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Daniel Vaz de Carvalho

Quatro lições de “democracia liberal” (1)

As indústrias básicas da UE, como siderurgias, cimenteiras, fertilizantes e petroquímicas, queixam-se do alto custo da energia. A Alemanha, principal economia da UE, desindustrializa-se, os preços da energia tornam as empresas industriais não competitivas.

Publicado em 14/09/2023
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"Esta guerra na Ucrânia é o epítome macabro do capitalismo ocidental.", Finian Cunningham

1ª lição – A guerra mediática ou levados para a ilha dos lotófagos
2ª lição – Para ser democrata basta obedecer aos EUA
3ª lição – Matai-vos uns aos outros
4ª lição – Não se cansem da guerra

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1ª lição - A guerra mediática ou levados para a ilha dos lotófagos

O jornalismo independente e deontologicamente profissional foi varrido pela precariedade e pelo mercenarismo de propagandistas.

A guerra midiática, visando controlar a consciência coletiva, é a primeira lição que nos dá a “democracia liberal”, eufemismo para sociedades oligárquicas e belicistas. A guerra mediática do liberalismo implica quer o domínio dos media quer o esquecimento por parte das pessoas. Esquecimento dos fatos, dos contextos, da história dos conflitos, da própria existência social. É como se se fosse levado para a “ilha dos lotófagos”. Na Odisseia, Ulisses aporta a uma ilha em que a ingestão do lotos (ou lótus) provocava o esquecimento, o apagamento do passado, da noção do próprio ser, abrindo a possibilidade do recomeço noutra matriz de existência.

O que nos remete para a ambição imperialista e neoliberal do Great Reset – o Grande Recomeço – e a criação de um “homem novo”, censurando e ostracizando aqueles que procuram salvar os seus semelhantes das drogas mediáticas.

A ideia de “homem novo” é controversa. O “homem novo” neoliberal, ignora os contextos em que se insere, ficando entregue a forças que se mascaram com uma abstração designada “mercado”. Diferente é o “homem novo” marxista – objeto de ambiguidades e incorreções contrariando o materialismo dialético. O que em temos marxistas o “homem novo” continha não era o esquecimento, mas libertar-se da alienação e o pleno assumir da sua condição de produtor, direto ou indireto, coletivamente dono do produto.

Ao “homem novo” amoral e unidimensional (o homo economicus) do neoliberalismo opõe-se o ser humano que o marxismo perspetiva, dotado de consciência social, elevado grau de humanismo e compreensão dos processos históricos, em que os critérios individuais e os coletivos poderão coexistir harmonicamente.

Um dos fundamentos da guerra mediática é o controlo quase total da informação. A censura, cada vez mais generalizada, disfarçada com o seu contrário, elimina tudo o que contrarie ou se afaste do padrão dominante. Esta situação, procura o domínio das consciências, leva o comum das pessoas a apoiarem e a votarem o que é contrario aos seus interesses, acabando por rejeitar a lógica dos factos e a própria “dúvida sistemática” que definiu o pensamento moderno. Aquilo que Harold Pinter designou como "o vazio submisso".

Compreende-se ao serviço de quê estão os media corporativos: todas, exceto uma das dez primeiras empresas de media, pertencem aos EUA, tal como o Google, Twitter, Facebook. Só a propaganda permite o apoio público que as oligarquias precisam para conduzir os países para guerra e que os sacrifícios daqui decorrentes sejam aceites, sem grandes e generalizados protestos.

E neste campo têm tido êxito. Em 2018, nos EUA apenas 40% viam a ascensão da China como uma ameaça aos EUA. Quatro anos depois, 66% dos adultos dos EUA consideram a China como um ameaça crítica aos interesses vitais de os EUA". Contudo, uma sondagem da Pew descobriu que têm visões favoráveis à China países como Quénia (72%), Nigéria (80%) México (57%), embora não sejam países com alto nível de cooperação com Pequim.

Segundo William Colby, ex-diretor da CIA, "a CIA controla todos os que têm importância nos principais media". São gastos centenas de milhões de dólares para a campanha de doutrinação dos media, garantindo que qualquer pessoa com pensamento crítico e que considere que se deve seguir uma política de compromissos, paz e segurança na Ucrânia ou com a China, seja no mínimo ridicularizado ou então denunciado como traidor, “putinista”, fantoche de Xi Jinping.

