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Pedro Augusto Pinho
Administrador aposentado, foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e Consultor das Nações Unidas (UN/DTCD).

Os novos 'Trapalhões': Cid, Jair, Torres e Arruda – 2

Na década de 1970, ocorre a invasão da ideologia neoliberal

Publicado em 02/02/2023
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"A Frente de Novembro foi um movimento político extrapartidário, organizado a pretexto de comemorar o aniversário da destituição do presidente Carlos Luz. Ela obedeceu, na realidade, ao propósito de rearticular as forças populistas, dispersas com o desaparecimento do presidente Vargas, em torno de um programa de caráter nacional, de sentido evidentemente esquerdista, para a luta contra o sistema democrático vigente, que era atacado e combatido como se representasse o predomínio de correntes reacionárias, opostas aos interesses do povo brasileiro".

General Aurélio de Lyra Tavares, O Brasil de Minha Geração, 2º volume, 1977.

 

2ª Parte: A Revolução de 1930

A Revolução desencadeada no Rio Grande do Sul, unindo civis e militares, em 1930, representou verdadeiro ponto de transformação política, social e econômica no Brasil. Não houve imposição ideológica, mas a construção, por diversas vertentes inconformadas com nosso atraso civilizacional, de novo Brasil. Basta recordar que, pela primeira vez na história pátria, a educação, a saúde e o trabalho mereceram, de modo orgânico, a atenção do Estado Nacional.

Recordando a classificação de Darcy Ribeiro (Estudos de Antropologia da Civilização, Os Brasileiros, I Teoria do Brasil), o Patronato Oligárquico, senhorial e parasitário, foi modificado, reformado, pela assunção das forças modernas, empreendedoras e abrangentes, inclusivas de todas as classes sociais. E a menos de meio século da formal libertação dos escravos.

Como é óbvio, ao tempo que foi acolhido pela maioria absoluta da população, também deu início à construção de movimentos representativos das elites despojadas do poder. O mundo conhecera, em 1917, a mais profunda transformação do Estado Nacional desde o fim da Idade Média. Efetivamente, estava sendo construído o Estado sonhado pela Revolução Francesa e, de certo modo, pelo iluminismo. Mas as elites dirigentes não podiam aceitar esta transformação. O comunismo passou a significar tirania e opressão em todas as mídias, nos demais partidos políticos, nas religiões, e todas doutrinações ideológicas diversas do comunismo.

Logo pareceu natural, aos opositores da democracia ampla e inclusiva do "varguismo", a acusação de esquerdismo ou comunismo, aquele acolhimento de todos cidadãos pelo Estado Nacional Brasileiro.

Lembremos que as Forças Armadas, no Império, pouco foram modificadas pelo advento da República. A Missão Francesa ainda estava fazendo o seu trabalho de profissionalização dos militares brasileiros. E os títulos de nobreza brasileiros acompanhavam os comandantes militares até meados do século 20.

Porém havia um grupo de militares, mais interessados no desenvolvimento do Brasil do que em ideologias importadas; quer por questão de prioridade, quer porque reconheciam que as ideologias importadas não encontravam eco no povo brasileiro.

Esta monocórdia acusação de comunismo, mesmo com o fim da União das Repúblicas Soviéticas (URSS), com o socialismo com características chinesas, mostrando que não é pensamento de exportação, mas arraigado no modo de vida de grupo populacional, demonstra a falta de análise e a superficialidade publicitária dos militares, principalmente nesta era neoliberal.

No amplo estudo que Edmundo Campos Coelho faz do "exército e a política na sociedade brasileira", encontramos a seguinte análise:

"Faltava aos militares qualquer concepção clara, seja do regime que haveria de substituir a Monarquia, seja do papel do Exército na sociedade pós-monárquica. Observando que na Constituinte o grupo mais ativo era o dos positivistas, ao qual aderiram em massa os oficiais 'científicos'", observou Medeiros de Albuquerque que "a ignorância de quase todos sobre questões políticas mais elementares chegava a limites estupendos (...) o que eles sabiam (do regime presidencial) é que estava em antagonismo com o Regime Parlamentar detestado por Augusto Comte e que se aproximava mais do sistema ditatorial. Quanto ao papel do Exército na sociedade, a mentalidade militar não superava os limites de vagas referências a uma missão regeneradora da sociedade civil" (Edmundo Campos Coelho, Em Busca de Identidade, Record, RJ, 1975).

