Siga a AEPET
logotipo_aepet
aepet_autores_pedro_pinho
Pedro Augusto Pinho
Administrador aposentado, foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e Consultor das Nações Unidas (UN/DTCD).

Os novos 'Trapalhões': Cid, Jair, Torres e Arruda

No Brasil, as FFAA começam com a República, que a proclamaram

Publicado em 31/01/2023
Compartilhe:

“Existia no Brasil um partido republicano, e esse partido tornava-se cada dia mais numeroso, mais ruidoso, mais ansioso por dominar o país. Existia no Brasil um exército esquecido, mal organizado, mal instruído e mal pago: um exército onde havia um oficial para 13 soldados; onde o número de oficiais e uma longa paz dificultavam as promoções; onde o pobre soldado vivia fora da vida do regimento, destacado em pequenas guarnições de 20, 10, 5 e até dois homens, pelas vilas do interior, situação dissolvente de toda disciplina e destruidora de todo o respeito”. Eduardo Prado, Fastos da Ditadura Militar no Brasil, 1890.

1ª Parte: da Colônia à República

A história das Forças Armadas (FFAA) brasileiras não difere de outras pelo mundo. Há grandes líderes, que salvaram a nação e proporcionaram a grandeza do país, como o general Charles De Gaulle, ao lado de traidores que entregaram o país a seus inimigos, como o Marechal Henri Pétain. Na Alemanha, o estadista Otto von Bismarck, verdadeiro fundador do Império, ao lado de Hermann Göring e Joseph Goebbels, que o destruíram.

No Brasil, as FFAA começam com a República, que a proclamaram. Antes não havia o estamento militar, não se constituía instituição que se municiava para enfrentar inimigos externos. No Império, as FFAA mais se caracterizaram por perseguir escravos e combater movimentos nativistas e republicanos. A Guerra que se travou contra o Paraguai foi antes a guerra por procuração do que a de defesa nacional. Mas serviu para que uns poucos militares brasileiros tomassem consciência da necessidade de se prepararem tecnicamente e se organizarem conforme as forças armadas de outros países.

Considere-se a instituição a partir de 1889 e a primeira tentativa de formação profissional na ida à Alemanha de dúzia e meia de militares, aqui, pejorativamente, denominados “jovens turcos”. Porém deixaram várias sementes, que destacamos a revista A Defesa Nacional, fonte e incentivo para permanente estudo de questões militares.

Porém as FFAA não podiam fugir dos conflitos e das diferenças que surgiam na evolução da sociedade brasileira que, mesmo não se levantando para instituir a República, a ela se associou.

O mais profundo analista da sociedade brasileira é o mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997), autor dos monumentais volumes dos Estudos de Antropologia da Civilização e de O povo brasileiro, indispensáveis para compreender nossa sociedade.

A partir da chegada dos europeus, já no período capitalista da história do ocidente (século 15 em diante), travou-se o choque entre um comunismo primitivo dos índios, numa terra onde os meios de sobrevivência abundavam e eram facilmente obtidos, com os europeus, que vinham atrás dos recursos escassos no seu continente e que eram valorizados na sua cultura socioeconômica.

Isso constituiu o formato de sociedade que Darcy Ribeiro dividiu em quatro grupos: as classes dominantes, patronato nacional e estamento gerencial, as classes intermediárias, dependentes e relativamente autônomas, as classes subalternas, urbanas e rurais, e as classes oprimidas.

Enquanto colônia, as classes dominantes gerenciais, agindo em nome dos interesses estrangeiros, pouco precisaram negociar com o patronado nacional, mais voltadas para manutenção da lei e da ordem.

Porém, com a independência, as classes dominantes passaram a ter que se valer de seus próprios recursos, dando maior relevo ao segmento dos funcionários, entre os quais os militares, que na colônia apenas distinguira o judiciário.

No processo para independência, já se diferenciavam setores das classes dominantes e das intermediárias daqueles das classes subalternas e oprimidas, porém todos viam na soberania nacional a possibilidade de participação nos destinos do país e de melhorar suas condições de vida.

O golpe de mestre das classes dominantes foi a associação com o poder monárquico, onde as classes dominantes regionais cederam parte do poder para garantir a unidade nacional e o esvaziamento e pacificação das classes intermediárias.

Eventos como a Revolução Pernambucana de 1817, a Balaiada (Maranhão, 1831), a Sabinada (Bahia, 1831), a Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1835) e a Cabanagem (Amazonas, 1835), além de várias lutas contra escravos, produziram a unidade da classe dominante, senhorial e parasitária, permitindo a chegada de classe estrangeira assumindo a direção de vários setores econômicos e unidades políticas brasileiras.

