Paulo Nogueira Batista Jr.
Paulo Nogueira Batista Jr.
Paulo Nogueira Batista Jr. é graduado em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestre em História Econômica pela London School of Economics.

Risco de estrangulamento cambial?

Uma nova quebra do país, provocada por estrangulamento cambial, seria mais um de tantos desastres dos anos recentes. O risco existe. O B

Publicado em 02/06/2020
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Uma nova quebra do país, provocada por estrangulamento cambial, seria mais um de tantos desastres dos anos recentes.

O risco existe. O Brasil vendeu um volume considerável de reservas internacionais desde meados de 2019, cerca de US$ 50 bilhões. Apesar disso, não conseguiu evitar acentuada depreciação do real.

De onde vem a pressão cambial? Não é da conta corrente do balanço de pagamentos. Esta tende, ao contrário, a melhorar. Com a economia em recessão profunda – projeta-se queda de 6% ou mais do PIB em 2020 – a demanda de importações entra em colapso. Como as importações caindo bem mais do que as exportações, o superávit comercial aumenta consideravelmente. Outros componentes do balanço de pagamentos em transações correntes também melhoraram, entre eles viagens internacionais e remessas de lucros e dividendos. A combinação de recessão com depreciação cambial está produzindo, como costuma acontecer, rápido ajustamento das contas externas correntes.

O problema está na volumosa saída líquida de capitais do país. Desde as décadas finais do século passado, a situação de balanço de pagamentos de países como o Brasil é determinada preponderantemente por movimentos internacionais de capitais. A conta corrente continua relevante, por suposto, mas o que pesa mesmo é a evolução da conta de capitais.

A saída de capitais, que começou em 2019, agravou-se com a chegada da pandemia. O problema se coloca para muitos países emergentes, não apenas para o Brasil. Toda crise internacional gera aversão ao risco e fuga para portos mais seguros. E a crise atual é a mais grave desde a Grande Depressão da década de 1930. Mas no nosso caso há dois agravantes. Primeiro, uma crise de confiança no país. A percepção crescente, no Brasil e no exterior, é de grave incapacidade e despreparo do governo. A reação tumultuada e incompetente ao desafio da crise de saúde pública eliminou qualquer esperança de uma gestão governamental minimamente eficaz. O Brasil converteu-se, em menos de ano e meio de governo Bolsonaro, num exemplo mundial de desordem econômica e política. Aumentou, portanto, o risco nas operações com o país e muitos investidores decidiram procurar outros rumos.

Esse movimento de saída foi estimulado também pela decisão – correta – do Banco Central de reduzir a taxa Selic. Desde meados do ano passado, percebeu-se que as projeções de inflação e a debilidade da recuperação econômica recomendavam a diminuição da taxa básica. Com essa diminuição, entretanto, estreitou-se o diferencial entre os juros internos e externos, tornando as aplicações em reais menos atrativas para os investidores em comparação com outros destinos. Esse segundo fator juntou-se à crise de confiança no governo para induzir a saída de capitais. Não por acaso o real tem sido uma das moedas mais pressionadas nos meses recentes.

O que fazer? O Banco Central tem instrumentos para lidar com a pressão cambial. O principal deles é o elevado estoque de reservas internacionais. Apesar da perda recente, o país ainda dispõe de US$ 340 bilhões. A posição brasileira, nesse particular, é melhor do que a de outros países emergentes – a Argentina e a Turquia, por exemplo – que não acumularam reservas suficientes e ficaram mais vulneráveis a problemas de balanço de pagamentos. A Argentina, ainda no governo Macri, teve que recorrer ao FMI. Graças às reservas acumuladas desde 2006, nos governos Lula e Dilma, o Brasil tem condições de se defender por conta própria e não precisa buscar auxílio financeiro externo em Washington.

Outra vantagem é o regime de flutuação cambial, estabelecido no Brasil depois da crise cambial de 1998-1999. Essa flexibilidade permite que a pressão cambial seja absorvida, no todo ou em parte, por meio de depreciação do real em relação a moedas estrangeiras. Se o Brasil operasse em um regime de câmbio fixo e tivesse tentado evitar a depreciação, o Banco Central teria sido obrigado pela saída de capitais a vender um volume muito maior de reservas internacionais, criando situação de alto risco para o país.

A depreciação da moeda, sempre noticiada em tom de lamento, tem os seus lados positivos para a economia. Ao estimular a competitividade das exportações e encarecer a importações de bens e serviços, ela favorece o ajuste do balanço de pagamentos em transações correntes. Ajudando setores que exportam e aqueles que concorrem com importações no mercado interno, ela contribui ao mesmo tempo para sustentar o nível de atividade econômica e de emprego.

Não se deve perder de vista, além disso, que a depreciação do real também favorece as contas públicas. Isso porque o governo é, por larga margem, credor líquido em moeda estrangeira, isto é, os seus ativos externos excedem consideravelmente os seus passivos em moeda estrangeira ou indexados à moeda estrangeira. A combinação juros internos mais baixos/depreciação cambial proporciona, assim, alívio muito bem-vindo a contas fiscais fortemente pressionadas pela crise de 2020.

Esses aspectos positivos da depreciação cambial não seriam, entretanto, eclipsados pelo seu impacto inflacionário? Nas circunstâncias atuais, com a economia em queda livre, o problema não se coloca, pelo menos no curto prazo. Com capacidade ociosa e desemprego elevados, o repasse do câmbio para o nível geral de preços é limitado. A inflação está controlada e tem ficado, inclusive, abaixo do piso da meta perseguida pelo Banco Central. O risco maior hoje parece ser de deflação. A depreciação cambial ajuda a afastar esse risco, ao elevar os preços em reais dos tradeables, os bens e serviços comercializados internacionalmente.

Isso não significa, claro, que o Banco Central possa simplesmente ignorar a depreciação do real e operar em modo flutuação pura, de livro texto. Em meio a uma crise econômica e política grave como a atual, paira sobre nós a ameaça de que, a partir de certo ponto, a queda da moeda nacional passe a se autoalimentar, tornando-se uma depreciação em espiral que desestabilizaria a economia. Para afastar essa ameaça, temos reservas internacionais ainda elevadas, que podem ser usadas para contra-arrestar a depreciação. Em determinadas circunstâncias, o Banco Central pode lançar mão da venda de swaps cambiais, que permitem atender a demanda por hedge e estabilizar o mercado sem comprometer o nível de reservas. Indexados ao dólar, mas liquidados em reais, os swaps cambiais são um instrumento complementar de que dispõe o Banco Central para atuar no mercado cambial sem recorrer às reservas internacionais.

Resumo da ópera: a situação é difícil, mas o país dispõe de mecanismos para lidar com a pressão na conta de capitais e evitar o estrangulamento cambial. O problema central, nessa área como em outras, é a inexistência de um governo minimamente organizado e confiável. A combinação da pior crise da nossa história com o pior governo da nossa história exacerba todos os problemas e aumenta a vulnerabilidade do país.

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na Carta Capital em 29 de maio de 2020.

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Lançou recentemente pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém.

Fonte: Brasil 247

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