Tucker Carlson, ex-apresentador da Fox News, afirma: "Praticamente tudo o que a NBC News ou o New York Times disseram sobre a guerra na Ucrânia é mentira". "A Ucrânia é uma democracia." "Vladimir Putin tenta dominar o mundo". “Os ucranianos estão ganhando.” "Todas estas afirmações são falsas. O Exército ucraniano está perdendo e muito. A Ucrânia está sendo destruída. Sua população está sendo massacrada em batalhas desiguais com um inimigo tecnologicamente superior ou espalhada aos milhões por outros países, como refugiados.” (Ukraine Watch – Telegram, 22/08)

O nervosismo pelo falhanço de levar a Rússia ao caos, deu lugar à russofobia, em que o neonazismo ucraniano embora protagonista de políticas repressivas, tem o apoio das “democracias liberais” e cuja existência e ações são escamoteadas pelos média. A distorção e o apagamento histórico tem sido usado para a confusão ideológica, perda de raízes e memória das lutas antifascistas que geraram o que de democrático e progressista ainda subsiste na Europa. Na Ucrânia, Polónia, Estados Bálticos, monumentos à derrota do nazifascismo são destruídos ou vandalizados.

Em dezembro de 2021, a Rússia propôs um plano de segurança para a Europa. Isso foi ridicularizado ou suprimido pelos media. Tal como manifestações contra a guerra em países da NATO, como recentemente em Amesterdão, com cartazes: "Parem o fascismo e o nazismo na Ucrânia", "Devemos parar o fornecimento de armas a Kiev". Ou em Atenas, no estádio do Olympiacos com: "Zelensky - ditador" e "Parem o nazismo ucraniano" (Intel Slava Z – Telegram 26 e 29/08) Mas também em Kiev mulheres ucranianas exigiram que seus maridos, pais e filhos desaparecidos ou capturados fossem encontrados e levados para casa.

Diariamente centenas de soldados morrem na Ucrânia e milhões de dólares em armamento ardem, porém o embaixador dos EUA para a UE, Mark Gitenstein, afirma que as sanções estão a esgotar as capacidades militares do Kremlin. "Estou muito confiante que os ucranianos vão ganhar. Já sei que Putin perdeu. Pode demorar mais tempo do que pensámos, mas vai demorar o tempo que for preciso" (!). “Os nossos controlos de exportação e sanções fizeram com que as suas forças armadas recuassem até ao século XIX (!!) A vitória está ao alcance, desde que o apoio financeiro e militar do ocidente continue.” (?!)

O sr. embaixador sabia que falava sem contraditório para vassalos ignaros, que não lhe iam perguntar pelos mísseis hipersónicos russos – de que os EUA não têm equivalente – nem como o seu território seria defendido dos Poseidon, Sarmat ou os seus porta-aviões dos Kinzhal.

Podem os media esconder que na Ucrânia dominam organizações e grupos paramilitares neonazis, apresentando-os como defensores dos valores europeus, mas no resto do mundo e mesmo na Europa do ocidente os mais esclarecidos sabem o que esta mentira esconde: ganância oligárquica e arrogância imperialista.

Combater mentiras é cansativo, mas deve ser feito, diz o ex-veterano da CIA Larry Johnson, referindo-se a “comentadores” nos EUA: “É preciso ter estômago forte para ouvir o tsunami de mentiras que sai de seus lábios”. O mesmo se pode dizer dos de cá: o seu discurso não sai fora dos temas promovidos pelas centrais de (des)informação a nível internacional. Nunca são referidas perdas ucranianas, nem sondagens sobre o que pensam os ucranianos, aparecendo personagens isoladas com todo o ar de debitar textos encomendados.

2ª lição - Para ser democrata basta obedecer aos EUA

Trata-se de obter um certificado de democracia para fazer parte da dita “comunidade internacional” (OTAN, aliados e subordinados) mas que, como La peau de chagrin de Balzac, se vai reduzindo pelos atos dessa mesma “comunidade”.