Exemplo notável desta situação nos é descrito por Luiz Roberto Pecoits Targa, em Gaúchos e Paulistas na Construção do Brasil Moderno (Estudos Rio-Grandenses, organização de Paulo Timm, Torres, 2020), do qual trataremos mais adiante.

FFAA diferenciadas na raiz

Ainda no período colonial, houve a transferência da capital do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro (carta-régia de 27 de janeiro de 1763). Majoritariamente se atribui à descoberta de ouro em Minas Gerais, no entanto o pacto colonial trazia mais do que a economia de exportação. Havia, por exemplo, o “privilégio de estanco”, que dava a único comerciante o monopólio de negociação do produto, e este foi muito importante no estanco do sal, correndo todo litoral brasileiro.

Outras medidas de caráter econômico elevavam o custo de vida e faziam ocorrer levantes no nordeste (Maneta, 1711; Terço Velho, 1728; Alfaiates, 1798), onde ocorria o principal domínio das classes dirigentes já nascidas no Brasil, que recomendavam afastamento da administração portuguesa.

Em 9 de novembro de 1807, saía o futuro rei D. João VI do rio Tejo, com esquadra de 15 navios, sob proteção inglesa. Tão logo aporta em Salvador assina, em 28 de janeiro de 1808, a abertura dos portos do Brasil e o livre intercâmbio comercial. E, ainda na Bahia, aprova a criação da que seria a Faculdade de Medicina, inicialmente Escola de Cirurgia.

Mas esta presença modifica a situação brasileira. A mais relevante foi a transferência da Corte Colonial de Portugal para o Brasil, com a proteção da Inglaterra; a segunda foi a mudança do eixo da classe dirigente nacional do Nordeste para o Sudeste; e a terceira foi a onda revolucionária que, partindo do Porto (Portugal), corre o Brasil de Belém do Pará, passando por Pernambuco e pela Bahia, até chegar ao sul, na incorporação da Província Cisplatina (1816).

“Soldados! A Bahia é nossa Pátria e nós não somos menos valentes que os Cabreiras e Sepúlvedas. Soldados! Nós somos os salvadores de nosso país; a demora é prejudicada, o despotismo e a traição do Rio de Janeiro maquinam contra nós, não devemos consentir que o Brasil fique nos ferros da escravidão” (Braz do Amaral, História da Independência na Bahia, Livraria Progresso Editora, Salvador, 1957, 2ª edição).

Entre a chegada de D. João VI (22 de janeiro de 1808) e a Independência do Brasil (7 de setembro de 1822) transcorreram 14 anos. E, nesta primeira metade do século, houve não só a transferência geográfica do poder como a ruptura da sociedade tradicional da aristocracia fundiária para a urbana e comercial.

Não havia Força Armada Brasileira, existiam milícias, mais ou menos organizadas, e o apoio estrangeiro. Esta situação foi sendo modificada durante o Império, mas, efetivamente, não houve interesse, principalmente pelo mais longo reinado (23/7/1840 – 15/11/1889) de Pedro II, em dotar o Brasil de efetiva autonomia. Mas se consolidaram patronatos, por quase todo País, que diferenciará a formação e atitudes das FFAA na República.

No sul, os primeiros ocupantes, que Décio Freitas denomina “empresários-guerreiros” (“Farrapos: uma rebelião federalista”, in J.H. Dacanal, A Revolução Farroupilha: história e interpretação, PA, 1985), e as vilas guaranis desconheceram o Império Português, mesmo com os protestos espanhóis.

Foram bandos armados e não o exército regular lusitano que deram forma ao sul do Brasil. José Honório Rodrigues (1913-1987), em sua obra de análise histórica brasileira, afirma que foram milícias que deram prova de eficiência militar e não as Forças Armadas regulares na colônia e no império. Ainda, a formação do “patronato” sulista foi de imigrantes europeus, fugindo das guerras e das condições de vida difícil para a classe média menos favorecida, mas empreendedora.

L.R. Targa, já referido, escreve: “As autoridades do Exército e a hierarquia administrativa do Imperador tornam-se cada vez mais isoladas dos grandes proprietários e dos grandes comerciantes ‘brasileiros’. Na verdade, as guerras que D. Pedro I fomentou no Rio da Prata e na Guiana foram consideradas como servindo aos interesses de Portugal em detrimento daqueles do Brasil”.

Outra característica da formação rio-grandense que influenciará parcela significativa das FFAA é o positivismo. Três condições ideológicas extra militares terão importância, principalmente no Exército: a maçonaria, o espiritismo e o positivismo, este último, principalmente, entre gaúchos.

Pela relevância e atualidade, transcrevemos, parcialmente, um “box” das observações que Targa coloca no livro citado.

