Geraldo Luís Lino
Geraldo Luís Lino
Geólogo, ex-consultor ambiental, escritor e diretor do Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa)

Brasil: “independência verdadeira” ou Methuen 4.0?

As ilusões com o posicionamento do Brasil como provedor de “serviços ambientais” se assemelham a uma versão 4.0 de um Tratado de Methuen proposto às principais potências industriais do mundo.

Publicado em 14/08/2023
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Em seu programa semanal na TV Brasil divulgado diretamente de Bruxelas, onde participou recentemente da 3ª Cúpula CELAC-União Europeia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou entusiasmadamente que a transição energética motivada pela mudança climática representa uma “chance excepcional” para o Brasil alcançar uma “independência verdadeira”.

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Segundo ele: “O Brasil tem uma chance excepcional. Nunca antes na história do Brasil, vi tanta chance para o Brasil conquistar aliados, espaço e investimentos. Sobretudo, nessa questão da transição energética, com as energias eólicas, solar, biomassa, etanol e biodiesel. Agora, com o hidrogênio verde, a chance do Brasil é extraordinária. A gente não pode jogar fora essa oportunidade. Acho que o século 21 definitivamente vai ser o século da independência verdadeira do Brasil, do ponto de vista econômico, cultural, social e também geopolítico... E o Brasil, que já era importante, o Brasil agora com a questão, sabe, da transição energética que o mundo está atravessando, o Brasil tá virando mais importante ainda, porque todo mundo tá de olho na Amazônia (Presidência da República, 18/07/2023)”.

A convicção do presidente, ao conferir à Amazônia o papel de principal ativo do Brasil como vetor de desenvolvimento nas próximas décadas, corresponde à percepção de importantes setores das elites nacionais que se orientam pelo ilusório conceito de “potência verde”, o posicionamento do País como um grande prestador de “serviços ambientais” ao mundo, em troca de eventuais fluxos de investimentos rotulados como sustentáveis. Neste cenário, os biomas Amazônia e Cerrado, submetidos a um severo regime de “desmatamento zero”, funcionariam como as principais vantagens comparativas brasileiras na pauta do desenvolvimento global.

A História está repleta de exemplos de nações que tiveram o seu desenvolvimento obstaculizado durante longos períodos - não raro, séculos -, por conta de decisões que, mesmo nas circunstâncias dos momentos em que foram tomadas, se mostravam equivocadas à luz dos melhores entendimentos disponíveis. No entanto, prevaleceram, devido à supremacia de forças políticas e econômicas consolidadas em torno de interesses particulares ou de classes, com visão limitada dos respectivos momentos históricos e descompromissados com qualquer ideia de progresso e destino comum com suas sociedades.

Um exemplo notável é a renúncia de Portugal à industrialização, no início do século XVIII, consolidada com o fatídico Tratado de Methuen de 1703 (também conhecido como Tratado dos Panos e Vinhos), segundo o qual as exportações de tecidos ingleses para Portugal seriam isentas de tarifas e as de vinhos portugueses para a Inglaterra teriam tarifas um terço inferiores às impostas aos vinhos franceses.

Motivado pela delicada situação lusitana no concerto político europeu da época, à qual suas elites dirigentes optaram por se acomodar, o tratado teve consequências determinantes. Ao adotar a fabricação de vinhos como “vantagem comparativa” (as exportações de vinhos franceses se reduziram à época, devido à guerra com a Inglaterra), Portugal sepultou o que restava dos esforços manufatureiros baseados na tecelagem, implementados nas últimas décadas do século XVII por estadistas de visão como Duarte Ribeiro de Macedo e Luís de Meneses, Conde de Ericeira, seguidores das políticas protecionistas e de incentivos públicos do ministro da Fazenda da França, Jean-Baptiste Colbert, mentor histórico do “dirigismo econômico”. Como a demanda de vinhos portugueses na Inglaterra era muito inferior à de tecidos ingleses, a balança comercial tornou-se bastante desfavorável a Portugal, obrigado a cobrir o déficit com os metais preciosos remetidos do Brasil, que apenas faziam escala em Lisboa e acabavam nos cofres ingleses. E o uso excessivo de terras para o cultivo de vinhos acabou prejudicando a produção de alimentos, gerando elevação de preços e insatisfação popular.

