No xadrez geopolítico, xeque ao hegemônico
Se os EUA se consideram excepcionais e que o direito internacional não se aplica, em que posição fica a multipolaridade?
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O xadrez geopolítico tem como adversários os EUA-UE-OTAN e aliados (abreviadamente o ocidente) e a Rússia-China e aliados. Duas lanças da Rússia-China colocaram em xeque o ocidente, cujo jogo ficou bastante fragilizado com a reeleição de Putin. Não se tratou apenas dos impressionantes 87% em eleições altamente participadas com centenas de observadores internacionais, mas também das felicitações recebidas de todos os continentes, enquanto no ocidente foram consideradas "ilegais". Pelos vistos ainda não perceberam em que o mundo vive. [1]
A declaração de Putin de que "quanto a Karkov de momento não temos plano para ocupar a cidade", anula a jogada de militarização da UE/OTAN, dado que vencida a Ucrânia a Rússia iria invadir a Europa, da Polónia talvez até Lisboa.
A partir do momento em que se tornou evidente a derrota da guerra da OTAN por procuração na Ucrânia, a propaganda passou do triunfalismo idiota para uma espécie de pânico não menos idiótica, atestando a incapacidade de previsão dos estratégias do ocidente e dos seus propagandistas. Assim, de repente, devido à ameaça de uma "invasão russa", propagando uma economia de guerra, passou a ser urgente discutir o serviço militar obrigatório, aumentar as despesas militares para mais de 2% do PIB, querer enviar tropas para a Ucrânia ( além do que formal ou informalmente já está lá) e que o material fornecido pela OTAN possa atacar o interior da Rússia.
Embora tudo possa levar o mundo a uma guerra nuclear, faz parte da oração de pessoas cuja missão se limita a apoiar a OTAN, sem medir as consequências do que diz. São pagos para isso – claques – mas irresponsáveis e sobretudo ignorantes na matéria. Fazem parte do jogo inconsequente, incapaz de inverter ou mesmo alterar a situação em que as estratégias do ocidente se colocaram.
Vem então a declaração conjunta de Putin e Xi Jinping que coloca o ocidente na situação de assumir a derrota no jogo que provocou e a partir para outro jogo em que não tem a primazia (não joga com as "brancas", não lhe compete a jogo inicial ) ou então desistir do "xadrez" geopolítico e passar à violência direta. Diga-se que o ocidente está muito mal colocado em ambos os casos.
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A declaração conjunta da China e da Rússia não é apenas um extenso registo da colaboração entre os dois países em todos os campos, incluindo o militar, constitui uma recusa determinada do mundo unipolar liderada pelos EUA. Definir a filosofia política que os dois países apresentam ao mundo para o século XXI e que estão a implementar com nítido sucesso.
A incapacidade de análise, a cobardia intelectual ou o dever de obediência, levaram os "comentadores" a ignorarem o texto e o que representam para as vidas de todos, perdendo-se a fantasiar sobre alegados antagonismos históricos entre os dois países ou mentindo – estupidamente – de que 90% das exportações da China seriam para o ocidente – ou seja, a China não pode passar sem "nós"!
Toda esta deformação da realidade histórica e atual esqueceu várias coisas. Primeiro, se recriminações o povo chinês tem a fazer são às potências ocidentais e ao imperialismo japonês, com guerras de agressão, ocupação, a infame guerra do ópio, o tratamento como sub-humanos, etc. [2] Segundo: a afirmação geopolítica depende de um conjunto de fatores interligados, destacando-se: o potencial económico, a capacidade militar, a repetição e a influência internacional. Áreas em que o Ocidente tem apresentado um declínio contínuo.
O texto ultrapassa a formalidade de uma reunião entre Chefes de Estado, o que está em causa é a definição de um novo relacionamento entre Estados, designado pela multipolaridade, que delibera em acelerada consolidação. A multipolaridade, conforme defesa, contribuiu para a democratização das relações e da justiça internacional, no respeito e pleno cumprimento incondicional dos objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas.
