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Felipe Maruf Quintas
Felipe Maruf Quintas
Felipe Maruf Quintas é Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
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Pedro Augusto Pinho
Administrador aposentado, foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e Consultor das Nações Unidas (UN/DTCD).

Reflexões para teoria do Estado Nacional: Roma Império e cristianismo

Quando Augusto assume o Império, em 29 a.C., a República já levara as fronteiras de Roma à península Ibérica, à Gália, por

Publicado em 23/03/2022
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Quando Augusto assume o Império, em 29 a.C., a República já levara as fronteiras de Roma à península Ibérica, à Gália, por toda península italiana e do outro lado do mar Adriático, à Grécia e Ásia Menor. Também chegara à Síria, ao Egito e parte do norte da África; o Mediterrâneo já podia ser chamado “mare nostrum”. O Império ainda dilatará as fronteiras.

Até o ano de 395 d.C., com a deposição de Teodósio, quando Roma será dividida em Império do Ocidente e do Oriente, estabelecemos o fim do Império. Os historiadores colocam o fim do Império em 476 d.C., mas nosso objetivo é analisar o Estado.

O Império manterá com Augusto (63 a.C.-14 d.C.) instituições da República que irão se deteriorando com o tempo. Este Imperador teve um Conselho Consultivo, não mais os órgãos deliberativos a seu redor. Os Poderes Consulares ainda teriam a influência das centúrias, porém alteraram-se as antigas instituições, como o próprio exército e o fisco, agora subordinadas às decisões dos cônsules.

O Império nasceu da reação contra a oligarquia senatorial, em grande parte latifundiária. A política de César, ao investir contra o Senado, possuía forte componente popular, daí, até hoje, os liberais e até mesmo os marxistas acusarem de “cesarismo” os líderes comprometidos com os interesses da maioria no quadro da unidade político-territorial-nacional. Augusto, ao consolidar o Império, o fez, inclusive, criando políticas e instituições favoráveis aos mais pobres, como trabalhos públicos, abastecimento e espetáculos, o que foi aprofundado, depois, por Trajano e Adriano, que organizaram verdadeira administração de auxílio social em favor dos pobres, dos órfãos, enfim, dos desvalidos.

Se se pode afirmar que o Império teve conteúdo social mais flagrante do que a República oligárquica, pode-se, contudo, afirmar que o Império perdeu, na ótica do Estado, em democracia para a Realeza e a República, dada a centralização política e religiosa na figura dos Imperadores, muitos deles absolutamente desqualificados para o exercício do cargo, como Calígula e Heliogábalo, em nada semelhantes a Augusto e Adriano, cuja magnanimidade até hoje inspira os melhores estadistas e artistas. E acabará por perder a ideologia nacionalista e cidadã que formou Roma e perderá, ao fim, até mesmo o seu território.

Estudar o Estado é estudar também sua sociedade. E neste campo o tema mais relevante é da liberdade ou, seu oposto, a escravidão. Ao longo de toda história romana sempre ocorreu a escravidão, sendo suas formas diferentes no tempo. A mais cruel, nociva para a sociedade, é sem dúvida a que transforma o ser humano num objeto, num bem econômico, e o distingue pela etnia ou raça.

A escravidão, no entanto, assume diversas fantasias. Hoje é apresentada sob a modalidade de “empreendedores”, os que irão trabalhar até sem salário e sem qualquer direito. Este disfarce ora está nos “uber”, ora nos “MEI”, ora nos “autônomos”.

No início, entre os latinos, os escravos estavam organizados na sociedade familiar, sob o poder do pai de família, assim como sua mulher e filhos. Trabalhava na lavoura ou no pastoreio junto aos “livres”. Havia também a escravidão por dívida, que foi proibida no século IV a. C., em plena República.

Professora da Universidade de São Paulo (USP), a paulista Maria Luiza Corassin, comentando a ilegalidade da escravidão por dívida, escreve que “um cidadão romano não poderia mais ser reduzido à condição de escravo dentro do território romano. Como se tornara uma comunidade de cidadãos com plenos direitos, de proprietários-soldados, a sociedade romana passou então a escravizar estrangeiros para a agricultura e todo tipo de trabalho” (“Sociedade e Política na Roma Antiga”, 2001). É, ainda, Corassin quem afirma ter a escravidão aumentado rapidamente no século II a.C., quando “os escravos se tornaram a principal fonte de trabalho na economia romana”.

As áreas conquistadas fora da península italiana foram divididas em províncias, entregues a governadores, verdadeiros monarcas, escolhidos entre cônsules e pretores. As províncias, ainda na República, porém mais fortemente no Império, passaram a sustentar Roma. Marco Túlio Cícero (106 a.C.-43 a.C.), célebre orador e político romano do fim da República, afirmou que ação verdadeiramente divina consistia em manter Roma sem arruinar as províncias (incolarum provinciarum sine pernicie Roma satisfaciens vere divinum est opus).

Como facilmente se infere, de uma sociedade que trabalhava para seu sustento e defendia seu território para a sociedade que vivia do trabalho de estrangeiros nos territórios conquistados, o psicossocial foi se alterando, os valores se transformando e, ao mesmo tempo em que o povo se afastava dos processos decisórios, avançava a corrupção e a degradação dos costumes.

Albert Malet (1864-1915), no já citado Roma, 1912 nesta série (“Reflexões para Teoria do Estado Nacional”), analisa: “Essa paixão desmedida por dinheiro não tardou a matar as virtudes cívicas dos primeiros romanos. Roma passa a ser um mercado, onde os ricos compram e os pobres vendem seus votos”. E adiante acresce a distribuição de víveres e a realização de jogos (panem et circenses) jogando o povo contra a própria República e poupando seus verdadeiros inimigos.