Embora o Tratado de Methuen tenha sido formalmente encerrado em 1736, os seus efeitos se estenderam no tempo, contribuindo para prolongar uma inércia de baixa complexidade econômica e capacidade produtiva, que aprisionou Portugal a uma agricultura rudimentar, afastou-o da Revolução Industrial e o manteve até o século XX como um dos países mais atrasados da Europa.

As ilusões com o posicionamento do Brasil como provedor de “serviços ambientais” se assemelham a uma versão 4.0 de um Tratado de Methuen proposto às principais potências industriais do mundo.

Em reunião com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, Lula reforçou essa imagem: “O Brasil vai cumprir com sua parte. É compromisso assumido, compromisso de fé. Queremos discutir com o mundo a preservação da floresta (Deutsche Welle, 17/07/2023)”.

Não será com créditos de carbono e instrumentos semelhantes que o Brasil poderá deixar o virtual pântano de estagnação em que se encontra atolado desde 2015 e, principalmente, dar o salto de desenvolvimento necessário para galgar o patamar das economias avançadas. De modo algum, a “floresta em pé” e o “desmatamento zero” poderão ser os principais ativos do País nessa trajetória. Ao contrário, dependendo da forma como forem entendidos, poderão converter-se em camisas-de-força para as políticas públicas referentes aos biomas Amazônia e Cerrado, além de sérios obstáculos para toda sorte de atividades econômicas e empreendimentos produtivos.

Tais considerações não implicam em desprezo à chamada bioeconomia, a combinação de tecnologias inovadoras com recursos biológicos, em especial, na Amazônia Legal. O vasto potencial biológico da região deve ser desenvolvido e explorado ao máximo, com o envolvimento dos poderes públicos, instituições de pesquisa, iniciativa privada e comunidades locais, em uma sinergia de esforços de enorme potencial para consolidar o setor como um diferencial para as perspectivas de desenvolvimento e progresso dos amazônidas.

Entretanto, isso não pode significar uma renúncia às demais atividades econômicas, como a produção agropecuária, indústria madeireira, mineração, exploração de petróleo e gás e a implementação de infraestruturas modernas de transportes, energia e comunicações, sem as quais qualquer esforço de desenvolvimento será inócuo.

Tampouco, essas precauções sinalizam qualquer sugestão de se conceder carta branca a todo tipo de atividades ilegais que acarretem impactos ambientais, mas, em vez disto, propõem uma adequada proporcionalidade entre a aplicação da legislação ambiental (a mais rigorosa do mundo) e as atividades econômicas, que, com frequência, mal superam o limiar das necessidades de subsistência das populações locais.

Em paralelo, será preciso que muitos brasileiros deixem de lado certa visão idílica do meio ambiente, a qual resulta na percepção das atividades humanas como essencialmente deletérias na natureza, considerada como um “santuário” preferencialmente intocável, além de uma espécie de complexo de culpa em relação à suposta devastação dos biomas Amazônia e Cerrado.

Ora, o Homo sapiens vem transformando a natureza desde que surgiu no planeta, há quase 300 mil anos e, sim, já se converteu em uma autêntica força geológica, como apontava há quase um século o grande geólogo russo Vladimir Vernadski, que consolidou o termo “noosfera” (esfera da razão), para qualificar a extensão das atividades humanas. Para ficar num único exemplo, a quase totalidade dos vegetais atualmente consumidos é constituída de variantes das espécies originais existentes antes da Revolução Agrícola do Neolítico, “domesticadas” ao longo de milênios por métodos empíricos e, mais recentemente, científicos, de melhoramento genético.