Na visão exposta da multipolaridade, todos os países têm o direito de escolher de forma independente do seu próprio modo de desenvolvimento, sistemas políticos, económicos e sociais, de acordo com as condições nacionais e os desejos do seu povo, opondo-se à ingerência nos assuntos internos de Estados soberanos, às avaliações unilaterais e à “jurisdição de armas de longa duração”, bem como as ações baseadas na ideologia. A multipolaridade opõe-se à politização das relações económicas internacionais, incluindo no trabalho de organizações multilaterais nas áreas de comércio, finanças, energia e transportes.
A par destas afirmações, o documento identifica claramente os que se opõem às teses da multipolaridade: os países que aderem ao hegemonismo e à política de poder, tentando substituir e subverter uma ordem baseada no direito internacional, por uma “ordem baseada em regras”, condenando-se no texto as ações unilaterais que contornam o Conselho de Segurança das Nações Unidas, violam o direito internacional e a Carta das Nações Unidas.
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O neocolonialismo e a hegemonia são apontados como totalmente contrários à promoção de intercâmbios e compreensão mútua entre civilizações, considerando inaceitáveis interferir nos assuntos soberanos dos Estados por meio de jurisdições multilaterais ou de um país.
A tentativa dos Estados Unidos de minar a estabilidade estratégica para manter sua superioridade militar absoluta, específica uma "séria preocupante", para a Rússia e a China. Os EUA e o Reino Unido, desenvolvem com a Austrália a cooperação com submarinos nucleares, implementando um sistema para se implantarem no acesso às regiões da Ásia-Pacífico e da Europa. É também "séria preocupação" o fato dos Estados Unidos terem começado a tomar medidas para instalar sistemas de mísseis terrestres de alcance intermediários na região da Ásia-Pacífico sob o pretexto de realizar exercícios conjuntos com seus aliados que claramente têm como alvo a China e a Rússia .
O documento "condena com a maior veemência possíveis essas ações extremamente desestabilizadoras, que representam uma ameaça direta à segurança da China e da Federação Russa", que apresenta estas ameaças, fortalecimento a cooperativa e cooperação "para lidar com a política não construtiva e hostil de “dupla contenção” dos Estados Unidos em relação à China e à Federação Russa." "A Rússia tem planos para implantar e fornecer aos seus aliados mísseis terrestres de curto e médio alcance."
O documento declara a oposição à formação de blocos fechados e exclusivos na Ásia e no Pacífico, especialmente alianças militares contra terceiros. Os movimentos destrutivos da OTAN na região da Ásia-Pacífico têm um impacto negativo sobre a paz e a estabilidade estratégica na região da Ásia-Pacífico, como a Parceria de Segurança Trilateral EUA - Reino Unido - Austrália (AUKUS).
O que pode ser considerado como uma demarcação de campos é, além da situação de Taiwan, uma clara afirmação do posicionamento da China e da Rússia opondo-se aos atos de dissuasão dos Estados Unidos e seus aliados na esfera militar, provocando o confronto e um possível conflito armado com a República Popular Democrática da Coreia. As duas partes insta os Estados Unidos a tomar medidas para aliviar as forças militares na península, abandonar a intimidação, as avaliações e a repressão e criar condições desenvolvidas para ser reiniciado o processo de negociação entre a República Popular Democrática da Coreia e os outros países envolvidos , com base no princípio do respeito mútuo, levando em consideração as preocupações de segurança de cada um. Os meios políticos e diplomáticos são a única saída para os problemas na península e apelam a todos os países para apoiarem uma iniciativa conjunta construtiva da China e da Rússia.
Na sua declaração, a Rússia e a China manifestaram claramente que "se opõem aos atos hegemónicos dos Estados Unidos para mudar o equilíbrio de poder no nordeste da Ásia, expandindo o seu poder militar e formando blocos militares. Os EUA aderem à independência da Guerra Fria e ao modelo de confronto de campo, colocado a segurança de um “pequeno grupo” acima da segurança e da estabilidade da região, colocando em risco a segurança de todos os países.