Escrevia De Gaulle nas suas Memoires de Guerre, “O essencial (para os EUA) era evitar que tudo o que não era comunista não fosse levado a sê-lo. (…) Enfim perante a ameaça o mundo livre nada melhor tinha a fazer do que aceitar a liderança de Washington. Eis do que se tratava: nada de fronteiras, de desacordos, de garantias”. [1][1]

Este trecho configura já a "ordem baseada em regras" dos EUA, oposta a políticas que defendam a independência e soberania de cada país, agindo no interesse do povo. Os EUA derrubaram ou tentaram derrubar mais de 50 governos, a maioria democracias; interferiram em eleições democráticas em 30 países. Lançaram bombas sobre pessoas em 30 países, a maioria pobres e indefesos. Tentaram o homicídio de líderes de 50 países; reprimiram movimentos de libertação em 20 Países. A extensão e a escala desta tragédia não são relatadas nem reconhecidas pelos media; os responsáveis continuam a dominar vida política dos EUA. É neste sentido que Nick Turse afirma: “Quando é que um golpe de Estado não é um golpe? Quando os EUA assim o dizem”.

E nisto se baseia a “ordem baseada em regras”, que ninguém sabe quais são – os vassalos apenas obedecem – já que sanções não foram aplicadas, nem sequer sonhadas aplicar, aos Pinochets, Vilelas, Duvaliers, Mobutus, Suhartos, and so on…

Como disse Michael Hudson: Qualquer país que procure promover uma democracia através de gastos públicos em infraestruturas básicas ou no sector bancário, como a China está a fazer, é chamado de autocracia. E autocracias que impõem uma oligarquia para lutar contra a força de trabalho e impedir políticas que levariam a industrializar e enriquecer o país, é qualificada de democracia, não de autocracia.

Mas esta “ordem” abre fissuras, perde credibilidade. A guerra na Ucrânia veio mostrar as fragilidades e a hipocrisia de um discurso empolado de direitos humanos e democracia, mas que suporta o regime de Kiev, completamente desacreditado internacionalmente pela sua corrupção, domínio de neonazis e total dependência do ocidente. O colunista do The National Interest, Ted Snyder, observou que os Estados Unidos e a Europa ficaram surpreendidos com a reação neutra da grande maioria dos países africanos em relação à guerra e sanções contra a Rússia, identificando-se com um mundo multipolar.

O mundo multipolar é já um facto com a aliança entre a Rússia, China e Irão; a Arábia Saudita, Síria e Irão retomando relações; a expansão dos BRICS; a desdolarização em curso. Não deixa de ser extremamente significativo o facto de Putin e Xi Jinping terem decidido não estar presentes na reunião do G20, onde antes os EUA impunham a sua agenda. É tempo de os povos da UE/NATO, começarem a ver as mentiras de que também são vítimas.

A democracia que o ocidente leva para os países pobres e a respetiva guerra mediática ficou desmascarada no resto do mundo. A ligação Rússia – África, torna-se uma parceria estratégica reforçada com o “acordo dos cereais”. Noticiários afirmaram que “a Rússia rasgou o acordo”, porém o resto do mundo sabe que não foi assim, que o ocidente mais uma vez não cumpriu o que eram as suas obrigações acordadas. Até o secretário geral da ONU, no papel de “a voz do dono”, lacrimejava pela fome nos países pobres, mas dos cereais exportados da Ucrânia sob o acordo, mais de 70% foram para países de rendimento alto ou acima da média, enquanto os países mais pobres, como Etiópia, Sudão e Somália, Iémene, Afeganistão, receberam apenas uns 3% do volume total. Agora, sem “acordo”, a Rússia, fornecerá cereais e fertilizantes gratuitamente para as nações mais pobres e contratos de fornecimento em condições comerciais normais para as demais. O abastecimento está garantido: a Rússia teve a maior safra de cereais da história nesta temporada. Talvez sejam efeitos das alterações climáticas para aqueles lados…

Na realidade, a fome na África – e noutros continentes – resulta das políticas impostas pelo neocolonialismo e imperialismo. Agravaram-se em consequência das sanções e de recusar a paz na Ucrânia em abril 2022, conduzindo a cerca de menos 30 milhões de toneladas de cereais em África, de acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento, e um aumento de aproximadamente 300% nos preços dos fertilizantes, dificultando a vida dos agricultores no cultivo de cereais essenciais nos seus países.

