “golpe da sucessão de 1979” (João Figueiredo) e surge o projeto abrangente da “redemocratização” e a “abertura”, que se desenvolveriam no sentido de impedir o ressurgimento do nacional trabalhismo, com Leonel Brizola.

As consequências são conhecidas, o ex-presidente do partido dos governantes militares, Arena (Aliança Renovadora Nacional), José Sarney, se torna presidente da República e atua no sentido de consolidar o governo das finanças apátridas com Fernando Collor, o candidato do Sistema Globo.

Tem início o período em que o Brasil regride em todos os sentidos, dominado pelo poder financeiro apátrida, que, do ponto de vista da Nação, se despersonifica, se despolitiza, se desfaz como estrutura orgânica e consistente; tem-se a defesa do “mercado” no lugar do Estado Nacional. Do ponto de vista da política, não há objetivos nacionais permanentes, tudo se transforma em imediatismos com ganhos máximos e rápidos. Os partidos se multiplicam pois é a maneira de receber parte do butim de um estado que vai perdendo seus ativos, entregando suas riquezas naturais e realizando “parcerias público-privada”, onde o público fica com os ônus e o privado com os bônus.

Descaracterizado como Estado Nacional, o novo Estado passa a integrar uma ideologia global, um só juízo, única ideia, o neoliberalismo. Não se dá o confronto de convicções, não há críticas, como ocorrera há dois séculos, agora é a vez do pensamento único, de um marxismo às avessas, pois não é dos operários mas dos banqueiros, não é do trabalho mas do rentismo.

No lugar da Nação são colocadas as identidades parcelares, também como um modo de fracionar o Estado; é colocada a questão ambiental acima da vida e da dignidade humana, embora o Brasil seja exemplo edificante, diante de toda história da Europa Moderna.

Até demograficamente o Brasil da Nova República, no século 21, em especial nestes últimos seis anos, começa a cair: no produto interno bruto, no número de crianças alfabetizadas e em matrículas universitárias. Presente e futuro.

Governança nacional trabalhista

Povo em determinado território são os elementos objetivos, constitutivos de toda ideia de Estado. A estes componentes fáticos se agregam componentes culturais que darão o contorno mais específico e poderão distinguir os Estados Nacionais. Porém não se esgota aí o entendimento do Estado Nacional; ele é um ente político, e, com tal, poderá ser soberano e subordinado.

A ideia da globalização importa a da submissão ao poder global, como os mesmos liberais, que acusavam as Repúblicas Socialistas Soviéticas de dependência ao Comitê Central do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, hoje propugnam pela submissão ao decálogo da globalidade, o “Consenso (!) de Washington”.

O jurista paulista recém-falecido Dalmo de Abreu Dallari (O Futuro do Estado, 1980) entende que duas "peculiaridades deverão ser conjugadas para obtenção de um novo equilíbrio interno" dos Estados:

(a) “integração crescente do povo nos fins do Estado”

(b) “racionalização objetiva da organização e do funcionamento do Estado, implicando formas autoritárias de governo”.

Examinemos estas condições que o autor entende serem “aparentemente opostas”.

Talvez o Estado que tenha obtido melhores resultados neste século 21 seja a República Popular da China (China). Examinando a “governança chinesa”, pelas resoluções dos congressos do Partido Comunista da China (PCCh), manifestações do Comitê Central do PCCh, e palavras do presidente Xi Jinping, além dos noticiários e publicações sobre a China, destacamos dois princípios que nos parecem abranger todas as decisões: o modo nacional e a contemporaneidade.

Como se vê claramente, não são dogmas filosóficos ou ideológicos, como se poderia esperar de um país que se intitula “popular” e tem no “partido comunista” o seu poder político. São orientações pragmáticas que buscam o apoio do povo e a orientação para as opções deste mesmo povo: nacionalismo e foco no futuro.

Ao definir que “todos os poderes do Estado pertencem ao povo”, ou como se expressam “o povo é o dono do País”, há a imediata correlação com a forma de decisão pelo “sistema de assembleias populares” que permite a efetiva concretização desta definição. E, ainda mais, que este sistema de governança permite a autonomia regional, em sua base mais diretamente interligada com o povo.

O sistema de governança se constrói a partir do mais necessário, indispensável contato com a questão, com a realidade, ao mais abstrato e geral ambiente decisório, das políticas e estratégias. Eles não se misturam, mas existe a natural hierarquia que se depreende de qualquer formulação, para todo e qualquer campo da ação. Assim se estrutura a espinha mestra da governança chinesa: as assembleias populares. Delas se desprendem, mas a elas se subordinam, as ações consultivas e executivas dos comitês. E todos são escolhidos entre os que tiveram seu ingresso, no sistema de governança, pelo voto.

Do relatório do 19º Congresso Nacional do PCCh (2017): “Persistir na posição do povo como dono do país demonstra plenamente que a democracia socialista chinesa é a democracia mais ampla, mais autêntica e mais efetiva, que salvaguarda os interesses fundamentais do povo. Desenvolver esta política implica suprir as necessidades do povo, garantir seus direitos e interesses, incentivar seu entusiasmo e criatividade e assegurar, com o sistema institucional, sua posição de dono do país.”

O que estamos apresentando é o sistema que sendo nacional tem suas bases nos municípios ou mesmo nos distritos, e vai sendo a partir daí estruturado até o nível mais elevado da governança: a definição das políticas e das estratégias. Paralelamente são também constituídos, sempre com os mesmos eleitos, guardados os interesses e habilitações, os comitês consultivos e executivos.

Uma diferença, haverá outras, do sistema chinês é a abertura participativa da iniciativa privada, que é limitada à precedência do trabalho ao capital nas formulações políticas, estratégicas e nas decisões em todos os níveis.

Mas há, acima de todos, o interesse nacional.

Felipe Maruf Quintas, doutor em ciência política, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

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