Refira-se também a nota sobre a Convenção sobre Armas Biológicas: deve ser totalmente cumprida, continuamente fortalecida e institucionalizada com um protocolo juridicamente vinculativo que contém um mecanismo de verificação eficaz, mostrando-se profundamente preocupado com a politização da Organização para a Proibição de Armas Químicas.
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O documento não se limita a uma declaração de princípios: ao identificar os seus adversários expõe a forma de combater os seus desejos. Trata-se não apenas de explicar o mundo, mas de o transformar no sentido exposto, uma transformação baseada nos princípios da multipolaridade, partindo da cooperação econômica para o aprofundamento das relações diplomáticas e geopolíticas.
Em primeiro lugar, é dado destaque ao aperfeiçoamento da colaboração entre os BRICS e ao fortalecimento da sua cooperação nas áreas de comércio, economia digital e saúde pública. A desdolarização é neste contexto intensificada, "através do diálogo" promovendo as moedas dos diversos países na realização do seu comércio, "ferramentas de pagamento e plataformas para operações comerciais entre os países do BRICS."
É significativa a intenção de continuar a fortalecer a "cooperação estratégica e em vários campos com os países e organizações relevantes na América Latina e no Caribe, incluindo, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), o Mercado Comum do Sul ( MERCOSUL), a Aliança do Pacífico (AP), a Comunidade Andina (CAN), a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), o Sistema de Integração Centro-Americana (SICA), a Comunidade do Caribe (CARICOM) e outras organizações regionais , bem como organizações internacionais designadamente como Nações Unidas, o Grupo dos Vinte (G20) e o BRICS."
Ou seja, é desenhada uma integração económica que o ocidente diria "iliberal", convergindo para um padrão comum de relações que se propõe em causa o sistema de hegemonia unipolar do ocidente e o dólar como arma política. Com este objetivo, é afirmado que a Rússia e a China "fortalecerão a progressão".
Como dissemos, partindo destas suposições avançam-se para uma nova configuração da liderança mundial: "aumentar a representação dos países do “Sul Global” no sistema de governação económica global. A Rússia e a China, dão as boas-vindas à União Africana como membros do Grupo dos Vinte (G20) e estão prontos para trabalhar de forma construtiva em benefício dos mercados emergentes e dos países em desenvolvimento."
O documento ao estipular a geopolítica do mundo multipolar pós-hegemonia ocidental, define claramente aquilo que a Rússia e a China defendem e aquilo que se opõe: defendem a manutenção da paz e da estabilidade no Médio Oriente e opõem-se à interferência nos Internos dos Estados Regionais. Apoiam uma solução abrangente, justa e rigorosa para a questão da Palestina com base no direito internacional universalmente reconhecido, tendo a solução de dois Estados como elemento fundamental, com o estabelecimento de um Estado da Palestina independente nas fronteiras de 1967, com Jerusalém Oriental como sua capital, viver em paz e segurança ao lado de Israel.
Afirmamos cooperar ativamente para consolidar a segurança na região do Golfo e promover a confiança mútua e o desenvolvimento sustentável entre os países da região. Apoiam a soberania, a independência, a unidade e a supervisão territorial dos Estados da Síria e da Líbia e promovem um processo de solução política liderada pelos seus povos.
Relativamente ao Afeganistão, propõe-se fortalecer a cooperação, promover a sua independência e neutralidade, como país unido e pacífico, livre de terrorismo e narcóticos, em harmonia com os seus vizinhos. Apoiam o papel positivo desempenhado nas reuniões dos ministros das Relações Exteriores dos países vizinhos do Afeganistão, nas consultas do Modelo de Moscovo sobre o Afeganistão, no Mecanismo Quadrilateral China-Rússia-Paquistão-Irão, na Organização de Cooperação de Xangai e outras plataformas regionais, na solução da questão afegã.