“Em ensaio sobre políticas institucionais, Jean-Louis Quermonne interessa-se especialmente pelas políticas institucionais constitutivas e, antes de tudo, pelas políticas constitucionais. Sua primeira observação é que as constituições podem tanto reproduzir e adaptar modelos constitucionais estrangeiros quanto construir um regime político inédito e, consequentemente, chegar à invenção de novo ‘tipo ideal’ de constituição suscetível de ser exportada”. E, acrescenta Targa, “a Constituição positivista sul-riograndense fundou nova ordem jurídica. Constituição inédita e original não estava baseada na dos Estados Unidos da América (EUA) como as demais constituições brasileiras”.

Targa faz notar que na Primeira República eram os estados da Federação e neles as respectivas oligarquias quem conduziam a Nação, com poderes diretamente proporcionais à economia e à representação política.

No primeiro grupo dos atores estavam São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No segundo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Os demais eram satélites, manipulados. Famílias de prestígio na colonização e no império cediam seu poder.

Havia ainda duas instituições de importante peso político: a Presidência, incluindo o Congresso, o Poder Federal, e o Exército.

O poder político de Minas Gerais se apresentava na Presidência ou na Vice-presidência da República, em razão das alianças eleitorais e na ocupação de pastas importantes: fazenda, justiça, transporte, agricultura, após 1930 também a da educação. Assim os mineiros estavam na direção dos órgãos públicos que podiam carrear obras públicas, além de empregos federais, para o controle eleitoral do patronato. Empresas e famílias constituíam bases eleitorais com setores intermediários partidários e seguidores, melhor se diriam, dependentes dos patronos. O clientelismo se manifestava na desproporção de serviços disponíveis em Minas Gerais e em outros estados brasileiros, como quilômetros de ferrovias, sistemas bancário, postal, telegráfico e empregos federais.

Estudar a História do Brasil, sob qualquer aspecto, é estudar a escravidão. Ela não se resumiu aos 340 anos que medeiam a constituição do Estado Colonial à Lei Áurea. Ela prossegue sob as formas de contratos de serviços sem garantias, trabalhos por comida e outras formas ainda mais aviltantes de tratar o ser humano.

E neste aspecto o Rio Grande do Sul constituiu sociedade diferenciada. A criação de pequenas propriedades, criando classe média rural, a vinda de imigrantes, a inserção dos índios guaranis na sociedade, e o que Luiz Roberto Targa denomina binômio “guerras fronteiriças – diversificação social” está na base da originalidade rio-grandense, que culmina na Constituição de 1891, a Constituição Castilhista. Ainda que possamos expressar que o Castilhismo era o Positivismo com Características Gaúchas, a questão da formação pessoal permanece como se constata nestes parágrafos do artigo 71, do Título IV – Garantias Gerais de Ordem e Progresso no Estado:

“§ 10 – Será leigo, livre e gratuito o ensino primário ministrado nos estabelecimentos do Estado.

§ 19 – Todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos, civis, ou militares, quaisquer que sejam as suas opiniões, sem outra distinção que não a dos serviços que haja prestado ou possa prestar, a das virtudes e a da aptidão”.

O Estado de São Paulo persistiu com o modelo escravista, sendo os escravos das regiões que empobreciam no leste e nordeste vendidos para as plantations paulistas. Com a mão de obra escrava ou precariamente remunerada, a plantação de café, principal commodity no início do século 20, deu condição para São Paulo se modernizar e importar inclusive a cultura europeia para seus salões e teatros e professores estrangeiros.

Mas, diferentemente do Rio Grande do Sul, estas condições ficavam restritas à classe dominante, o patronato paulista.

Estas diferenças de percepção da sociedade irão formar os exércitos que se constituíram a partir da Missão Francesa (1919-1939) e os contatos com os militares estadunidenses na II Grande Guerra.

Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, pertenceu ao Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e é atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás  (Aepet).

Receba os destaques do dia por e-mail

Cadastre-se no AEPET Direto para receber os principais conteúdos publicados em nosso site.
Ao clicar em “Cadastrar” você aceita receber nossos e-mails e concorda com a nossa política de privacidade.
guest
0 Comentários
Feedbacks Inline
Ver todos os comentários

Gostou do conteúdo?

Clique aqui para receber matérias e artigos da AEPET em primeira mão pelo Telegram.

Mais artigos de Pedro Augusto Pinho

Receba os destaques do dia por e-mail

Cadastre-se no AEPET Direto para receber os principais conteúdos publicados em nosso site.

Ao clicar em “Cadastrar” você aceita receber nossos e-mails e concorda com a nossa política de privacidade.

0
Gostaríamos de saber a sua opinião... Comente!x