O evento mais significativo para o mundo ocidental, com repercussões em todo mundo, ocorrido durante o Império foi o surgimento do cristianismo. Para contextualizar este fato, iniciemos com a trajetória do povo judeu. Sua diáspora tem origem nas guerras ocorridas na Ásia Menor, na Grécia e no Egito que os conduziram para a Europa e, consequentemente, para Roma. Não foi um movimento pacífico como nos indicam as guerras e o cerco de Jerusalém (70 d.C.).

Ainda na República, a Palestina, província da Judeia, passa ao domínio romano (63 a.C.). Ali o cristianismo surge como dissidência do judaísmo. Desta mais antiga religião monoteísta, foram também criadas as diversas denominações protestantes e o islamismo. O mundo religioso neste século XXI tem, assim, majoritariamente, no ocidente e no oriente médio religiões de origem judaica.

O cristianismo empolga a população das províncias com seus discursos de igualdade, entre escravos, e de amor ao próximo e perdão dos pecados, entre todos os habitantes. Em 29 d.C., o sexto procurador que governou a Judéia, entre 26 e 36, Pôncio Pilatos, condena Jesus Cristo por traição à Roma, crime que lhe competiria julgar. “Nenhum romano da época podia imaginar que esse momento da crucificação seria apenas um começo” (Isaac Asimov, The Roman Empire, 1967).

O cristianismo encontrou facilidade de expansão pelo Império Romano tanto nos aspectos materiais, objetivos, do sistema de estradas, dos recursos urbanos, locais parlatórios, quanto no aspecto subjetivo, da lei, do conceito de cidadania, de grupamento de raças diferentes, e na unidade política e movimentação, circulação de ideias e propaganda.

A perseguição aos cristãos não se deu pela fé diferenciada, mas pela lei romana. Desde que o cidadão cumprisse as obrigações para com o culto do Imperador estava livre para seguir quaisquer outras religiões, e os cristãos não aceitavam ter outro culto além do cristianismo. Esta era a razão da perseguição: descumprimento do culto ao Imperador.

Edward Gibbon (1737-1794), autor de A História do Declínio e Queda do Império Romano, 1776/1788, considera o cristianismo parte essencial da história do Império Romano.

Mas é pouco analisada a influência da organização romana na estruturação da Igreja Católica. Até a terminologia romana foi preservada na estrutura desta Igreja, sendo, por mais de um milênio, o latim o idioma da Igreja Católica Apostólica Romana.

Sinteticamente, a Igreja tem as paróquias, as dioceses e o papado, na verticalidade organizacional. A divisão territorial da Igreja, como a romana, é feita por províncias, cuja direção cabe aos bispos ou, em âmbito maior, aos arcebispos. Na época dos apóstolos de Cristo, já se estruturava a base da igreja com os diáconos, os auxiliares dos vigários, e os presbíteros; escolhidos pela direção eclesiástica, ou seja, pelos bispos, eram designados os novos bispos.

Nas paróquias havia os setores da pastoral, da prestação de serviços aos fiéis e o órgão para os serviços administrativos. Em Roma, a cúria era a reunião de famílias que, em determinado período, chegaram a ter mais poder do que o Senado. Na Igreja, a cúria é o conjunto de instituições que formam verdadeiramente o governo.

Vê-se, portanto, que a simples e democrática organização da Realeza foi a que mais influenciou a Igreja Católica, mas que, com o tempo, foi agregando os órgãos coordenadores das ordens religiosas que começam a proliferar, desde Roma até a Era Moderna.

Se a cristandade invade o Império e o enfraquece, por outro lado, a organização romana constituiu a direção para a estrutura do catolicismo, até o Estado do Vaticano.

Até o II século da era cristã, o Império se manteve. Em 380 d.C. Teodósio I elege o catolicismo religião oficial do Estado (Édito de Tessalônica). Este fato provoca uma contradição com o passado de Roma.

Recordemos que desde o tempo anterior à Realeza, os povos, os futuros romanos, se miscigenaram para defender e transformar seu espaço geográfico num lugar seguro e bom de morar. Com o tempo, primeiro evitando agressões e posteriormente ampliando o espaço nacional, Roma cresceu. Isto significa que Roma parte da identidade nacional e era tão forte este sentimento que o cidadão romano passou a ser aquele que servia à República e ao Império, mesmo nascido em terras conquistadas, fora do espaço romano.

O cristianismo traz o pensamento universal, da humanidade, onde a nacionalidade é apenas um acidente e não a origem da pessoa. E, assim mesmo com contradições, pois a doutrina cristã embora proibisse a escravidão, a aceitava para os pagãos.

Além desta condição, os fatores econômicos de latifúndios sem mão de obra, das crises militares, das mudanças de administração instadas por problemas mais complexos do que os de gestão, e ao final a invasão dos bárbaros, fazem Roma não chegar ao século V, já fragmentada.

O período que segue, a Alta Idade Média, trará novas questões e terá soluções que levarão a sociedade ocidental para novos desafios.

Não deixa, contudo, de chamar a atenção o fato de o Brasil ser o maior país herdeiro de Roma e da civilização latina atualmente existente. A “Nova Roma” não nasceu da cabeça de Darcy Ribeiro (1922-1997), seu maior divulgador contemporâneo, mas já estava inscrita no hino de Pernambuco. País mestiço, sincrético e de vocação imperial, o Brasil pode e deve não apenas buscar ser continuador de Roma, mas um aperfeiçoador da sua mensagem de paz, inclusão e tolerância nos marcos da cidadania generosa e aberta.

Felipe Maruf Quintas é doutorando em ciência política.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

Fonte: Monitor Mercantil

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