O general Alfredo Souto Malan (A Missão Militar Francesa de Instrução junto ao Exército Brasileiro, Biblioteca do Exército Editora, RJ, 1988) reflete que "somente o alto-comando e alguns oficiais dos grandes estados-maiores têm a verdadeira ocasião de praticar a arte da guerra e, mesmo assim, não há possibilidade de fazê-lo todos os dias". E, na mesma publicação, "a sorte comum (...) até coronel, inclusive, resume-se no comando, isto é, no conhecimento do homem, na autoridade que se impõe, na ascendência necessária sobre a coletividade, sem o que não há disciplina, nem vitória".

Embora muito grave, a questão da formação acadêmica e da prática militar não esgotam os problemas das Forças Armadas, que devem possuir equipamentos e materiais bélicos, tecnologia para os desenvolver, e adestramento para os utilizar com perfeição. E tudo isso requer recursos que um País de tradição e índole pacífica, com imensos desníveis de renda e bens, só pode ver como inúteis e jamais como prioritários no Orçamento Público.

Do Estado Novo à invasão neoliberal

O Estado Novo permitiu a aceleração das transformações sociais no Brasil, mas deixou algumas mazelas que impediram a consolidação e até impulsionaram retrocessos.

"A Constituição do Estado Novo, autoritária em suas disposições políticas, era nacionalista na ordem econômica que definia. A Revolução de 30 fora democrática no plano político e nacionalista no plano econômico" (José Augusto Ribeiro, A Era Vargas, Casa Jorge Editorial, RJ, 2001, volume 1). Porém, como assinala José Augusto Ribeiro, o nacionalismo já existia desde o Governo Provisório, quando Vargas decreta o Código de Minas (1934).

Parte importante do êxito da Revolução de 1930 se deve ao então tenente-coronel, o alagoano Pedro Aurélio de Góis Monteiro, de quem se dizia a "boutade": "Já era general desde tenente". Edmundo Campos Coelho assim descreve a personalidade de Góis Monteiro (obra citada): "Dotado de grande percepção, insinuante e de fina inteligência, sabe apanhar a ocasião pelos cabelos, mascarar friamente seus verdadeiros intuitos com engenhosas abstrações, satisfazendo, as mais das vezes, exclusivamente, sua natureza de exibicionismo político. Não teme preconceito; lança mão, firme e cautelosamente, de todos recursos disponíveis. Une inimigos para que se engulam. Alia-se a um inimigo para a derrota de outro".

Embora sem comprovação, há evidências que Góis Monteiro só aderiu à Revolução de 1930 quando já iam adiantadas as articulações. Foi, no entanto, o homem forte do Movimento, e a "doutrina e política militar" da época deve muito a ele.

Cabem algumas palavras sobre a qualificação militar. Na obra coletiva Exército Brasileiro Perspectivas Interdisciplinares, organizada por Fernando da Silva Rodrigues e Tássio Franchi (Mauad X, Faperj, RJ, 2022), se constata que nem os cursos no exterior nem a presença de missão estrangeira, nem a exposição a cenário de guerra, sob comando estadunidense, haviam sido assimilados pelos militares. Ficaram apenas preconceitos ideológicos, muitos oriundos da classe social, e a guerra fria interminável.

Um marco na formação do Exército foi a criação da Real Academia Militar, ainda sob domínio português, em 1810. Após a Guerra contra o Paraguai, travou-se a disputa sobre o que deveria ser ensinado na formação militar. Leonardo Trevisan (Obsessões patrióticas: origens e projetos de duas escolas de pensamento político do Exército Brasileiro, Biblioteca do Exército, RJ, 2011) aponta o "cientificismo", baseado no positivismo, e o "anticientificismo", com foco na preparação para guerra.