Que imagem dão os líderes da UE/NATO aos povos de outros continentes? Recorde-se ainda De Gaulle, ao volver para Eisenhower: “Vós que sois militar acreditais que a autoridade de um chefe possa subsistir se repousar sobre o favor de uma potência estrangeira?” [2] Esta frase define o fundamento da completa perda de qualidade e do descrédito dos políticos e partidos do sistema.

Que prestigio a UE adquire perante o resto do mundo que se levanta contra o neocolonialismo e pela soberania, com um ridículo Joseph Borell a afirmar que “A Rússia é um anão económico", análoga a "um posto de gasolina cujo dono tem uma bomba atómica". Ou quando este “diplomata” nem sequer entende o que tem de racista e ofensivo para os outros povos a observação: "a Europa é um jardim rodeado por uma selva".

O abuso e arrogância dos países da OTAN ao apropriarem-se do ouro e reservas de países com os quais mantêm relações diplomáticas (Venezuela, Rússia), mais uma vez não pensaram nas consequências que outros países tirariam (dado que os imaginam ainda como suas colónias) não colocando o ouro e reservas naqueles países, para não vir a ser simplesmente roubado.

Uma arrogância que roça a inconsciência, como a do vice-chanceler da Alemanha, Robert Habeck, que numa visita à Índia, logo começou a criticar Nova Deli por não condenar a “guerra da Rússia na Ucrânia” nem cortar relações com Moscou. Por espantoso que pareça, isto vem do governante do país a que sabotaram uma fonte de energia essencial, o gasoduto Nord Stream.

A arrogância de ditar ao mundo formas de pensar e de se governarem, como se por herança divina aos EUA lhes tivesse sido entregue o mundo inteiro para explorarem conforme os interesses das suas oligarquias – instrumentalizando os conceitos de democracia e direitos humanos - levou os países do dito ocidente a afundarem-se nas sanções, outra forma de fazer guerra contra os povos que não seguissem as “regras”. Agora, despertam amargamente para o fracasso das suas opções, para que não têm soluções consistentes, continuando a escudar-se nas fastidiosas repetições de desacreditados “comentadores”.

Sem energia abundante e barata, os países da UE/OTAN enfrentam a desindustrialização, a perda de competitividade, cavam o buraco económico e financeiro onde se enfiaram, continuam a aumentar juros – sem avaliar e perspetivar resultados – e impor austeridade.

As indústrias básicas da UE,como siderurgias, cimenteiras, fertilizantes e petroquímicas, queixam-se do alto custo da energia. A Alemanha, principal economia da UE, desindustrializa-se, os preços da energia tornam as empresas industriais não competitivas. Em julho, o número de empresas insolventes aumentou 23,8% em variação homóloga. (https://t.me/wofnon) O PIB caiu dois trimestres consecutivos e mais recentemente estagnou. O Índice de Clima Empresarial caiu pelo terceiro mês consecutivo. "Infelizmente, não há melhoria à vista", lamenta Jörg Krämer, economista-chefe do Commerzbank, (https://archive.is/yP1wF)

A UE enfrenta não apenas uma crise, mas o colapso das suas economias, níveis de vida e posição no mundo. Isto por se ter posto ao lado dos neonazis de Kiev, não ter reagido ao “fuck UE” da sra. Nuland, ter vigarizado sucessivos acordos e desprezado propostas da Rússia.

Os líderes desta Europa não se respeitam nem respeitam os povos de que teoricamente dependem: apenas subsistem devido aos favores de uma potência estrangeira. Alguma razão terá o eurodeputado croata Vilibor Sincic: “A UE é um projeto americano, Bruxelas é a capital dos Estados Unidos na Europa.”

[1] Livre de Poche, Vol. III, pgs. 245-246
[2] Idem, Vol II pg. 142

12/Setembro/2023
Continua.
Este artigo encontra-se em resistir.info

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