Em África também a Rússia e a China substituíram a presença ocidental, aparecendo como uma oportunidade para um número crescente de países se libertarem da tutela neocolonial. O documento refere-se a "manutenção de uma atmosfera sólida e saudável para a cooperação internacional em África, continuando a fortalecer a colaboração, contribuindo para apoiar os países africanos na solução dos seus problemas africanos de uma maneira africana."
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A multipolaridade é progressista? A pergunta desvia-nos do essencial. A multipolaridade não é ideológica e faz a sua força, provavelmente no futuro a sua fraqueza. Porém, é sem dúvida um progresso civilizacional: não é anticomunista, recusar a superioridade ou excecionalidade de uma nação ou de uma cultura em relação a outras, defender o respeito pela soberania de cada país, constituindo o interesse e o respeito mútuos a base das relações internacionais.
Se estas propostas foram consideradas respeitadas, as tragédias para importar o mundo unipolar não ocorreram, como na Coreia, no Vietnã, ou os massacres na Indonésia, nem as guerras pós 2002 – alegadamente para combater o terrorismo – nem os dramas das "revoluções coloridas ". Salvador Allende poderia ter garantido a sua experiência de socialismo, a social-democracia venezuelana poderia exigir sem interferências e a sabotagem das sanções, etc. A África não poderia ter sofrido com os Mobutus, a América Latina os crimes dos Pinochets, Vilelas e quejandos, todos apoiados pelo hegemônico. Na Europa não teria sido promovido o fascismo desde os anos 1960 com a Gládio e o assassinato físico ou político/mediático de líderes progressistas.
Ter o mundo sem essas ameaças, intrínsecos ao mundo neocolonial e unipolar, é um avanço civilizacional eficaz. Contudo, não é essencial que a questão da multipolaridade vá passar ao lado de movimentos e partidos que se assumem de esquerda. Limitam a sua intervenção à agenda dos meios de comunicação e a uma relativa “irreverência”.
O mundo está a mudar, mas aparentemente certas forças assumidas como progressistas acham que não se devem falar nisso porque as "pessoas" não entenderiam. Na Universidade Popular de Paris, ensinava-se o marxismo aos operários que, como disse George Politzer, sabiam mais de filosofia que na Sorbone – o que aprendiam estava certo...
Se os EUA – e por acréscimo os seus aliados/vassalos – se consideram excepcionais e que o direito internacional não se aplica, em que posição fica a multipolaridade? Seria engenhosidade pensar que tudo se vai desdobrar pelos gabinetes e chancelarias. Não é por acaso que, perdidos a guerra na Ucrânia, políticos e comentadores no ocidente falem numa guerra dentro de cinco a oito anos contra a Rússia, pretendendo preparar-se para o efeito.
Grant Shapps, ministro da Defesa do RUSSIA, diz que a Rússia é aparentemente mais poderosa do que nunca e que uma aliança entre Moscou e Pequim representaria uma “ameaça direta ao nosso modo de vida” (Geopolítica ao vivo, Telegram, 22/05). Mas será que as pessoas morrerão na defesa de um "modo de vida" em que o 1% mais rico possui quase 50% da riqueza mundial e os 50% mais pobres possuem menos de 1%?
As partes em confronto irão exigir o debate em que em cada momento contam as forças e fragilidades de cada um: econômicas, militares, geopolíticas. Em todos estes campos o Ocidente tem demonstrado fragilidades insuperáveis dentro da via atual.
[1] Zelensky que, de acordo com a Constituição ucraniana, desde o passado dia 20 usurpa o poder como presidente, recusando-se a realizar eleições, passa nos meios de comunicação como símbolo da “democracia” que temos de defender.
[2] A visão que a China tem do seu passado mais ou menos recente, pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=tU1Ooouk9c0 , 100 anos PCC
24/maio/2024
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