No Brasil, a ação humana vem modificando os biomas desde muito antes da chegada dos europeus, em especial, na Amazônia, cujos habitantes originais tiveram grande influência na distribuição da biodiversidade e na formação de solos favoráveis a cultivos, as chamadas Terras Pretas de Índio, encontradas em toda a Bacia do Amazonas. A partir do século XVI, a colonização portuguesa introduziu muitas das espécies vegetais e animais hoje familiares: arroz, café, cana-de-açúcar, coco, banana, laranja, manga, melão, abóbora, alho, hortelã, alface, couve, pepino, cebola, capim-gordura, gatos, bovinos, caprinos, suínos, equinos e aves como galinhas, patos e várias outras. No último meio século, o desenvolvimento da agricultura tropical em grande escala, proporcionado pelo engenho dos pesquisadores da Embrapa e de institutos universitários e pelo espírito pioneiro dos produtores do Cerrado, representa a culminância dessas intervenções, além de uma façanha inusitada na história da humanidade. Antes dela, os maiores produtores de alimentos eram países de clima temperado e ninguém plantava soja e trigo na faixa intertropical – o que deveria ser motivo de orgulho dos brasileiros, em vez de alvo de execração por parte de cultores do ambientalismo raso.

Quanto à alegada devastação daqueles biomas, trata-se de uma proposição tão exagerada quanto à referente às suas importâncias para a dinâmica climática global - não maior, por exemplo, que a das florestas boreais do Hemisfério Norte. Estas, por sinal, têm tantos ou mais problemas que os biomas brasileiros, vide os grandes incêndios recentemente ocorridos no Canadá, que destruíram em dois meses uma extensão florestal maior que a área afetada na Amazônia em dez anos, como oportunamente observou o renomado agrônomo Evaristo de Miranda, recém-aposentado da Embrapa, em um artigo publicado em 7 de julho no sítio da revista Oeste.

A propósito da badalada transição energética, as suas limitações tecnológicas, altos custos e, ironicamente, elevados impactos ambientais, estão começando a evidenciar a sua inviabilidade como substitutos em grande escala dos combustíveis fósseis, principalmente, as fontes eólicas e solares e o chamado hidrogênio verde. Como sintetizou no estudo The “Energy Transition” Delusion: a Reality Reset (A ilusão da “transição energética”: um reinício de realidade), o físico e engenheiro Mark P. Mills, pesquisador da Northwestern University e do Manhattan Institute: “As demandas de que os hidrocarbonetos não sejam mais usados – para gerar eletricidade, aquecer lares, alimentar fábricas ou transportar pessoas e bens de um lugar a outro – emergem de objetivos enfocados no clima. Observações de que eles não estão sendo substituídos e não podem ser em qualquer período de tempo significativo, evocam acusações capciosas de ‘negacionismo climático’ ou equivalentes. Mas as realidades da física, da engenharia e da economia dos sistemas energéticos não são dependentes de quaisquer fatos ou crenças sobre a mudança climática”.

O Brasil tem, de fato, enormes desafios para colocar-se de vez na trilha de um salto quântico civilizatório, incomparavelmente mais sérios que os temas mais frequentes das pautas ambientais. Para citar apenas alguns:

- o esgotamento do bônus demográfico e a queda drástica das taxas de fertilidade, com o consequente envelhecimento rápido da população;

- a reversão do acelerado processo de desindustrialização e perda de complexidade econômica;

- a necessidade de um choque educacional visando qualificar a juventude, mas também grande parte da população adulta, para lidar com os impactos das tecnologias digitais e de informação nos processos produtivos;

- a universalização dos serviços de saneamento básico e modernização da disposição de lixo, cujas carências e consequências representam, de longe, os maiores problemas ambientais do País;

- um salto qualitativo e quantitativo na infraestrutura de transportes de maior eficiência, com ênfase em ferrovias e hidrovias;

- um amplo empenho na construção civil, para suprir as graves deficiências de moradias dignas e afastadas de áreas de risco (outro sério problema ambiental geralmente ignorado).

Em síntese, assim como não faltaram em Portugal, em todo o período influenciado pelo Tratado de Methuen, vozes lúcidas advertindo sobre os rumos equivocados tomados pelo país, não faltam no Brasil do presente as que apontam os problemas reais e as opções mais promissoras para enfrentá-los. Mas é preciso trabalhar para evitar que, como na antiga Metrópole, a insistência em ignorá-las possa comprometer o futuro por um período indeterminado.

Geraldo Luís Lino, geólogo e diretor do Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa).

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