Esta discussão prosseguiu até 1889, com a República. Aqueles que centravam o ensino nas "coisas da guerra", consideravam importante o preparo para lutas em locais e com equipamentos não conhecidos, o que levou à importação, em 1872, de fuzis e canhões fabricados na Alemanha.

Criada em 1855, a Escola da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, deveria ensinar a ser soldado, manejar armas, marchar, acampar e lutar corpo a corpo.

Com o tempo, houve distinção entre os militares que estudavam nas escolas militares dos oficiais que apenas recebiam adestramento, ascendendo pelo tempo na carreira militar. Os formados sabiam ler manuais em francês, dispensando a tradução nos cursos de formação. João Batista Magalhães, em A Evolução Militar no Brasil (Biblioteca do Exército, RJ, 1998) escreve:

"Entre os primeiros, orgulhosos de sua superioridade cultural, poucos eram os que não relegavam para o segundo plano os estudos de caráter tipicamente profissional e muitos os que prezavam mais as comissões estranhas ao profissionalismo que as militares, e os seus títulos científicos que os da carreira". Os formados na rotina, por seu turno, tinham desprezo pelos que não consideravam 'bons soldados'".

Em 2019, de acordo com Regiane Aparecida Pontes Botelho Nogueira e Patrick Danza Greco ("A Profissionalização do Exército na Primeira República: A Construção do Ensino Secundário Militar (1849-1911)", in Exército Brasileiro Perspectivas Interdisciplinares, citado), havia 14 "colégios militares" espalhados pelo Brasil, de Manaus a Santa Maria (RS).

Na década de 1970, ocorre a invasão da ideologia neoliberal, começando, inteligentemente, numa profissão que coloca a hierarquia como valor absoluto, nas Escolas de Comando e Estado-Maior (ECEM) das três Forças. A partir de então, esta ideologia vai se entranhando por gravidade nos cursos militares, apagando o nacionalismo dos formandos até a primeira metade do século 20.

"Cadete! Ides comandar, aprendei a obedecer", inscrição no alto do pavilhão do refeitório da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).

Fábio Facchinetti Freire e Andrea Carvalho de Castro Albuquerque ("Entre a Reprodução e a Autonomia: As Tensões na Implantação do Ensino por Competências", in Exército Brasileiro Perspectivas Interdisciplinares, citado) tratando dos debates que desaguaram na Constituição de 1988, entendem que havia a perspectiva do acesso universal ao ensino médio e, pela via privada, a "explosão ao ensino superior". Também resumem, a partir de documentos do Estado-Maior do Exército, a política educacional, formadora da:

"– crença e compromisso com os valores centrais da instituição;

– atitudes que denotem criatividade, iniciativa, decisão, adaptabilidade, cooperação, arrojo, flexibilidade e liderança;

– habilidades interpessoais que facilitem sua interação com indivíduos e grupos;

– senso de responsabilidade pelo autoaperfeiçoamento;

– habilidades cognitivas, nos níveis de compreensão, reflexão crítica e aplicação de ideias criativas;

– domínio de idiomas estrangeiros;

– habilidades para fazer uso dos recursos de informática".

Todos estes tópicos são encontrados em cursos de formação de gerência empresarial, nos diversos níveis, em treinamento para profissionais que tratem com públicos, até em seminários religiosos. É a forma de abrigar a ideologia neoliberal como um pensamento moderno, democrático e de valorização da pessoa individual, não do homem coletivo, membro da sociedade. Também cursos de controle de qualidade e de organização de instituições, no avanço da ideia da globalização, importante segmento da ideologia neoliberal, abrigam mesmo perfil.

A situação atual nas FFAA é consequência direta deste modelo doutrinário e da pouca profundidade do anterior ensino militar.

Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, pertenceu ao Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e é atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet).

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